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Crítica | Seara Vermelha, de Jorge Amado

por Leonardo Campos
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Seara Vermelha, de Jorge Amado, publicado em 1946, é um dos itens do vasto patrimônio dramático do escritor explorado pela universidade e pelas produções da era da reprodutibilidade técnica. O livro é uma das obras menos visitadas e a que mais se apropria da estética do romance de 30, período da literatura brasileira conhecido como o marco da presença dos signos referentes à região Nordeste: cactos, cangaço, messianismo, terra gretada e as imagens que habitam o imaginário brasileiro no que se refere à seca do Nordeste. A história não se passa na Cidade da Bahia nem em seu Recôncavo: é no sertão que o enredo vai se desenrolar.

O escritor responsável por personagens icônicos como Gabriela, Dona Flor, Tieta, Tereza Batista e os marginais representados em Capitães da Areia também esboçou sobre o sertão, utilizando-se de efeitos poéticos para descrever a miséria do nordestino. Na leitura do romance Seara Vermelha, percebemos as nítidas apropriações das obras anteriores do romance de 30, numa espécie de pastiche dos escritores do seu tempo.

O espaço físico representado em pelo narrador é perfurante como A Bagaceira e O Quinze, os personagens são retirantes em busca de um lugar melhor para se viver, como em Vidas Secas, bem como movidos pelo determinismo que manipula algumas ações em Pedra Bonita e Cangaceiros, e, obviamente, adornado por descrições da terra sertaneja presentes em Os Sertões.

A literatura brasileira já havia registrado um momento regionalista na época do Romantismo, através das obras O Sertanejo, de José de Alencar, publicado em 1875, e O Cabeleira, de Franklin Távora, datado de 1876, mas é com a publicação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que estas representações ganham maior visibilidade, ecoando nas mais diversas produções culturais do século XX e alcançando a contemporaneidade, além de ter encontrado ressonâncias no romance de 30, período conhecido pela prosa engajada de escritores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Jorge Amado e Rachel de Queiroz. Escritores como Érico Veríssimo e Dionélio Machado também publicaram muito nesse período, mas não são alvos do “modelo” de representação pretendida por esta análise.

Nas obras do romance de 30 é possível percebermos um amadurecimento do naturalismo da literatura regionalista anterior ao movimento, diversos escritores retomaram esse espaço como local de representação dos seus personagens: em 1928, A bagaceira, de José Américo de Almeida, tratava do triângulo amoroso entre Soledade, uma retirante da seca, Lúcio e Dagoberto. Através da explicitação de dados sociológicos e poetização dos elementos da seca, o autor reiterava, através do espaço literário, as informações contidas na terra euclidiana. Em O Quinze, publicado em 1930, Rachel de Queiroz narrava a seca de 1915, vivida por ela e pela sua família, dividindo a narrativa em dois núcleos: a família do vaqueiro Chico Bento e a relação amorosa entre Vicente, rude homem da terra sertaneja, e Conceição, uma professora, todos estes, personagens habitantes de uma região seca, de terra gretada, insípida e atrasada. Graciliano Ramos, principalmente em Vidas Secas, de 1938, contava a saga dos retirantes Fabiano e Sinhá Vitória, ornamentando a narrativa através de sinestesias, aproximando o leitor da seca e do calor vivido pelos personagens sertanejos, complementando com elementos da flora exaustivamente ilustrada por Euclides da Cunha no primeiro capítulo de Os Sertões.

No mesmo ano, José Lins do Rego publicava Pedra Bonita, romance que capitalizou na questão do cangaço, oferecendo novas abordagens do homem sertanejo, ganhando, inclusive, continuação, Cangaceiros, romance publicado em 1953, enfatizando a saga messiânica no sertão nordestino. Na mesma linha, em 1946, Jorge Amado publicava Seara Vermelha, romance que tratava dos retirantes nordestinos buscando mudanças em direção ao sudeste brasileiro, não poupando o leitor de descrições poetizadas do espaço sertanejo: cactos perfurantes, terra e clima que queimavam a pele e a moral de todos.

Seara Vermelha foi escrito quando Jorge Amado era Deputado Federal do Partido Comunista. É no prólogo que o escritor vai propor os seus temas e assuntos, traçando também o panorama dos seus personagens e conflitos, bem como as marcas da narrativa.  Logo na abertura do romance, as citações de Castro Alves, Engels e Luís Carlos Prestes tornam possíveis as constatações de que a história perpassa o tecido sinóptico do romance de 30, com foco na exploração do trabalhador rural, desigualdades sociais e as intensas lutas pela liberdade e pelo ideal comunista.

A obra tem também por característica a estética naturalista, e, como afirma o pesquisador Durval Muniz de Albuquerque Jr, surge como uma pintura fiel dos quadros sociológicos, documentos científicos que embasariam uma reinvindicação revolucionária. É um nordeste da literatura de cordel, com as suas tradições populares, lendas, contos e mitos que deviam ser resgatados para a construção das imagens de Nordeste para o país e para a região. É o que, nas palavras do autor, podemos chamar de dizibilidade e visibilidade, mas que ao mesmo tempo que denuncia, serve como embasamento para a difusão de estereótipos que ilustram os discursos sobre a região até os dias atuais.

