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Crítica | Solaris (1972)

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

Nós não precisamos de outros mundos. Nós precisamos de espelhos. Nós não sabemos o que fazer com outros mundos. Um único planeta, o nosso, nos é suficiente; mas nós não conseguimos aceitar isso do jeito que é.

Stanislaw Lem
.

Andrei Tarkóvski vinha de duas experiências excepcionais no cinema com os seus dois primeiros longas, A Infância de Ivan (1962) e Andrei Rublev (1966), mas até Solaris (1972), nunca havia conseguido sucesso comercial. Considerado por muitos críticos e espectadores como uma “resposta” a 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) — filme que Tarkóvski disse só ter visto depois de Solaris; e que achou “estéril” — este terceiro longa do diretor russo trata da materialização de desejos ou projeções físicas do inconsciente, ligando-se, pelo caráter dessas manifestações, a pesares e luto dos cientistas da Estação Espacial na órbita do Planeta Solaris, incitando o medo, o desespero e a tentativa final de se ver livre desses “tormentos” (leia-se: de momentos indesejados ou complexos de suas vidas).

Na primeira parte, a mais fraca do filme (com aquela interminável e inútil sequência do carro pelas ruas da “cidade futurista” — na verdade, Akasaka, um distrito de Tóquio –, cuja função é simbolizar a ida de Kris para o espaço, mas seu efeito não é esse, devido o corte que vem a seguir), temos os acontecimentos da véspera de viagem do psicólogo Kris Kelvin (Donatas Banionis) para a Base de Solaris, onde investigaria o relato de um piloto que estivera muitos anos calado sobre o que se passou quando tentava sobrevoar o grande oceano do planeta (superfície de aparência peculiar, conseguida pelo diretor através de acetona, pó de alumínio e corantes).

Um erro comum de algumas pessoas ao analisarem esse aspecto do filme é destacar que Solaris fora “recentemente descoberto”, o que não é verdade. Existe, inclusive, um ramo inteiro da ciência chamado “Solarística”, que se dispõe a analisar os efeitos do Oceano local, e isso não se forma com algo “recém descoberto”. O depoimento do piloto e os relatórios da Estação Espacial também indicam que já a muitos anos os terráqueos vem tentando buscar vida naquele planeta.

Mesmo que todo o restante o filme se afaste da obra literária na qual foi baseado (o livro de Stanislaw Lem), esse elemento de comunicação permanece, embora passe despercebido por alguns espectadores. Para um Oceano senciente, a forma de comunicação era a manifestação de figuras da mente dos humanos próximos, mas isso certamente assustava os humanos. No momento em que Kris está na base — e após o bombardeamento da superfície — o Oceano parece entender esses anseios e, ao invés de enviar “visitantes”, cria ilhas em sua superfície, concentrando inúmeras lembranças dos que estão em sua órbita. Uma das interpretações possíveis para o final do filme é que Kris ou desceu para uma dessas ilhas, ou se matou e se foi “de volta à casa”, reencontrando o pai e reconciliando-se com ele, numa pose prostrada que nos lembra A Volta do Filho Pródigo,de Rembrandt.

Em essência, Solaris é uma jornada, mas não do tipo imersivo que o diretor nos traria anos depois, em Stalker (1979). A filosofia e o mergulho propostos pelo roteiro de Solaris está no resgate da memória, com destaque para o psicólogo Kris, mas com presenças aliadas a outros profissionais da Base, antes e durante sua estadia. É uma pena que o texto não explore esses elementos de forma homogênea, ou descentralize um pouco a narrativa de Kris para Snaut ou Sartorius. Contudo, a narrativa mantém a força e chega ao ponto principal, que é mostrar como o isolamento (aqui, podemos entender essa palavra de diversas formas) pode forçar no homem o desejo, a lembrança ou a necessidade de alguma coisa. É com esse vazio existencial que o filme trabalha, fazendo com que o Oceano de Solaris preencha tal espaço da melhor maneira que pode. O problema é que vem à tona a discussão sobre o que é real e o que não é; e até que ponto é “saudável” aceitar esses visitantes como parte da vida cotidiana. Como era de se esperar, não existem respostas fáceis.

