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Crítica | “Sheer Heart Attack” – Queen

por Luiz Santiago
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estrelas 4,5

Uma coisa eu aprendi ao longo dos anos: ou você vai encontrar pessoas que simplesmente amam Sheer Heart Attack ou você vai encontrar pessoas que simplesmente odeiam o álbum. Os meio-termos são raros e, mesmo assim, sempre haverá certo ressentimento por parte dessas pessoas com a banda, dizendo que ela “faz algo muito estranho” nesse disco.

Dá pra entender uma coisa dessas? Sim, dá.

Algo que sempre escapa à maioria das pessoas que ouvem este 3º álbum do Queen é que se trata de um produto eclético e de um ponto de virada essencial para a carreira da banda. A partir daqui temos nos lançamentos do Queen um som imediatamente reconhecível em todo o projeto, e este foi o disco que exibiu pela primeira vez, de forma exata (Queen II foi “apenas” o ganho de independência para que o quarteto chegasse a este ponto) uma identidade que enfim ganhava foco, para surgir em toda sua glória na magnus opus deles no ano seguinte: A Night at the Opera. Aqui, a “Fórmula Queen” ainda não existia, mas este é o ‘momento antes’, tanto em estilo quanto em fama, já que com o sucesso colossal de Killer Queen e os sucessos um pouco menores mas ainda assim notáveis de Now I’m HereLily of the ValleyFlick of the Wrist, a banda encontrou os holofotes, o reconhecimento da crítica e estabeleceu o seu pódio de apelo comercial que nunca mais perderia, mesmo nos chamados “discos menores” que viriam depois.

Portanto, a contrariedade de muita gente a Sheer Heart Attack vem dessa relação pouco harmônica com a virada de jogo musical e estilística da banda (sentimento compreensível, convenhamos), especialmente porque estamos diante de um disco que de fato explode gostos e cabeças com tanta variedade para caminhos musicais e estilísticos diferentes, tais como vaudeville, rock pesado, opera rock, baladas e as já experimentais misturas de jazz e blues conhecidas deles. E isso porque o grupo tinha a ideia de fazer experimentações, mas, desta vez, com uma proposta “simples”, isso dentro do “padrão Queen”, claro. No fim das contas, mesmo que Sheer Heart Attack não seja, de fato, um “álbum simples”, ele é mais acessível às massas que os dois álbuns anteriores da banda, por exemplo.

Maré de Azar e Maré de Sorte

Após o lançamento de Queen II o Quarteto da Rainha teve uma agitava rotina, tanto nos preparos para a gravação de Sheer Heart Attack, que saiu oito meses depois, com na turnê pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos, iniciada em 1º de março de 1974 e terminada em maio do mesmo ano, um mês antes do início das gravações de Sheer Heart Attack. Então Brian May ficou doente, completando mais uma onda do jogo de “maré de azar e maré de sorte” que a banda vinha tendo desde o final do ano anterior.

No último show da turnê do álbum Queen, em Sunbury, Austrália, em 02 de fevereiro de 1974, May foi infectado com uma agulha de vacina e teve o braço esquerdo gangrenado, com uma breve ameaça de amputação. Ele se recuperou do susto, enfrentou a fustigante turnê de Queen II e, em julho de 1974, já durante as gravações de Sheer Heart Attack, foi novamente hospitalizado, com úlcera no duodeno, e precisou ser operado. O músico chegou a declarar: “Eu ficava na cama, me sentia doente e triste porque pensava que o grupo iria em frente sem mim“… Assim que saiu do hospital, May acrescentou a guitarra ao material gravado pela banda até aquele momento, fazendo um trabalho invejável e completando o já complexo fluxo de ideais musicais em jogo no disco, a maior parte delas, incitadas pelo visionário produtor Roy Thomas Baker.

