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Crítica | Ricardo III (1955)

por Luiz Santiago
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estrelas 4,5

Se o leitor não se interessa por contextualizações, peço que pule direto para a crítica do filme, sinalizada abaixo. Nessa primeira parte, eu faço uma abordagem breve sobre os eventos que dão sustentação à obra aqui em questão, explicando alguns detalhes que creio serem essenciais para o seu entendimento e crítica.

Sobre a peça e a questão histórica

Ricardo III é uma das primeiras peças de Shakespeare, um de seus dramas históricos mais lembrados e conhecidos, tendo a famosa frase de desespero de Ricardo, no campo de batalha, momentos antes de ser morto: “Um cavalo, um cavalo! Meu reino por um cavalo!”.

Escrita após a trilogia sobre a vida de Henrique VI e formando com esta uma tetralogia, Ricardo III só é compreendida inteiramente ou melhor aproveitada se o leitor ou espectador tiver conhecimento dos eventos das peças anteriores. Não se trata de uma obrigatoriedade, mas passagens que Shakespeare apenas cita ou eventos que visivelmente são consequências de atos passados apontam para a importância das três peças que a antecedem.

A Tragédia do Rei Ricardo III é o desfecho da Guerra das Duas Rosas, que colocou as casas de York e Lancaster em pé de guerra, culminando com a vitória dos Lancaster e a ascensão de Henrique de Richmond (partidário de Lancaster) ao trono, que uniria as rosas branca e vermelha, criando a casa Tudor, da qual seria o primeiro rei, com o nome de Henrique VII.

Os eventos da tetralogia Henrique VI – Ricardo III se passam em um momento conturbado da história inglesa, momento este que pode ser melhor compreendido se observarmos o quadro de sucessões reais e as particularidades de cada monarca. São 4 reis ao todo, e desses, apenas 3 tiveram reinados oficiais. Como os 4 são citados na tetralogia shakespeariana, farei um quadro sobre o período, o que ajudará o leitor a entender melhor as escolhas dramáticas de Laurence Olivier, no filme de 1955, que de uma forma ou de outra compreende todo esse momento histórico.

  • Henrique VI, casa de Lancaster: reinou de 1422 a 1461, e depois de 1470 a 1471, após ser reempossado, reconquistando o trono dos York. Na versão de Shakespeare, Henrique VI é morto pelo duque de Gloucester (futuro Ricardo III) na Torre de Londres, e seu herdeiro é morto por Eduardo de York, futuro Eduardo IV. Esses eventos são trabalhados na trilogia Henrique VI, e o leitor pode ter acesso às críticas que fiz para as adaptações televisivas dessas peças, dirigidas por Jane Howell para a BBC: Henrique VI – Parte 1; Parte 2 e Parte 3.
  • Eduardo IV, casa de York: reinou de 1461 a 1470, e depois de vencer o revés de Henrique, de 1471 a 1483. Seu reinado e o de seu filho são trabalhado por Shakespeare em A Tragédia do Rei Ricardo III.
  • Eduardo V, casa de York: reinou por dois meses em 1483, com apenas 12 anos, mas nunca chegou a ser oficialmente coroado. Foi enviado com seu irmão Ricardo de Shrewsbury para a Torre de Londres em junho de 1483. Nunca mais foram vistos.
  • Ricardo III, casa de York: reinou de 1483 a 1485. Por ser o protagonista da obra, lhe dedicarei alguns parágrafos para comentar sua persona fictícia e histórica.

É sabido que Shakespeare fazia uso de crônicas históricas bastante populares para a composição de algumas de suas peças, em especial os dramas históricos. Mas como tudo em arte, a criatividade era mais importante e acabava soterrando a veracidade histórica, dando outros contornos e trazendo à tona eventos que jamais ocorreram. Como historiador, acho isso maravilhoso. A criação de uma versão para personagens reais constitui um filão curioso de análise, e muitas vezes, no caso de serem bem escritas, mostram-se retratos tão bem construídos da época e das pessoas que bem poderiam ser reais.

Assim, quando falamos da crueldade e falta de escrúpulos de Ricardo III, nos referimos mais à sua persona teatral do que histórica. Até hoje não há consenso sobre algumas coisas atribuídas a ele, como a possível ordem de assassinato de seus sobrinhos, na Torre de Londres; ou a morte de Henrique VI. Seja como for, o Ricardo de Shakespeare é mais interessante que o Ricardo histórico, por isso não importa que o bardo tenha inventado coisas, falas, lendas. Sua obra criou uma outra dimensão para o Rei em questão e ele sobreviveu nos palcos. Até hoje faz história.

O filme de Laurence Olivier

Olivier já tinha visitado a obra Shakespeare duas vezes antes de filmar Ricardo III. A primeira foi em 1944, com a adaptação de Henrique V; e a segunda em 1948, com Hamlet. Para alguém que dirigiu apenas 6 filmes, ter três adaptações de Shakespeare significa muita coisa, especialmente se estamos falando de um artista do porte de Laurence Olivier.

Ricardo III é a mais ousada de suas obras, tanto em técnica quanto em narrativa. Embora o roteiro seja o texto original de Shakespeare, Olivier (e/ou seu roteirista) tomou a liberdade de trocar alguns diálogos de lugar, suprimir outros e adicionar uma ou outra frase para dar sentido à sua versão da história, que é sublime.

