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Crítica | Salò ou Os 120 Dias de Sodoma

por Marcelo Sobrinho
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Todos os acontecimentos – dizia às vezes Pangloss a Cândido – estão devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivesses sido expulso de um lindo castelo, a pontapés no traseiro, por amor da senhorita Cunegundes, se a Inquisição não te houvesse apanhado, se não tivesses percorrido a América a pé, se não tivesses mergulhado a espada no barão, se não tivesses perdido todos os teus carneiros da boa terra do Eldorado, não estarias aqui agora comendo doce de cidra e pistache. — Tudo isso está muito bem dito – respondeu Cândido, – mas devemos cultivar nosso jardim.

Voltaire em Cândido ou O Otimismo

Um aristocrata francês libertino, afeito aos maiores desvarios e com interesse particular na exploração da crueldade humana. Um cineasta italiano marxista e homossexual assumido, com um currículo repleto de polêmicas pelo conteúdo supostamente imoral de seus filmes. Em 1975, quando Pier Paolo Pasolini decidiu realizar uma adaptação cinematográfica para Os 120 Dias de Sodoma, novela do subversivo Marquês de Sade, o cinema viu nascer um dos filmes mais terrivelmente abjetos de toda a sua história. A crueldade infindável que marca o filme de Pasolini satisfaria facilmente as aspirações mais perversas do notório marquês. Se em O Evangelho Segundo São Mateus, Pasolini constrói uma obra que aponta para as alturas, ao retratar uma figura grandiosa com inigualável beleza, em Salò ou Os 120 Dias de Sodoma, ele descerá aos infernos mais pestilentos da alma humana para revelar nossa mais profunda e assustadora obscuridade.

Semelhante ao Inferno de Dante Alighieri, Pasolini divide seu filme em círculos. Mas o inferno pasoliniano não exige uma longa travessia pelo rio Aqueronte. Uma mansão na cidade italiana de Salò, durante o regime fascista de Mussolini, é o palco assombrosamente mundano onde se dá todo o enredo. Um grupo de fascistas resolve aprisionar dezesseis jovens, dentre meninos e meninas, para uma série de rituais sádicos durante 120 dias ininterruptos. Pasolini reconstrói a obra literária de Sade em outra perspectiva histórica e isso gerou interpretações reducionistas sobre suas intenções. Não acho que o diretor quisesse realizar um simples ataque à Igreja Católica ou aos regimes fascistas. Há ainda quem interprete Salò ou Os 120 Dias de Sodoma como uma dura crítica à sociedade capitalista. Não nego que a perseguição política e a homofobia que Pasolini sofreu possam ter sido uma motivação pessoal para atacar a hipocrisia que o cercava. Mas acho que colocar o filme nesses termos é limitar seu discurso filosófico.

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que tanto a obra de Sade como o filme de Pasolini não são só um desfile grotesco de obscenidades e bizarrices. O marquês foi visto durante muitos anos apenas como um autor escandaloso e pornográfico, que nada tinha a dizer dentro do debate filosófico. Aos poucos, Sade foi sendo descoberto como um autor relevante e com algo a contribuir para além de suas obscenidades. Voltaire, na magnífica obra tardia O Filósofo Ignorante, afirma que o bem é aspiração suprema da humanidade, inclusive quando o mal mais destrutivo é praticado. Como lembra o iluminista francês, nunca se rouba. Toma-se de volta o que é seu. Não se aniquilam pessoas. Eliminam-se os impuros que ameaçam as demais raças. Para Voltaire, de certo modo, o bem é a norma e aqueles que tem as mãos sujas de sangue acreditam realmente que o fazem em seu nome. É na contramão disso que surge Sade – para ele, o mal não é apenas um desvio da norma. Ele é a própria norma.