LADO A

Música circense, sons de multidão e, ao fundo, uma guitarra em fade in que marca o ritmo para o falsetto de Freddie Mercury, seguido de destaques pontuais para a guitarra de May, que aqui fará o LEGENDÁRIO solo que ele vinha “cozinhando” há 5 anos. Esta é Brighton Rock, a abertura do disco. May moldava a ideia geral deste solo desde a época da banda Smile, em uma canção chamada Blag (se puder, ouçam). Já em Queen, na canção Son And Daughter, havia a intenção de adicionar um solo aprimorado, porém a ideia foi posta de lado e só aqui, em Brighton Rock, apareceu inteira. É o maior solo de guitarra em uma canção que o Queen já gravou e, pra ser sincero, é o que realmente importa na canção, pois dá a ela a identidade de toda uma geração de rock clássico que a banda agora metamorfoseava em outra coisa.

De uma pegada meio funk para três guitarras em ritmos diferentes, temos a introdução que é aprimorada no final do primeiro minuto da música (com um excelente acompanhamento da bateria de Taylor), trazendo aumento do tempo e fazendo algo que deixaria muito guitarrista babando pelos anos seguintes, porque a coisa é realmente inimitável, tanto pela sequência cromática, overdubs, escolhas das afinações e ritmos utilizados, quanto pela velocidade, técnica semi-alien e truques que May utilizou e que qualquer um pode comprovar ser igualmente impressionante nas apresentações ao vivo.

Killer Queen, um dos mais inteligentes pop rock já gravados e uma das melhores canções do Queen, mostra a marca do perfeccionismo vocal de Mercury, tanto pessoal, quanto nos coros ou vocais de apoio dele e do restante da banda, e traz a curiosa história de uma prostituta de luxo cujo nome, Killer Queen, pode ter várias interpretações. A canção tem um adereço de music hall que é a cara de Mercury e de certa forma definiu — por ter se tornado o hit do disco — algumas atenções dele para esse tipo de canção.

As coisas ficam igualmente interessantes na canção de Roger Taylor que vem a seguir, Tenement Funster, a primeira balada do disco, que possui três versos e um coro com melodias inteiramente diferentes mas dentro de uma mesma progressão de acordes, o que a torna fácil, curiosa e bastante agradável de cantar ou ouvir, tendo, claro, uma forte proximidade com o público. Apenas a parte do solo traz harmonias diferentes. É uma ótima forma de colocar uma letra sobre “juventude rebelde” dentro de um arranjo musical que lhe fez todo sentido. E a música na verdade nem termina, ela está ligada, em suas últimas notas, com a faixa seguinte, Flick Of The Wrist, que não é uma canção comum. E não digo isso porque especula-se que o indivíduo aí seja o empresário Norman Sheffield, com quem o grupo teve problemas, mas porque se trata de uma espécie de medley, uma canção iniciada com acordes de outra faixa e inacabada, pois suas últimas notas fecham o ciclo em outra balada (desta vez, para piano), a belíssima Lily of the Valley, que traz à tona o universo mágico, onírico e sombrio de Rhye (corrompendo a visão cristã normalmente atribuída à expressão “Lírio do Vale”), um reino inventado por Mercury já no primeiro disco da banda, na canção My Fairy King, e que ele revisitou (agora com letra) no segundo disco, em Seven Seas of Rhye. Brian May expressou, numa entrevista de 1999, um pensamento curioso sobre a interpretação dessa canção:

[…] muitos dos pensamentos privados dele estão lá. Lily Of The Valley  foi de uma sinceridade total. É sobre olhar para a namorada e perceber que seu corpo precisava estar em outro lugar.

Este lado do disco termina com Now I’m Here, uma canção inteiramente esperada para uma banda de hard rock e que possui um ciclo viciante formado por refrão/mino-coro/repetições/ponte… e uma complexa forma de produção, com vocais de apoio em diferentes colorações, vozes-eco, ligação entre os pequenos solos de guitarra e uma letra apaixonada. É a ideia de “simplicidade” do Queen em cena em seu mais alto gosto popular, dançante e intoxicante.

LADO B

A ideia geral de execução em ciclo reaparece aqui nas canções que abrem e fecham este lado do disco. A primeira, e mais fraca, é In The Lap Of The Gods, que eu particularmente acho uma bobagem total. Gosto muito da execução, sei da declaração de Mercury sobre ela ser um “prelúdio direto” de Bohemian Rhapsody, mas não consigo digerir a bobagem da letra, que me incomoda demasiadamente. Agora vejam a sensacional In the Lap of the Gods… Revisited, que fecha o disco. Ela, por sua vez, é um “prelúdio direto” de We Are the Champions, com toda aquela ideia de “coro de estádio” que faz qualquer um querer cantar a plenos pulmões, mesmo quando está ouvindo o disco em casa. É uma balada popular, com coro intenso e letra bastante significativa para a maioria das pessoas. Que ótima maneira de terminar o disco, né é mesmo?

