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Crítica | “Spirit” – Depeche Mode

por Giba Hoffmann
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Martin Lee Gore já por mais de uma vez, em suas entrevistas, aludiu jocosamente ao fato de que fundou sua carreira como compositor principal do Depeche Mode sobre dois grandes temas gerais, que as vezes são um só –  dor e sexo. Eu não saberia dizer se essa é uma avaliação precisa, mas é uma caricatura poderosa que o autor desenha a respeito de si mesmo. Mesmo quando a relação a tais temas não é tão evidente quanto nos hits oitentistas Master & Servant (1984) e Strangelove (1987), ela sem dúvida se faz presente, mesmo que de forma delicadamente velada, nos conhecidos versos de Enjoy the Silence (1990), canção que começou como uma balada depressiva e se tornou, a contragosto do compositor, um absurdo hit dançante que continua a vibrar os estádios lotados pelos quais a banda passa, mais de duas décadas depois; ou ainda na fusão do grunge-gospel-eletrônico do álbum Songs of Faith and Devotion (1993), peça conceitual onde os temas favoritos de Gore são elaborados na relação com a espiritualidade. Suas letras frequentemente são perpassadas por um inusitado existencialismo sartreano que celebra as próprias angústias, seu segredo sendo, pelo menos em parte, o de saber fazer reverberar musicalmente este falso pessimismo, distorcendo a beleza gelada e apática da música eletrônica alemã com um toque do divertido sarcasmo do eletropop britânico.

Fora o primeiro disco, onde a identidade musical da banda se encontrava ainda fortemente vinculada à figura de Vince Clark (que deixou a banda logo após o álbum de estreia, indo fundar posteriormente o Yazoo e o Erasure), talvez a obra que mais destoasse deste conjunto até então fosse Construction Time Again (1983), o terceiro álbum da banda que percorria de forma mais direta temas ligados à sociedade e à política, refletindo um amadurecimento inicial dos jovens que deixavam a provinciana Basildon e conheciam o mundo louco dos anos finais da Guerra Fria. Após adentrar sua quarta década de carreira com dois álbuns percorrendo uma destilação, sempre experimental, de seus assuntos usuais, contando com uma participação mais ativa do sempre vocalista e agora compositor Dave Gahan, com as maiores inovações temáticas sendo a contemplação do tema da finitude (Little Soul, Peace, Heaven), refletindo um eu lírico ainda romântico mas já amadurecido e sofrendo das dores do tempo, eis que surge Spirit (2017), décimo quarto álbum de estúdio da banda e que, de maneira surpreendente, propõe-se a falar novamente sobre política e sociedade, no bojo de um momento de crise mundial das democracias representativas. Tirando alguns mergulhos pontuais no tema, como em John the Revelator (2005), trata-se de uma revolução lírica para a banda, a qual tem efeito imediatamente visível sobre a musicalidade do álbum.

Going Backwards começa de forma brilhante o manifesto, sendo um hino que parece continuar diretamente da deságua do blues-eletrônico de Delta Machine (2013), desenvolvendo-se progressivamente em uma forma levemente caótica de si mesmo, enquanto constata em seu embalo confiante: “we can track in all the satellites  / seeing all in plain sight / watch men die in real time / but we have nothing inside”.

Where’s the Revolution, single inicial do trabalho, já apresenta a marca forte da produção de James Ford (Simian Mobile Disco, The Last Shadow Puppets; produtor de Arctic Monkeys, Florence and the Machine, Mumford & Sons). O jogo de vozes e synths, ao mesmo tempo em que soa novo e contemporâneo, faz uso da conhecida dinâmica cíclica do instrumental e vozes, em uma canção poderosa e que progride e alterna diferentes atos, unidos pelo questionamento dúbio do título, que deságua na forma ainda mais sarcástica da bridge: “the train is coming / get on board”. O vídeo, dirigido como de praxe por Anton Corbjin (responsável também pelas garratujas que ilustram a capa do disco), ilustra bem o tom da música com uma simbologia bem direta.

