Home LiteraturaConto Crítica | Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha (Primeiras Estórias), de João Guimarães Rosa

Crítica | Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha (Primeiras Estórias), de João Guimarães Rosa

por Luiz Santiago
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Se existe algo que realmente une as pessoas, este algo é a dor. A pessoa que sofre — que genuinamente sofre — emana uma necessidade especial que faz com que os outros ao seu redor chorem com ela, compadeçam-se de suas desgraças, procurem ajudá-la, confortá-la de alguma forma. Nós temos empatia pelo sofrimento. E é justamente essa relação que observamos em Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha, conto que faz parte do livro Primeiras Estórias (1962), de João Guimarães Rosa.

Ao retratar uma espécie de “história de um Jó mineiro“, Rosa abre as portas para um encontro do povo de uma determinada cidade com a dor de um dos habitantes mais peculiares do lugar, um homem alto, de voz que colocava medo nas crianças… o “Senhor-louco“, o “Senhor-oco“: Sorôco. Hábil artesão de palavras, Guimarães Rosa começa a sua narrativa com a descrição do espaço, o lugar onde o “aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera […]”. De pronto, entendemos que não se trata de um vagão comum e na mesma página, descobrimos quem ele veio buscar. Duas mulheres que devem partir naquele vagão (em algum momento do conto comparado a um navio… o flerte com o Navio dos Loucos, de Hieronymus Bosch engrandece ainda mais a cena), a verdadeira imagem do destino do qual não se pode correr.

Ao saber que Sorôco não tem mais ninguém ao seu lado, que sua família é a mãe e a filha, o leitor inconscientemente cria uma ligação empática com o homenzarrão. E mesmo antes do desfecho absurdamente emotivo, num verdadeiro coral de solidariedade para com a desgraça alheia (e também de encontro com a loucura do outro), nós temos a primeira nuance da tal “cantiga de desatino“. A moça, da qual Rosa não tira o brilho e compara seu olhar direcionado aos céus “como os do santos“, é quem traz essa toada e rapidamente é acompanhada pela velha senhora vestida de maneira simples, de preto, a verdadeira imagem da morte — notem a clara oposição entre as duas mulheres loucas, em diferentes idades da vida; notem a forma como Guimarães Rosa dá profundidade e sentido ao Ser dentro delas: cor e tipo de roupa, postura, comportamento… tudo fazendo valer a comparação entre “casório” e “enterro” — e como o destino de ambas estará ligado, em pouco tempo, ao destino da cidade inteira.

À medida que o texto nos apresenta disparidades como a comparação da caminhada de Sorôco “dando o braço a elas, uma de cada lado“, percebemos que o povo se mantém fortemente preocupado em mostrar-se são o bastante para se diferenciar daquelas que serão levadas pelo trem do sertão, às 12h45min. Há uma forte veia analítica diante da qual  este ponto do conto pode ser explorado — via Foucault –, mas cabe apenas dizer que o autor utiliza a apresentação e desenvolvimento do acontecido para inserir ambiguidades, mostrar alguma desfaçatez do povo que inicialmente queria fugir do Sol e procurava ficar em baixo das árvores de cedro. E não, a escolha do tipo de árvores aqui não é à toa: o cedro evoca nobreza e simboliza imortalidade, aquilo que é incorruptível. É como se acompanhar as loucas fizesse o povo (que “não queriam poder ficar se entristecendo“) precisasse reafirmar que eram diferentes, que eram sãos.

A mudança dos indicativos de tempo dão a clara sensação de fechamento de ciclo, logo após a aproximação das duas diante do carro. Evoca-se exclusão de alguns e de ajuntamento e cumplicidade de outros. O melhor, porém, é o pensamento que podemos tirar da cena final do conto, uma das mais tocantes e ricas cenas da nossa literatura. A loucura compartilhada indo até onde ia a cantiga de desatino. Eu gosto bastante da noção do duplo e da variação de humor que Guimarães Rosa localizou em momentos muito precisos do enredo, fazendo com que a tal derradeira cantiga “de não sair mais da memória […] um caso sem comparação” — e agora não mais entoada pela moça louca ou pela louca velha de preto, mas continuada por Sorôco e depois por toda a gente –, quisesse dizer muito mais do que apenas solidariedade. Um fim com uma cínica, calorosa e intrigante cumplicidade.

Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha (Brasil, 1962)
Em: Primeiras Estórias
Autor: João Guimarães Rosa
Editora original: José Olympio
Outras editoras: Nova Fronteira
Arte da capa original: Luís Jardim
5 páginas

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