Predecessora do moderno speed metal, Stone Cold Crazy, que dizem ter sido composta por Mercury enquanto ele fazia parte da banda Wreckage (mas os créditos da faixa vem exatamente o nome dos quatro integrantes do Queen, o que era raro — aliás, é a única canção do álbum com créditos para os quatro), é um verdadeiro convite para “dançar rock’n’roll“, ou seja, dificilmente alguém consegue ouvi-la sem balançar a cabeça marcando o tempo da canção em companhia de Roger Taylor.

Em Dear Friends, o piano é tocado por Brian May (a canção é dele) e tem uma carga afetiva enorme. Trata-se de uma música bastante simples, a mais simples desse lado do disco, uma perfeita canção de ninar. Ela não foi pensada para impactar, mas para refletir, para fazer respirar/suspirar. E funciona muito bem. Eu mesmo já coloquei inúmeras vezes meus afilhados para dormir cantarolando ou tocando esta canção. Dá certo que é uma beleza.

Misfire foi a primeira música composta por John Deacon e traz o estranho charme de toda primeira composição tem. É uma canção de amor tão estranha quanto She Makes Me (Stormtrooper in Stilettos), de Brian May. Essa estranheza, no entanto, é a única coisa que as duas compartilham, pois, ao passo que Misfire tem aparência anticlimática, She Makes Me traz a mágica do folk em tempo lento e consegue crescer através de uma repetição inicial para algo vibrante, com direito a dissonância final e uma sirene de ambulância, que foi gravada enquanto May estava hospitalizado, no início da gravação do disco.

Por fim, Bring Back That Leroy Brown, que definitivamente marca o início da segunda fase da banda, que era fazer de tudo um pouco e com qualidade, revisitando o passado e dando-lhe uma nova interpretação com os novos ares/estilos do presente. Há diversidade de vozes gravadas e conectadas com acelerações diferentes, há o banjo de Brian May, o baixo extremamente dinâmico de John Deacon e uma sequência de voltas com coro, isolamento de voz e semi-declamação que é um divertimento só.

***

Sheer Heart Attack foi um momento marcante para o Queen. De maneira curiosa, o álbum tem algumas canções praticamente desconhecidas do grande público mas outras que, ao terem seus primeiros acordes tocados, são imediatamente identificadas. Plural e ao mesmo tempo simples (por ser mais “pop”) e complexo (porque estamos falando do Queen), o disco permanece como um documento vivo de uma banda que renascia dentro dela mesma. Um álbum para dar ataques cardíacos em diferentes dimensões musicais, tanto para quem o ama, quanto para quem o odeia.

***

Nota sobre fontes: eu traduzi trechos de informações em entrevistas com os membros da banda para diversas redes de TV e rádio ao longo dos anos; compilei informações técnicas específicas expostas no livro Queen – História Ilustrada da Maior Banda de Rock de Todos os Tempos, de Phil Sutcliffe (e também de encartes de CDs, documentários de DVDs e livros que acompanham os boxes Especiais da banda); trouxe diversas informações sobre decisões ou discussões de bastidores, processo de criação das músicas, uso específico de instrumentos, descrição de cenas da produção dos discos, estilos ou comparações entre canções de diversas Eras da banda através de um processo criativo de caráter biográfico do documentário Queen – Days of Our Lives e também de artigos em diversas páginas ligadas à banda, aos estúdios e principalmente aos produtores dos discos.

Aumenta!: Killer Queen
Diminui!: In The Lap Of The Gods
Minhas canções favoritas do álbum: Killer Queen e Lily Of The Valley

Sheer Heart Attack
Artista: Queen
País: Reino Unido
Lançamento: 8 de novembro de 1974
Gravadora: Hollywood Records
Estilo: Rock, Rock Progressivo, Hard Rock

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