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Crítica | Sono de Inverno

por Karam
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I. O Reinado de Aydin – Presenças

Meu reino é pequeno. Mas ao menos… me sinto um rei.

 

Aydin é um ex-ator que se orgulha em dizer que nunca sucumbiu às garras da televisão. Seu amor e sua dedicação, no passado distante, eram todos direcionados ao Teatro, uma Arte Maior. No tempo presente de Sono de Inverno, ele imerge e banha-se e vive-se em Literatura, outra Arte Maior. Através dela, remonta mentalmente um pouco de seu passado: pretende publicar um livro, “um calhamaço” – segundo suas próprias palavras –, intitulado A História do Teatro Turco. É um homem de classe, de gosto refinado. O seu conhecimento é seu único amigo, mas ao mesmo tempo também é seu único inimigo real: é O Saber que produz e alimenta tanta distância em sua vida. Proximidade, no mundo particular de Aydin, existe apenas em relação às palavras. E essas palavras ferem, mordem, exterminam o que há de beleza simples nos pequenos momentos de seu cotidiano. A mulher, Nihal, e a irmã, Necla, são reféns dessa Presença Palavreada. Mas também elas sabem matar com A Fala.

O sorriso de Nihal não encontra os olhos de Aydin. Os poucos momentos em que os lábios da mulher se ajustam de forma a desenhar contornos de felicidade em sua face, são aqueles em que Aydin não a observa, ou não está por perto. A presença do marido é como a presença das palavras: sufocante.

Não há como se desprender por completo de quem já é parte de nós. E por mais que aquele casamento esteja em ruínas, há uma espécie de aura de desamor-angústia que sustenta sua conveniente existência: Nihal tem em Aydin a fortaleza que lhe providencia aconchego e lhe dá a oportunidade de fazer o seu trabalho de caridade sem precisar preocupar-se com a situação financeira; Aydin tem em Nihal uma mulher para chamar de sua, e uma presença física para lhe iludir com a ideia de que sua casa não é vazia. Ambos são tristes juntos, pois juntos configuram-se em um corpo solitário, distante de si. Haveriam eles de se separar, e assim repartirem sua solidão, amenizando-a ao transformá-la em duas solidões? Não: a única coisa que Aydin e Nihal sabem compartilhar em sua vida a dois é a solidão. Reparti-la seria desistir de tudo o que resta. Será?

Aydin não tem domínio de seu reino.

 

II. A Reflexão Como Atividade Suprema – Diálogos

A montanha pariu um rato.

 

Essa complexidade de relações humanas é o que faz de Sono de Inverno a obra majestosa e inigualável que é. Raríssimas vezes um filme – mesmo que de mais de 3 horas de duração… – conseguiu, através da construção da narrativa, envolver seus personagens em confrontos tão reais, instigantes e infinitos de possibilidades. Seja entre Aydin e Nihal, entre Nihal e Necla ou entre Necla e Aydin, os diálogos (que transitam entre dicotomias e são sempre ácidos, indo do cômico ao trágico com facilidade, ao mesmo tempo em que cruzam a comicidade e a tragédia com brilhantismo em determinados momentos) soam o tempo inteiro como uma bomba relógio: as intenções por trás deles ficam escondidas, à margem de palavras que dizem muito para esconder muito mais – até que há a explosão. O embate entre ideias díspares e sentimentos conflitantes – que preferem fingir que não existem até que haja um estímulo que os faça reagir (e explodir!) – gera momentos de pura tristeza contida; pequenas vontades reveladas; ódios despertos; remorsos descobertos.

Os personagens de Sono de Inverno, todos, querem algo, e aos poucos revelam o que querem. O que jamais fazem é revelar como querem. Trata-se de uma dinâmica de jogo de intenções que é parte vital de nossas vidas, e na maioria das vezes é ignorada por roteiristas quando estes escrevem diálogos para momentos de conflito em filmes de personagem. O fato é que é sempre mais cômodo atirar-se ao óbvio para que o espectador identifique viradas no plot ou justificativas para mudanças no comportamento dos personagens, no entanto a presença da sutileza enriquece não só cenas isoladas, mas toda a narrativa do filme, que depende de uma dramaturgia consciente e inventiva para fazer valer sua ambição em termos cinematográficos. Sono de Inverno utiliza-se da sutileza com maestria durante todo o seu tempo de projeção, e os diálogos longos, reflexivos, filosóficos e primorosos fazem com que o peso das temáticas que o filme abarca se acomode perfeitamente em sua estrutura, orquestrada por uma carpintaria narrativa precisa.

