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Crítica | Raw

por Guilherme Coral
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estrelas 5,0

Raw, alternativamente chamado de Grave, é uma daquelas obras que já nasce envolta de polêmica. Retratando de forma bastante explícita o canibalismo, o filme fez, em suas exibições em festivais, diversos espectadores passarem mal ou terem de sair da sala do cinema acompanhados por paramédicos. O que faz do longa-metragem de estreia de Julia Ducournau tão perturbador, contudo, não é simplesmente o gore nele presente e sim a forma instigante e até claustrofóbica que a trama é desenvolvida, nos levando em uma jornada pela loucura extremamente perturbadora, um filme que certamente permanece conosco muito tempo depós dos créditos finais.

Somos contados a história de Justine (Garance Marillier), uma jovem vegetariana que acabara de entrar na faculdade de veterinária. Na semana do trote ela é obrigada pelos veteranos a comer um pedaço cru de fígado de coelho, um grande choque pessoal para ela, já que ela se recusa a engolir qualquer carne, como é mostrado em uma das cenas iniciais. Quando isso ocorre, porém, algo desperta na menina e logo ela se vê viciada no ato de comer esse tipo de alimento, esteja ele cru ou não e eventualmente seu olhar se vira para a carne humana e a universidade oferece um variado menu para seus prazeres gastronômicos.

Raw nos traz um duplo sentido em seu título. Primeiro e mais obviamente se refere à carne crua que a protagonista consome, mais profundamente, contudo, ele faz uma analogia à forma como o canibalismo é retratado na obra – de maneira direta, sem um romantismo como visto em filmes sobre vampiros: temos aqui o homem regredindo a seu estado de animal, primitivo e aterrador. Ducournau em ponto algum nos prepara para o que vamos ver, ela constrói a gradual metamorfose de sua personagem principal, mas consegue nos chocar quando seu desejo toma conta dela, nos fazendo rir de nervoso tamanha a crueza da imagem que se passa diante de nossos olhos.

Garance Marillier nos traz uma atuação que nos mergulha dentro da narrativa. Ela é, ao mesmo tempo, o perfeito retrato da inocência e da sombria tentação, como um predador que se disfarça perfeitamente na sociedade. Seu olhar evidencia a loucura que toma conta de sua mente, como uma ira reprimida e prestes a explodir. Apesar de seu hábito ela, surpreendentemente, se mantém humana, com os sentimentos sendo demonstrados com clareza, fazendo com que nos aproximemos dela e seu hábito canibal seja visto quase como uma maldição que caíra sobre ela. Mergulhamos em sua mentalidade e passamos a nos angustiar com sua vontade oculta, simpatizando com a protagonista, por mais monstruosa que seja.

Naturalmente, a direção em muito contribui para esse fator, enquanto ajuda a contribuir para toda essa ideia de segredo que a protagonista esconde. Inúmeras vezes a vemos ocultando suas ações, com enquadramentos que escondem o que está fazendo até o momento certo. Uma aproximação, então, ocorre, retratando a personagem de forma mais primal, como uma criatura esfomeada que, finalmente, consegue colocar suas garras em um pedaço de comida – o canibalismo aqui não é uma preferência e sim uma necessidade, praticamente uma alteração fisiológica do ser, que passa a se nutrir apenas com a carne de origem humana.

O roteiro ainda faz um ótimo serviço ao não cair na obviedade, dispensando uma narrativa típica do personagem sendo descoberto e, de alguma forma, derrotado ao término da história. Inúmeros pontos de virada são inseridos ao longo do texto, de forma a nos deixar sem saber o que irá acontecer a seguir. Esses plot-twists são inseridos de forma orgânica dentro do filme, são trabalhados com cuidado e não soam repentinos, por mais que causem, sim, a surpresa no espectador. Há uma construção narrativa muito bem pensada que nos leva ao velho “como não vi isso antes?”.

Ducournau apresenta uma evidente preocupação com os coadjuvantes – nenhum personagem fora inserido nessa trama por mero acaso, cada um deles desempenha um importante papel e, sabiamente, ela dispensa personagens secundários sem importância. Seu foco é impressionante e lentamente ela pinta esse quadro a fim de encaixar todos os elementos na hora e na posição certa, como um grande quebra-cabeças cuidadosamente elaborado. Da irmã de Justine até seu companheiro de quarto, todos ganham a devida atenção, se destacando nas ocasiões certas dentro da projeção.

Tudo isso é acompanhado por um perturbador trabalho musical de Jim Williams, que já atua no ramo desde 1989. Suas melodias ora ressaltam o drama da protagonista, ora evidenciam o elemento angustiante da obra, com tons dramáticos que sedimentam a narrativa perturbadora construída pela diretora. Já presente no título inicial, a música tema já dá dicas ao espectador – sabemos que não veremos uma história comum de uma jovem universitária e sim um filme de caráter sombrio que certamente nos irá marcar de alguma forma.

De fato, é isso o que ocorre, Raw é uma obra que dificilmente sairá de nossas memórias, nos trazendo uma narrativa de suspense e terror que se diferencia da grande maioria de longas do gênero. Uma trama cuidadosamente construída, acompanhada por uma direção precisa e atuações que se destacam, temos aqui o que facilmente se configura como um dos melhores filmes do ano, embora certamente seja feito para os espectadores de estômago mais forte, não sujeitos a enjoos ou desmaios provocados por fortes imagens. Um filme cru e aterrador que traz um olhar inédito sobre o canibalismo.

Publicado originalmente em 16 de outubro de 2016.

Raw — França/ Bélgica, 2016
Direção:
 Julia Ducournau
Roteiro: Julia Ducournau
Elenco: Garance Marillier, Ella Rumpf, Rabah Nait Oufella,  Laurent Lucas, Joana Preiss, Bouli Lanners
Duração: 99 min.

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