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Crítica | Shortbus

por Luiz Santiago
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Shortbus não é mais um filme sobre o universo homossexual (ou apenas sexual) e tudo o que o cerca. Tampouco é uma apologia ao sexo descompromissado ou à pulsão descontrolada, ao suicídio, ao voyeurismoShortbus é antes de tudo, um filme sobre as crises humanas com base em seus instintos vitais e, tendo em vista o modo narrativo e a temática, é um dos melhores exemplares de sua geração sobre esse tema central e questões transversais.

A trama foca em um grupo de pessoas de diversas inclinações sexuais da cidade de Nova York, após o atentado ao WTC, em 2001. Mas em vez de levar para a tela a nudez apelativa ou o “dramalhão dos excluídos”, o filme avança o sinal do convencional e parte para a formação estético-realista de um tema que transita entre a sensibilidade e o grotesco. Toda a “burguesia novaiorquina” é retratada entre o atípico e o estereótipo das personagens da obra em seus espaços de fuga e opressão: um apartamento, uma clínica, a boate ‘Shortbus‘, um banco em frente ao mar, uma sauna, e, raramente, a rua. Ao fazer um filme sobre instintos e neuroses, sobre relacionamentos complexos e a dificuldade de relacionar-se com o outro e com o mundo, Mitchell privilegiou os espaços internos, trazendo as “prisões internas” para fora.

A partir da abertura, observamos o caminho nada usual que o diretor escolheu: em aquarela, a cidade de Nova York é percorrida por uma câmera aérea revelando, pouco a pouco, o que se passa atrás das janelas e das portas. A invasão da privacidade das personagens coloca o espectador em diálogo imediato com a obra, formando um tipo de cumplicidade ociosa. O espectador é cúmplice e refém das atitudes eróticas nada comuns que se passam nos diferentes bairros da cidade. Em uma primeira impressão, as taras, o sexo e a nudez são o mote de Shortbus, o que talvez possa ter reduzido o potencial analítico do filme frente a espectadores que atentaram apenas para este viés da trama. É daquelas armadilhas que alguns roteiros carregam e que podem forçar o filme a se auto-minimizar em favor de uma situação-destaque sem a qual não existiria filme (como acontece em Pecado da Carne, de Haim Tabakman, por exemplo). Apesar da predominância dos deleites dionisíacos que em certas cenas são completamente dispensáveis, o que impera desde a abertura é o desespero. A busca pelo prazer é mais uma fuga da realidade do que uma libido em potencial, tanto que a “solidão” das personagens e as constantes crises de consciência que culminam em choro ou tentativa de suicídio correm paralelas a toda libertinagem de Shortbus.

Já citamos que a exposição do nu e do sexo em algumas sequências poderiam ter sido cortadas na edição e não afetariam o núcleo narrativo do filme. Entretanto, ver isso como um ingrediente da exposição do “mundo íntimo” das personagens (mais uma vez, a fuga), pode ajudar a não condenar por completo esses “excessos”. De forma bem simples, sem pender para o politicamente correto ou escracho total, o roteiro desenrola partículas de histórias que se juntam, se dissipam e voltam a se juntar, sempre com a ausência da esperança. A mácula do desespero social, a guerra no Iraque, a opressão purista imposta pelos valores sociais são problemas estruturais que massacram a levam as personagens de Shortbus a refugiarem-se nos fluídos do outro, embora o desalento posterior mostre que a “cura” é apenas temporária; o que leva a história para um ciclo vicioso.

SPOILERS!

Apenas um elemento dramático se resolve em Shortbus: o da terapeuta que nunca teve um orgasmo. O último take do filme é um primeiríssimo plano de seu rosto em êxtase, que dá lugar a uma explosão de luz, um fade-out branco e, em seguida, a ideia de que ela “conseguira”: as luzes voltam a se acender na cidade inteira, após horas de blackout (que metáfora linda, não?). Mas todo o resto dos problemas apontados permanecem na linha da possibilidade de voltarem a acontecer. O clímax de Shortbus é o mais puro clímax-melancolia felliniano: uma drag queen canta, uma fanfarra toca e todos festejam, apesar da melancolia da música; alguns, se “encontram” naquele momento, mas, como em Fellini, fica a dubiedade da desesperança permeando a felicidade.

A firmeza e a verossimilhança do roteiro não seriam tão expressivas e correntes sem o papel criador da montagem, que neste filme, serve como um laço que lentamente se aperta em torno de pequenas personalidades. Na última sequência, parecemos presenciar a teoria da grande rede: todos se conhecem, já se viram em algum lugar ou possuem uma teia de amigos que os podem ligar a qualquer pessoa do filme.

A fotografia de Frank G. DeMarco é um espetáculo à parte. O predomínio quase monocromático da cor e textura em ambientes específicos (o verde, os tons térreos, o vermelho, o branco) incita a claustrofobia e intensifica a emoção. A narrativa da câmera é muito bem executada, todos os enquadramentos se enlaçam — atenção especial para toda a sequência final do filme.

Além do apuro técnico, há ainda a adição de outros formatos e uso de tecnologia para a “ligação” das personagens, na forma interna. O filme dentro do filme, produzido pelo personagem de Paul Dawson (James) é outro elemento que funciona como fuga, já que se trata dos momentos felizes passados ao lado de Jamie ou de sua infância, uma ação genuinamente romântica no sentido literário da palavra. A isso se somam um figurino personalístico e uma fenomenal trilha sonora, que serve de metáfora e complemento cênico. Não é a toa que as duas músicas finais, apesar de irem do clássico de câmara ao circense cheio de melancolia (à la Nino Rota), falam mais e melhor do que se houvessem páginas e páginas de diálogos.

Em um tempo onde o sexo e a sexualidade perpassam tantas visões estranhas em Hollywood, John Cameron Mitchell toma um atalho e apresenta um trabalho que agrada tanto aos mais preocupados com questões de aparência e amenidades fúteis, quanto aos que se importam com algo que vai além do nu. Shortbus é o grito de uma geração, a faceta que mostra o reverso do desejo e da atitude, um filme que explora e disseca o prazer da solidão em grupo.

Shortbus (EUA, 2006)
Direção: John Cameron Mitchell
Roteiro: John Cameron Mitchell
Elenco: Sook-Yin Lee, Paul Dawson, Lindsay Beamish, PJ DeBoy, Raphael Barker, Peter Stickles, Jay Brannan, Alan Mandell, Adam Hardman, Ray Rivas, Shanti Carson, Justin Hagan, Jan Hilmer, Stephen Kent Jusick
Duração: 101 min.

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