O foco principal do filme é a ascensão política de Ricardo, no sentido mais literal que isso possa denotar. Diferente da peça, raros são os momentos em que o corcunda manco não está em cena, e nessas exceções, temos a execução de alguma ordem sua, que envenena o reinado de seu irmão e de seu sobrinho para enfim ser coroado. E “envenenar” o reinado de dois monarcas é dizer pouco. Ricardo é um orador, político e estrategista inescrupuloso e cínico, lançando mão da fraqueza e íntimos desejos humanos para conseguir o seu maior intento, algo pelo qual ele luta disfarçada e silenciosamente. Olivier toma essa realidade como mote do filme e deixa de lado as cenas de contexto para filmar uma espécie de linha do tempo do duque de Gloucester até a sua morte como Ricardo III.

O que primeiro chama a atenção do espectador é o inacreditável trabalho de fotografia e figurinos, que desde a cena de abertura nos enche os olhos. Era o primeiro filme em cores de Olivier e o desafio lhe serviu de trampolim para uma representação vívida e cheia de contrastes de cada membro da realeza britânica e cada cenário filmado.

Embora a maior parte do filme seja em internas, temos momentos louváveis de planos abertos em locação, modelo com o qual se destaca toda a reta final da obra, no campo de batalha com as tendas armadas, o enfrentamento dos Exércitos e a morte de Ricardo. A constante exposição de novidades visuais do diretor se estende até esse momento final, onde temos um trabalho visualmente notável, mostrando os dois lados do campo e o que acontece em cada um deles. Embora dramaticamente seja menos poderoso que a peça, principalmente a cena dos espectros profetas, esse momento do filme aglutina toda a dimensão da obra de Olivier e dá a Ricardo o ar decadente de vilão presentes a ser derrotado.

O interessante é que o diretor não perde a mão no que se refere ao desejo do corcunda em se manter no trono. Sua crise moral dura meia noite, e ele luta até o fim, numa demonstração patética e angustiante vinda com seus últimos suspiros de vida ainda desejosos de glória.

Mas toda essa força não seria possível sem a interpretação irrepreensível de Olivier. Tão bem quanto dirige o filme, ele dá vida a um Ricardo III como nunca se viu na grande tela. A começar pela adequação vocal, temos uma personagem volátil, dura e exímio enganador, que em cada espaço da corte se comporta de um jeito e planta a discórdia para se valer de suas consequências. Olivier alterna momentos de cólera com dóceis tons vocais em diálogos absolutamente cínicos, como o cortejo que faz a Lady Ana, no início do filme.

Um outro ponto notável em relação à atuação de Olivier é o modelo que ele adota para representar os solilóquios de sua personagem, falando diretamente para a câmera, mas sem adentrar ao campo em que o cinema dá lugar ao palco. Em momento algum perdemos a impressão de estarmos assistindo a um filme, embora haja ali características cênicas não próprias ou não mais utilizadas no cinema. Esse uso sutil e perfeitamente orgânico de técnicas teatrais é um exemplo de como o ator e diretor tinha conhecimento das duas artes em questão (teatro e cinema) a ponto de fundi-las em um produto sem aparência estranha.

Não há um único ângulo no filme que se possa denominar como incompreensível ou equivocado. E o melhor de tudo isso é que durante toda a projeção, somos presenteados com brincadeiras visuais que ajudam a construir o drama em cena, a começar pelo momento da coroação de Eduardo IV, no primeiro take do filme, onde temos uma sequência de quatro planos entre o trono do rei e o lugar afastado em que se encontra seu irmão Ricardo, coroando-se a si próprio e depois sendo observado com espanto pelo monarca. Adiciona-se a isso a composição fotográfica de Otto Heller, que faz do uso de sombras no chão, parede e no rosto das personagens, um modo de indicar elementos de suas virtudes ou maléficas características.

A experiência de ver um filme como Ricardo III é a mais gratificante possível. Além de um diretor e protagonista excelentes, a película ainda conta com um elenco estelar, todos com atuações maravilhosas (inclusive as crianças) e uma trilha sonora muitíssimo bem utilizada, composta por William Walton para o filme. Embora eu tenha algumas ressalvas em relação à batalha final e a cena da noite que a antecede, é impossível não admirar muitíssimo o filme por sua qualidade, pela força e foco da adaptação de Olivier. A obra nos traz um novo modo de olhar para o protagonista, fazendo, assim como Shakespeare, uma reconstituição histórica capaz de ser lembrada por gerações, uma espécie de protótipo artístico que caracteriza todas as obras universais, independente de qual arte estejamos falando.

Ricardo III (Richard III) – UK, 1955
Direção: Laurence Olivier
Roteiro: David Garrick e Colley Cibber (alterações textuais da peça de William Shakespeare).
Elenco: Laurence Olivier, Cedric Hardwicke, Nicholas Hannen, Ralph Richardson, John Gielgud, Mary Kerridge, Pamela Brown, Paul Huson, Stewart Allen, Claire Bloom, Patrick Troughton
Duração: 161 min.

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