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Crítica | Spotlight: Segredos Revelados

por Matheus Fragata
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Obs: alguns pontos da narrativa serão abordados, mas nada que comprometa a sua experiência com o filme.

2001 foi um ano bastante conturbado para os Estados Unidos. Enquanto terroristas atentavam contra a liberdade americana, a redação reservada do caderno Spotlight do Boston Globe arquitetava uma das maiores reportagens investigativas da História que, inclusive, ganhou o importantíssimo Prêmio Pulitzer. O tema era extremamente sensível, ainda mais em Boston – cidade com forte presença católica. Em 6 de janeiro de 2002, o Boston Globe revelou décadas de abusos sexuais e pedofilia cometidos por padres da Arquidiocese de Boston com a comunidade local. Porém, o tamanho do escândalo era tão gigantesco que logo tornou-se mundial.

Logo de início percebemos que o longa é um ponto fora da curva. Como se ele não pertencesse a nossa época, mas que ainda assim, clama por sua existência. O subgênero de dramas focados no jornalismo já foi celebrado com filmes inesquecíveis como Todos os Homens do Presidente, Zodíaco, Cidadão Kane, Boa Noite e Boa sorte, Os Homens que não Amavam as Mulheres, Frost/Nixon, etc; Porém, o paralelo mais óbvio e significante para se traçar com Spotlight é com Todos os Homens do Presidente por sua similaridade de síntese e construção da narrativa.

O que Josh Singer e Tom McCarthy, também diretor do longa, nos trazem é a mesma proposta: os bastidores da notícia, os percalços, sacrifícios, conflitos e batalhas para fazer essa história ser publicada. Para isso temos múltiplos protagonistas – sempre uma faca de dois gumes, que constituem a equipe do Spotlight, um caderno especializado em furos de reportagem que levam meses para publicar suas histórias. Além deles, há outros personagens secundários responsáveis pela editoria e outras redações do jornal na tentativa de conferir um senso de união entre todos os jornalistas do Boston Globe.

A proposta do diretor e o texto dos roteiristas já é clara desde o início do filme. Eles pretendem trabalhar no realismo. Bazin ficaria orgulhoso de tão realista que esse filme é. Não há floreios em Spotlight. Tudo é nu e cru. Logo, como quase tudo na vida, essa característica possui dois pontos: o positivo e o negativo.

O positivo é que a história é extremamente fiel aos fatos, aos seus personagens, aos desdobramentos dos acontecimentos, além de termos a vantagem de observar diversos pontos de vista e relacionamentos dos personagens. Por outro lado, o filme é frio, os ápices narrativos são mornos, os personagens não se tornam as figuras complexas como eles deveriam ser, além de simpatizarmos pouco ou nada com eles, afinal, eles são apenas estranhos inseridos em uma boa história, além de praticamente só observarmos eles trabalhando incessantemente. O fator realista também não contribuiu muito já que a construção da matéria, apesar de ter sido trabalhosa, não oferece grandes emoções aos jornalistas.

Spotlight merece ser, no mínimo, parabenizado em trazer esse tom nada romanceado para um filme de grande abrangência. Logo, o estranhamento inicial, a quebra da expectativa por algum ápice dramático que raramente vem, o ritmo lento e, por vezes, cansativo do longa é perfeitamente normal. Isso tudo é inerente ao filme.

Também, pelo formato, não foge dos clichés em descrever as odisseias dos jornalistas em conseguir as dicas certas, sobre os debates éticos originários pelo acontecimento, a busca por personagens, o informante que não dá as caras, mas oferece relatos chocantes e vitais para a investigação, as tentativas de “suborno”, o personagem decisivo que se recusa a colaborar, mas que no fim cede ao firmar amizade com o jornalista, etc. Enfim, é a fórmula clássica desse nicho narrativo acompanhada de seus tantos clichés seja por bem ou mal.

Porém, um dos maiores trunfos do filme são os relatos dos entrevistados que foram molestados na infância. Os depoimentos são chocantes como deveriam ser – ótimas atuações do elenco de apoio, e revelam muito do modus operandi dos pedófilos e da preferência pelas vítimas. Na verdade, todas as sequências que fogem em se concentrar no elenco protagonista são mais fortes. Uma pena que elas sejam raras, breves e um tanto mal aproveitadas.

Para fugir um pouco da estrutura rígida desse nicho de filmes, os roteiristas arranham algumas discussões que moldam mais sobre o retrato da época. No caso, a iminência do crescimento da internet, da mudança de fazer jornalismo, da obsolescência de cadernos como o Spotlight que levam meses para desenvolver uma história ou do jornalismo investigativo, do nascimento das notícias rápidas e descartáveis, do fim próximo da mídia impressa de médio porte como o Boston Globe.

Também arriscam em oferecer arcos diferentes como a reflexão de alguns personagens sobre como aquelas revelações afetam seu passado, suas escolhas e seu estado emocional. Além de também trabalharem um arco sobre o processo que o jornal moveu contra a Arquidiocese para tornar, de fato, documentos de uma moção movida contra um sacerdote nos anos 1980 em arquivo público como deveria ter sido feito na época.