Tarkóvski não quis utilizar trajes espaciais, afirmando que qualquer coisa que fizesse nessa área, iriam rir de seu filme dali a 30 anos. Por isso Solaris é um filme cru, dos figurinos à direção de arte e fotografia, que apresenta monocromatismo azul para cenas do passado; sépia ou iluminação plástica levemente saturada para lembranças afetuosas; e com o mínimo de variedade de cores para a Base, sendo o ambiente menos estéril desse bloco, a biblioteca. Se um dos focos do filme é a comunicação ou a materialização de desejos “ocultos”, percebam a jogada da direção de arte e de Tarkóvski na sequência da biblioteca, o lugar de contato do homem com a razão, e onde existe uma das discussões mais instigantes da fita. A mesma crueza e bagunça da Base servem para ressaltar o abandono do lugar e mostra que o contato desses cientistas com os seus “visitantes”, por tanto tempo, tirou deles a capacidade de querer coisas novas. Se o passado e a memória nos dominam; se podemos ter materializado tudo aquilo que desejamos, deixamos de criar e não podemos mais existir [lembrem-se do mesmo dilema existencial discutido em Star Trek: The Cage].

As raízes do protagonista aparecem espalhadas pela Base, e sua personalidade, assim como a dos outros tripulantes, são parcialmente demonstradas através dos figurinos. Atentem para as cores e para os modelos. O elemento futurista não está lá. Há muito mais ligação desses trajes com a Terra do que com o espaço. À medida que o filme se aproxima do final, os figurinos se rasgam, se sujam e todos são fortemente marcados pela intensificação das atividades do Oceano. Uma atmosfera coberta de ID parece dominar tudo, em paralelo com o crescimento do medo de cada personagem, cientes de que todo esse “prazer negado” do seu exterior é “demais” para eles. Não à toa o suicídio vem à tona. Novamente, lamentamos o fato de o roteiro deixar os visitantes dos outros personagens de fora, mas ainda assim, o drama entre Kris e Hari dá conta de expressar essas múltiplas camadas.

Com economia de trilha sonora e interessante maneira de representar jornadas individuais entre a ciência e o torpor das memórias materializadas, temos ainda a indicação de uma gradação desses sentimentos, mostrados nas paredes do lugar mais “isento de bobagens”, novamente a biblioteca. Ali, vemos os quadros da série Os Meses, de Pieter Bruegel, o Velho, todos pintados em 1565. A tela de maior destaque é a belíssima Os Caçadores na Neve, mas a câmera também passa por O Dia Sombrio, A Colheita do Feno, Os Ceifeiros e O Retorno do Rebanho. Não é preciso saber muito sobre História da Arte ou dos simbolismos das pinturas para entender que a escolha desses quadros teve como objetivo metaforizar o lado oposto à razão, a jornada “que não deveria ser feita” por Kris ou qualquer outro cientista da base, mas que acabou vencendo, pelo menos para a maioria dos que lá estiveram.

E depois de muito tempo de entrega e visitas, o corte para uma realidade que só o espectador poderá dizer qual é. O melhor tipo de final imaginado para uma obra com este peso, pois nos coloca exatamente onde deveríamos estar: sob influência de Solaris, vendo na cena final aquilo nosso subconsciente gostaria ou desejaria ver. Em Solaris, nós também passageiros. E estamos em uma posição ingrata, onisciente por um ponto, mas totalmente impossibilitados de falar sobre a realidade ou “alucinação” do que vimos. Aí reside a interpretação final obra. Um peso e um prazer para qualquer espectador.

Solaris (URSS, 1972)
Direção: Andrei Tarkóvski
Roteiro: Fridrikh Gorenshteyn, Andrei Tarkóvski (baseado na obra de Stanislaw Lem)
Elenco: Natalya Bondarchuk, Donatas Banionis, Jüri Järvet, Vladislav Dvorzhetskiy, Nikolay Grinko, Anatoliy Solonitsyn, Olga Barnet, Vitalik Kerdimun
Duração: 167 min.

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