De todos os magníficos diálogos do filme, talvez o mais significativo em termos de condução dramática seja aquele sobre “não se opor ao mal”, provocado por Necla. É importante ressaltar que, quando a irmã de Aydin começa a expor sua excêntrica teoria, não a conhecemos nem um pouco. Não sabemos de seu passado, de sua história. Não conhecemos sua forma de lidar com as coisas. E não a vimos falar sobre o que a afeta… ainda. Então, a princípio, assim que Necla passa a confrontar o irmão com ideais ousados, a entendemos automaticamente como uma espécie de força da natureza, segura de si. Não podíamos estar mais enganados: Necla é um furacão que tenta se controlar, mas nem sempre é bem-sucedido em suas tentativas. Ou seja: ela é humana.

Em uma sequência longa e absolutamente genial, que se passa toda no escritório de Aydin, há o embate definitivo entre o escritor e sua irmã: enquanto Aydin trabalha em um artigo e pede a opinião de Necla acerca de seus escritos, perpassa-se uma tensão implícita que cada vez mais vai migrando para o campo do explícito conforme as reais intenções de cada personagem vão se deixando escapar. Ao final, o que começa como uma discussão de aspecto puramente profissional transforma-se em um descarrego cruel de rancores, que desestabiliza intensamente os dois irmãos.

* Alguns momentos de destaque do diálogo:

– “é uma especialista em crítica silenciosa”, diz Necla sobre Nihal – e mais tarde perceberemos como Necla estava certa, ao testemunharmos Nihal dar voz a toda a mudez crítica que guardou tanto tempo consigo.

– “a montanha pariu um rato”, diz Aydin, em uma analogia sobre a decepção que ele se tornou para sua irmã devido à vida desprovida de emoções que leva, apesar de seus dons artísticos – e mesmo morando em uma paisagem de cinema, na península anatoliana, Aydin fica boa parte do tempo de projeção de Sono de Inverno trancado em seu aposento, como um rato, trabalhando e não sendo ninguém.

– “acho que você odeia a mim, não a meus artigos”, diz Aydin para Necla – de fato, as críticas da irmã são implacáveis em sua honestidade crua, e o ódio à arte se confunde com o ódio ao artista e à pessoa do artista.

– “eu tenho que ir à mesquita para escrever sobre religião?”, questiona Aydin quando confrontado com a ideia de que precisaria vivenciar o objeto de análise para que fizesse jus à veracidade dos fatos – e é nesses momentos que percebemos que Necla atingiu seu irmão profundamente: no ato de desmerecer sua arte, ela está também o desmerecendo por completo.

– “há maneiras de chorar que você não conhece”, diz Aydin para Necla quando insultado por ela com a afirmação de que ele não chorou pela morte do pai – é quando a conversa em códigos chega onde queria chegar: os dois irmãos estão falando, afinal de contas, de coisas mal resolvidas entre eles, e não de arte.

– “a reflexão como atividade suprema!”, suspira então Aydin – o arco dramático do diálogo é perfeito… e culmina num silêncio esmagador, que destrói os poucos laços que ainda haviam entre aqueles dois.

Sono de Inverno é o tipo de filme que merece uma tese que faça jus à sua significância e complexidade quase literária, pois uma crítica ou um ensaio jamais serão capazes de cobrir o vasto campo invernal de uma narrativa tão grandiosamente detalhista como esta.

 

III. Sono de Inverno – Paisagens

Sou um homem simples, mas o pior é que quero continuar assim.

 

A fotografia nos interiores é amarelada: podridão, desgaste, velhice.

Do lado de fora, o azul e o cinza do inverno.

Planos longos e contemplativos, que compreendem diálogos reveladores, instrumentos que dão voz às contradições da condição humana.

Silêncio.

Um pouco de piano. Melodia tímida, que surge e some com a mesma casualidade.

Naturalismo.

O cavalo é liberto, e corre na intensa neve de tom azulado.

Sono de Inverno é denso, carregado até o plano final – que mostra o inverno em toda a sua plenitude, até então ocultada pelas lentes sábias do diretor e roteirista Nuri Bilge Ceylan.

(…)

E Aydin não se opõe ao mal, até porque todos os possíveis destinos à sua frente parecem lhe encaminhar para longe do que é bom – cada vez mais perto do frio do inverno, que lá fora o congela e o obriga a ficar dentro de casa… congelado pela letargia de ser a única pessoa que ele sabe ser: ele mesmo.

Sono de Inverno (Kis Uykusu) – Turquia, 2014
Direção:
Nuri Bilge Ceylan
Roteiro:
Nuri Bilge Ceylan, Ebru Ceylan
Elenco:
Haluk Bilginer, Melisa Sözen, Demet Akbag, Ayberk Pekcan, Serhat Mustafa Kilic, Tamer Levent, Nejat Isler, Nadir Saribacak, Mehmet Ali Nuroglu, Emirhan Doruktutan
Duração: 196 min

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