A primeira parte é a que dá impulso ao êxodo. Jorge Amado segue, inclusive, um direcionamento muito similar à saga de Euclides da Cunha. É nas primeiras páginas do romance que o espaço é poeticamente narrado, assim como em Os Sertões, temos a terra como preâmbulo da apresentação do espaço.

O novo proprietário de uma antiga fazenda nos sertões do Nordeste baiano despede sumariamente todos os agregados ali existentes, admitidos pelo antecessor, inclusive o velho Jerônimo e sua mulher Jucundina, moradores radicados nas terras há vinte anos. Sem outra opção, eles decidem emigrar “em busca do país de São Paulo” e, entrouxando todos seus pertences nos costados do jumento Jeremias, partem, a pé, os onze parentes: Jerônimo e a mulher, os dois filhos restantes, Agostinho e Marta, os três netos, Tonho, Noca e Ernesto, sua irmã insana Zefa e seu irmão João Pedro com a família, Dina e Gertrudes, numa longa, como descreve o narrador, “viagem de espantos”. No caminho, muita aridez, como no seguinte trecho, como podemos ver no trecho: “Agreste e inóspita estende-se a caatinga. Os arbustos ralos elevam-se por léguas e léguas do sertão seco e bravio, como um deserto de espinhos. Cobras e lagartos arrastam-se por entre as pedras, sob o sol escaldante do meio dia. São lagartos enormes, parecem sobrados do princípio do mundo, parados, sem expressão nos olhos fixos, como se fossem criaturas primitivas. São as cobras mais venenosas, a cascavel e o jararacuçu, a jararaca e a coral. Silvam ao bulir dos galhos, ao saltar dos lagartos, ao calor do sol. Os espinhos se cruzam na caatinga, é o intransponível deserto, o coração inviolável do Nordeste, a seca (…)”.

Esses personagens padecem de fome, sede, luto, perigos e doenças, até atingirem Juazeiro, para embarcarem de navio em demanda a Pirapora, pelo rio São Francisco. As características dos personagens são tecidas de acordo com as malhas do espaço literário, As mesmas mulheres sem beleza nas faces cansadas. Enchendo o deserto da caatinga com suas vidas desesperadas, com seus ais de dor, seu passo abrindo picadas que logo se abrem em espinhos”.  Ao chegar ao local, estão em péssimas condições. Acomodam-se numa fazenda de café, restando da família apenas quatro pessoas: Jerônimo, Jucundina, João Pedro e o garoto Tonho – os outros morreram ou desencaminharam durante a árida diáspora,

Na segunda parte do romance, intitulada As estradas da esperança, a narrativa se desloca para os três filhos homens de Jerônimo e Jucundina: José, João e Juvêncio, ocupando-se dos destinos dos três filhos do casal que haviam deixado a casa, na fazenda nordestina, antes da dolorosa retirada.

João, o primogênito, deixara o campo para  atuar na Força Policial do Estado, sendo posteriormente engajado à tropa mandada ao sertão para liquidar o acampamento do beato Estêvão, ao qual acorreu também, mas para defendê-lo, o célebre bandido Lucas Arvoredo, em cujo bando atuava o famigerado Zé Trovoada, que outro não era senão José, o seu irmão, segundo filho do casal Jerônimo e Jucundina, que havia se tornando cangaceiro.

O terceiro filho, Juvêncio, deixou os seus pais ainda adolescente em busca do chamado mundo distante, tendo-se alistado na Polícia Militar de um Estado vizinho e de pronto incorporado ao batalhão de partida para sufocar a Revolução Constitucionalista em São Paulo, onde, depois de tudo apaziguado, ingressa no Exército, indo servir em Mato Grosso. Após longas viagens, é transferido para Natal, conhece Lurdes e participa do levante comunista como um dos seus líderes. Eis o destino da família retirante do romance Seara Vermelha.

As descrições do espaço mais próximas das convenções do romance de 30 estão na primeira parte do livro. A terra gretada e a aridez são descritos nos moldes euclidianos, surgindo como preâmbulo para a formação do caráter de alguns homens locais, bem como dos conflitos posteriores. É seguindo esta linha de raciocínio que percebemos a maneira que Amado dá forma ao Nordeste de Seara Vermelha: são imagens da dor, da seca, da falta de rumo daqueles retirantes postos na caminhada do sofrimento. Como apontou o pesquisador Aurélio Lacerda, na pesquisa Imagens e representações do Messianismo na Seara de Jorge Amado, são os tons e matizes do sertão, num romance onde o narrador os coloca como numa espécie de síntese do que já foi dito pelo discurso regionalista que ganhou impulso através do Manifesto Regionalista, publicado por Gilberto Freyre, em 1926.

Seara Vermelha (Brasil) — 1946
Autor: Jorge Amado
Editora: Record (1979, com ilustrações de Carlos Scliar)
400 páginas

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