Entender isso é o primeiro passo para compreender Salò ou Os 120 Dias de Sodoma. Destaco o discurso dos quatro fascistas na sacada da mansão diante do grupo de jovens recém-chegados. Eles deixam claro a seus prisioneiros que os próximos meses serão de abuso, tortura e violação de toda sorte. O mal é exposto sem máscaras nem subterfúgios. O próprio physique du rôle do personagem Presidente, interpretado por Aldo Valletti, já acusa o estranho prazer que ele sente ao infligir dor ao outro. Seus olhos estrábicos e seu sorriso sardônico são traços assustadoramente bizarros. Em certo momento, diante de uma das moças, o Duque (Paolo Bonacelli) afirma: “Não pense que suas lágrimas me comovem. Elas só me dão mais tesão”. O mesmo Duque, após um estranhíssimo concurso de beleza, dispara uma arma descarregada contra o vencedor, que seria premiado com a morte. “Não será assim tão fácil. Você irá morrer muitas vezes aqui”, diz ele. Esses são apenas alguns exemplos do mal na perspectiva sadiana.

Para o elenco de seu filme, Pasolini escolheu vários não atores ou atores com pouquíssima experiência, algo que acontecia muito frequentemente no Neorrealismo Italiano. Não há grandes interpretações em seu último longa-metragem, à exceção possivelmente dos já citados Paolo Bonacelli e Aldo Valletti. Isso, contudo, não desabona em nada o filme. O cineasta italiano queria de seu elenco exatamente essa crueza e inexperiência em atuação, já que os rituais de tortura e depravação ocorrem com jovens assustados e indefesos, sem nenhuma possibilidade de reação. Ao contrário de filmes anteriores, como Teorema, Decameron e, principalmente, O Evangelho Segundo São Mateus, a obra derradeira de Pasolini não apresenta grande virtuosismo técnico. Quem esperava suas amplas panorâmicas e seus primeiros planos tão íntimos certamente se frustrou. Pasolini limita-se a registrar a crueldade humana in natura, sem embelezá-la. A ojeriza e o sofrimento são seu foco.

Há dois recursos, entretanto, que o cineasta utiliza para tornar ainda mais difícil a experiência de assistir a seu filme. O primeiro é a preferência por planos muito longos nas cenas mais cruéis. Pasolini economiza nos cortes. Assistir a Salò ou Os 120 Dias de Sodoma de um só fôlego é uma tarefa para corajosos e para quem tem nervos muito resistentes. É bastante compreensível que alguns precisem de uma pausa entre uma cena e outra. Outra estratégia do diretor é utilizar a trilha sonora quase sempre de forma diegética. A pianista da mansão impulsiona as sequências de terror físico e psicológico com prelúdios de Chopin, com especial destaque ao soturno Prelúdio em dó menor. Quase nada é externo ao que se passa entre as paredes da mansão. Nem a música que serve de tema para os intermináveis açoites.

O filme de Pier Paolo Pasolini continua sendo bastante detestado até hoje. A adaptação cinematográfica segue os passos de seu original literário. O Marquês de Sade, preso por muito tempo na Bastilha, foi rejeitado em vida tanto pelos absolutistas como pelos revolucionários franceses do século XVIII. Sua aversão à monomania filosófica do bem não seria aceita nem entre os revolucionários, que jamais suportariam a ideia do mal como o grande regente das ações humanas, incluindo as suas. Sade era excessivamente obsceno para estar entre monarquistas e corrosivamente cético aos olhos dos republicanos. Leibniz acreditava que há um cálculo infinito cujo resultado final é sempre o bem, mesmo no mais atabalhoado dos mundos. Voltaire acrescenta que isso só é possível se participarmos ativamente desse cálculo ou, como diz o jovem Cândido, se “cultivarmos nosso jardim”. Já em Sade, o bem é simplesmente uma impossibilidade. A conta dá errado. Sempre. Mas é nesse eterno desajuste que surge também a inusitada dança final, que o filme de Pasolini nos oferece como desafogo.

Salò ou Os 120 Dias de Sodoma (Salò o Le 120 Giornate di Sodoma) – Itália, 1975
Direção: Pier Paolo Pasolini
Roteiro: Pier Paolo Pasolini, Marquês de Sade, Pupi Avati, Sergio Citti
Elenco: Aldo Valletti, Paolo Bonacelli, Umberto Quintavalle, Giorgio Cataldi, Antonio Orlando, Bruno Musso, Caterina Boratto, Elsa de Giorgi, Helène Surgère, Sonia Saviange, Renata Moar, Ines Pellegrini, Franco Merli
Duração: 117 minutos

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