The Worst Crime embala o vocal próximo e vibrante de Gahan com acordes de guitarra e percussão minimalistas. A figura de James Ford surge aqui também, com a ambientação soft e suja da música lembrando algumas das canções mais lentas do Arctic Monkeys, como 505, de Favourite Worst Nightmare (2007). A sonoridade renovada nos aprofunda na revolução temática, com Gahan cantando versos pessimistas sobre a sociedade atual.

Scum já aparece imediatamente como outro ponto de destaque para o álbum. Partindo de uma sonoridade contemporânea e distorcendo-a sob o estilo característico da banda, poderia-se dizer que a faixa se assemelha à uma contraparte infernal de Angel, do álbum anterior. O bass sujo, pesado e pulsante complementa um vocal obsessivo e vertiginoso, que parece recriar tenebrosas vozes internas que ordenam: “Pull the trigger!”

You Move, raro caso de co-autoria entre Gahan e Gore, retoma um pouco do techno analógico e obscuro das faixas mais pop da banda. Sua localização no álbum parece coloca-la à distância do restante da obra, como se reverberasse os prazeres de um momento que não o agora.

Cover Me é obviamente uma composição de Gahan, soando imediatamente como algo saído de seu mais recente álbum de estúdio em colaboração com o Soulsavers, Angels and Ghosts (2015). Sua produção é precisa de tal forma que ela se reveste perfeitamente do instrumental característico do Depeche Mode, ao contrário do acabamento acústico do projeto paralelo do compositor, o efeito sendo uma progressão envolvente e cativante.

Eternal serve como um interlúdio sombrio, onde Gore assume os vocais e chuta para longe o balde da sutileza, cantando num misto confiante e envolvente de resignação e sarcasmo a respeito do amor às beiras do apocalipse

Poison Heart, outra composição de Gahan, traz novamente as marcas de seu trabalho solo, com um eco distante da influência gospel de seu álbum mais recente, adicionado a um eletrônico contemporâneo em continuidade com a agressividade de Scum e com o blues lânguido da fase Delta Machine (2013)

So Much Love cumpre um papel semelhante a You Move, um techno-rock analógico que lembra em temática e sonoridade algo dos materiais da banda da primeira metade dos anos 2000, em especial o álbum Exciter (2001)

Poorman é outra canção marcante, um pessimismo piedoso em que se contempla sardonicamente uma figura deplorável, como o personagem de Barrel of a Gun (1997) ou Useless (1997), porém em um tempo mais lento do que nestas, arranhando acordes sujos de guitarra que acompanham um instrumental analógico distorcido reminiscente de Playing the Angel (2005)

No More (This is the Last Time) é outra composição fortíssima de Gahan, combinando perfeitamente a musicalidade do Depeche Mode contemporâneo com um instrumental analógico que lembra os primeiros trabalhos da banda, em uma canção ao mesmo tempo intimista e espiritual.

Fail encerra o álbum de forma magistral, trazendo à vida com perfeição o arquétipo da tradicional canção melódica interpretada por Gore, que até então só dera as caras no curto interlúdio de Eternal. Por entre o desapego cínico da letra, que garante com convicção que toda esperança se foi, a beleza da melodia e o tom de apelo fazem brilhar nas entrelinhas o tradicional otimismo obscuro no autor, provando ser uma escolha de efeito para encerrar o álbum de forma especialmente provocativa.

Spirit se prova um lançamento robusto, concreto e mais do que bem-sucedido para a banda, que como bons músicos que são mostram-se dispostos a se arriscar em territórios ainda inexplorados de seu som, numa mistura eficiente de diferentes momentos de inspiração de seus trinta e sete anos de carreira. A sutileza da progressão das canções faz com que seja uma audição um pouco mais lenta do que Delta Machine (2013), que pega fogo imediatamente à primeira ouvida. Trata-se de um álbum que continua a cantar oblíqua e romanticamente as angústias do viver, sob um desvio temático e sonoro que soa novo e familiar, ao mesmo tempo.

Aumenta!: Going Backwards, Poison Heart, Fail
Diminui!:

Spirit
Artista: Depeche Mode
País: Estados Unidos / Reino Unido
Lançamento: 17 de março de 2017
Gravadora: Columbia, Mute Records
Estilo: Alternative Rock, Electronic Rock

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