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Crítica | Samurai I: O Guerreiro Dominante

por Ritter Fan
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estrelas 4

Obs: Leiam as críticas de cada um dos filmes da Trilogia Samurai de Hiroshi Inagaki, aqui.

Toshirô Mifune é um ator normalmente conectado com a palavra “samurai” e com o nome do inesquecível diretor Akira Kurosawa. Mesmo aqueles que pouco conhecem seu vasto trabalho na Sétima Arte será capaz de fazer um ou outra ligação dessa natureza. Em 1950, Mifune estrelou o fantástico Rashomon, capitaneado por Kurosawa, em que ele vive um ladrão/ronin selvagem objeto de uma intrigante narrativa multifacetada. Esse foi o papel que catapultou o ator ao estrelato mundial e que sedimentaria a ponte existente entre ele, “samurai” e Kurosawa.

Acontece, porém, que Toshirô Mifune, ao contrário do que muitos pensam, fez mais filmes com Hiroshi Inagaki do que com Kurosawa, mas Inagaki, por ser bem menos conhecido no Ocidente do que Kurosawa, sempre fica nas sombras quando Mifune é mencionado. Mas esse é um erro que merece ser reparado. Inagaki é tão ou mais importante para a divulgação mundial dos filmes japoneses quanto Kurosawa. Afinal, ele, junto com Masahiro Makino e Daisuke Ito, foi um dos criadores da imagem cinematográfica do samurai, fugindo das lutas de espada com pesada coreografia inspirada no teatro kabuki e partindo para uma abordagem mais naturalista, mas sem perder a graciosidade dos movimentos.

O samurai vivido por Toshirô Mifune em O Guerreiro Dominante (título brasileiro ridículo para o simples Musashi Miyamoto no original) viria influenciar o próprio Kurosawa em seu Yojimbo – O Guarda Costas, de 1961, com o mesmo ator, tornando-se, assim, a base criativa para um sem-número de outros filmes. Inagaki sem dúvida sabia o tipo de material que tinha em mãos e o que desejava fazer com ele.

E o intrigante é O Guerreiro Dominante é o primeiro filme de uma trilogia épica abordando a vida de Musashi Miyamoto, samurai sem mestre que efetivamente viveu no Japão feudal do século XVII e que viria a se tornar um dos mais famosos de seu país, com 60 duelos registrados e absolutamente nenhum derrota. Sua influência direta é até hoje sentida, já que ele escreveu o ainda muito procurado e referenciado livro O Livro dos Cinco Anéis, obra que costuma ficar na mesma estante que A Arte da Guerra, de Sun Tzu. A trilogia é baseada no romance de Eiji Yoshikawa, publicado em jornal ao longo de mais de mil edições, além de uma peça teatral nele galgada.

E ainda mais intrigante é que Inagaki já havia filmado outra trilogia sobre o mesmo personagem histórico e a partir da mesma fonte (o livro de Yoshikawa) na década de 40, o que demonstra não só o perfeccionismo do diretor em voltar a material que já abordara para tentar melhorá-lo, como a importância da vida desse samurai para a cultura japonesa. Apenas por curiosidade, talvez seja importante ressaltar que Musashi Miyamoto é sujeito de dezenas e dezenas de outros filmes, além de mangás (Vagabond, de Takehiko Inoue, por exemplo), quadrinhos (Usashi Yojimbo, de Stan Sakai sendo um dos mais famosos), videogames (da Koei como um NPC) e até mesmo músicas, uma delas pelo grupo britânico de heavy metal Iron Maiden (Sun and Steel, do álbum Piece of Mind).

Mas, apesar da extremamente enriquecedora saga do personagem histórico, Samurai I: O Guerreiro Dominante sobrevive por seus próprios méritos, tendo amealhado, merecidamente, o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1955. Inagaki narra, nesse primeiro filme, a transformação do revoltado Takezo em Musashi Miyamoto. Acontece que aqueles que esperam um arco clássico, em que a mudança do personagem principal se dá logo antes do clímax, não encontrarão nada semelhante.

Inagaki, que co-escreveu o roteiro com Tokuhei Wakao, não está interessado no resultado final, mas sim no processo. E, apesar de abordar aspectos auxiliares da vida de Takezo para enriquecê-lo, seu foco mesmo é nele. Logo no início, quando vemos soldados do exército do clã Toyotomi marchando e a câmera, sem perder tempo, nos coloca em cima de uma árvore junto com o jovem Takezo (Mifune), desejoso de se juntar à luta. Seu amigo Honiden Matahachi (Rentarô Mikuni) também deseja o mesmo, mas sabe que não pode por ter família e ser noivo de Otsu (Kaoru Yachigusa). Mas Takezo é insistente e decide que vai de qualquer jeito, deixando Matahachi em uma sinuca de bico que, não demora, é resolvida com a promessa de Otsu que ela sempre aguardará seu amor voltar.

Quando a sequência inicial acaba, Inagaki nos arremessa diretamente para os estertores da Batalha de Sekigahara, quando Ieyasu Tokugawa derrota o clã Toyotomi e estabelece controle sobre o país. Os amigos são primeiro vistos na pouco nobre função de cavar trincheiras e, depois, apesar da valentia demonstrada, logo se vêem diante da derrota fulminante. São sequências rápidas, mas que o diretor dirige como uma azeitada orquestra sinfônica, fazendo uso de muitos extras – cavalaria e infantaria – e uma fotografia que, fazendo o uso máximo que a profundidade de campo do formato 4:3 permitia, é uma sucessão de belos quadros muito bem compostos do primeiro ao último plano.

Logo, porém, voltamos a um escopo mais intimista, com Takezo e Matahachi feridos, sendo albergados por duas mulheres, mãe e irmã. Os eventos transcorrem de maneira que firmamos a imagem de selvageria de Takezo e de docilidade de Matahachi em nossas mentes até que eventos acabam separando os amigos. Honrado, Takezo volta à sua vila natal de Miyamoto para avisar à mãe de Matahachi que, apesar da derrota do clã, ele ainda estava vivo. Mas ele é recebido como inimigo do povo e passa a ser percebido de maneira inclemente.

Não há, confesso, uma lógica perfeita no roteiro apresentado. O encadeamento de eventos parece apressado nesses momentos, forçando a conclusão de que obviamente Takezo deveria ser caçado como inimigo público número um. Mas essa obviedade passa longe do que vemos em tela. O espectador não se confundirá com os acontecimentos, pois eles são simples e diretos, mas poderá estranhar a progressão.

Inagaki, porém, por intermédio da fotografia do então já veterano Jun Yasumoto, deslumbra no espetáculo. A composição das sequências aprofunda o tom naturalista dos combates e há o sadio abuso da profundidade de campo que vimos logo no início, na já citada Batalha de Sekigahara, também na floresta aos arredores da aldeia e especialmente no momento de fuga de Takezo e Otsu por uma encosta com vegetação alta.

O crescimento da selvageria do personagem é palpável. Mifune é, em partes iguais, homem caçado e animal acuado. Ele ataca com mais força na medida em que mais inimigos o cercam. Quando sua guarda baixa, é capturado por um monge budista que aparentemente quer seu bem e, mesmo por vias tortas, catalisa sua transformação final em Musashi Miyamoto. Quando Mifune emerge do castelo Hideji, nos últimos momentos do filme, com o samurai andarilho, não há como não sentir um arrepio na espinha. Trata-se da imagem clássica do samurai, aquela que, mesmo sem sabermos de onde vem, está sedimentada em nosso subconsciente. Vemos as camadas de sabedoria e conhecimento que ele tem e que ele ainda quer ter fluindo por todos os seus poros, mas também vemos suas dúvidas e sua tristeza.

Inagaki não nos permite testemunhar, porém, o passo-a-passo da crisálida se transformando em borboleta. Ele nos apresenta ao produto final depois de um desvio narrativo que parecerá estranho novamente. Mas vejam, Samurai I é efetivamente o começo do caminho, não o fim. Ele foi construído para ser a primeira parte de uma trilogia que poderia muito bem ser assistida ininterruptamente, um filme atrás do outro. Funciona como um filme com começo, meio e fim, auto-contido? A grande verdade é que não. Há narrativas paralelas que simplesmente acabam, sem um fim satisfatório ou não. Contudo, será que isso impede que a obra de Inagaki seja apreciada de forma estanque? A resposta é novamente negativa. Samurai I: O Guerreiro Dominante pode não se fechar em si mesmo completamente, mas em termos de desenvolvimento do personagem objeto da atuação antológica de Toshirô Mifune, a fita é exemplar.

Samurai I: O Guerreiro Dominante (Miyamoto Musashi, Japão – 1954)
Direção: Hiroshi Inagaki
Roteiro: Hiroshi Inagaki, Tokuhei Wakao (baseado em romance Eiji Yoshikawa e peça de Hideji Hôjô)
Elenco: Toshirô Mifune, Rentarô Mikuni, Kurôemon Onoe, Kaoru Yachigusa, Mariko Okada, Mitsuko Mito, Eiko Miyoshi, Akihiko Hirata, Kusuo Abe, Eitarô Ozawa, Akira Tani
Duração: 93 min.

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