Uma pena que a maioria dessas boas propostas não passem da superficialidade limitando-se a diálogos rasos. Já o arco do processo é um tanto confuso assim como as diversas transições entre pontos de vista diferentes dos protagonistas, embora que isso seja da alçada do diretor do filme em tornar o processo mais coeso, orgânico.

Muito do marketing desse filme, além do tom premonitório sobre as premiações no Oscar, vem do elenco principal que é comentado incessantemente pela publicidade e também pela crítica. E realmente, é um ótimo trabalho vide a limitação em trabalhar com o realismo. Ou seja, a maioria do elenco desenvolve atuações intimistas que revelam, em suas sutilezas, características de seus personagens que não são abordadas pelo roteiro – se dependesse do texto, todos seriam pessoas amorfas fazendo um trabalho como qualquer outro.

A meu ver, quem realmente se destaca mesmo entre todos os outros é Mark Ruffalo que muito provavelmente receberá seu merecido Oscar pela performance. Ruffalo interpreta o jornalista esquisitão Mike Rezendes, praticamente o único que se afeta emocionalmente de modo relevante durante suas descobertas perturbadoras. O ator modula a voz, o sotaque, para soar estranho. Sua feição também não é muito simpática e seu olhar, psicótico, mas obstinado. Tudo isso torna o personagem mais complexo e apaixonante.

Contracenando sempre com Ruffalo, Stanley Tucci também oferece um prisma diversificado para Mitchell Garabedian, um promotor tão esquisito quanto o jornalista afobado. Tucci trabalha no conforto ao modelar Garabedian como um cara carrancudo, antipático e descrente no sistema no qual trabalha, mas mesmo assim Tucci está ótimo como sempre.

Já Michael Keaton e Rachel McAdams completam as atuações de destaque. Keaton interpreta Walter Robinson, o editor do Spotlight. Trabalhando de modo bem menos intenso do que o apresentado em Birdman, Keaton confere olhares cansados ao personagem de fala mansa e cauteloso. McAdams também elabora características razoáveis para sua personagem sempre preocupada, de cabeça cheia e com o cenho franzido. O resto do elenco traz boas performances para o rendimento limitado de criação.

Em 2015 tivemos casos espetaculares de diretores que foram do estado de zé roelas para heróis cinematográficos. Cito três, Andrew Jarecki – fez o exemplar The Jinx, Adam McKay com o fenomenal A Grande Aposta e Tom McCarthy. Para quem não faz ideia, o filme anterior de McCarthy foi Trocando os Pés, uma das chanchadas americanas de Adam Sandler. Então imaginem a surpresa quando vejo este cidadão a dirigir logo o filme favorito do Oscar.

Assim que o longa tem início, McCarthy já apresenta um dos muitos planos sequência simplórios que ele realizará no decorrer da projeção – lembrando que o plano sequência é o ápice da técnica realista no Cinema. Ali, estamos em 1976, em uma delegacia qualquer de Boston. A queixa é de pedofilia contra um padre que aguarda em uma sala. O advogado chega. As crianças, aterrorizadas. A imprensa, calada. Um tempo se passa e vemos o padre sair livremente da delegacia. A justificativa? A igreja faz muito bem à comunidade. Uma carta branca do Estado para o abuso sexual de menores.

A cena serve para ilustrar os muitos casos sem punição que ocorreram até 2001, o ano em que a matéria começa a ser escrita. Com mão leve, o diretor elabora um contraste entre as duas sequências. O passado impune será revisto pelos personagens que acabamos de conhecer. Com essa conotação simples que ele leva o filme até o final.

McCarthy, preso ao realismo ou por falta de tesão no filme, tem um trabalho simplório com a câmera. Spotlight sofre com a roupagem de telefilme devido a hierarquia desconexa de planos apresentados na montagem aleatória. Fora isso, a movimenta apenas quando necessário e enquadra seus personagens sempre com certo afastamento. Depois fui notando que não era apenas a câmera que era simples demais. Na verdade, a direção dele é repleta de planos simples, montagem pouco inspirada, decupagem simples, cadencia problemática de ritmo, pontuações banais das poucas reviravoltas, trabalho frívolo de atmosfera. Durante o filme todo senti muito a falta da presença do diretor em diversas sequências. As coisas pareciam estar no piloto automático, totalmente sem paixão, trabalhando a imagem apenas para contar uma história que merece ser contada. Logo, me veio a clássica questão: McCarthy é bom diretor ou a história é tão boa que se dirige sozinha?

Sinceramente, não sei responder a essa questão com tanta certeza. Diria que ele trabalha no automático na maioria do filme enquanto apresenta, regularmente, boas ideias. E essas, quando surgem, são poderosíssimas.

Em algumas composições, McCarthy, seja através do diálogo ou pela atuação de algum ator, denota um ar tenebroso para as igrejas de Boston. Em um grande plano geral, ele enquadra as monumentais igrejas ao fundo enquanto insere, no primeiro plano, algum parquinho, escola ou diversas casas de bairros suburbanos repletos de crianças. O que era para ser a figura de refúgio, fé e acolhimento, recebe tonalidades ameaçadoras e perversas.

Ainda visando o realismo, o diretor também dá preferencias a planos longos que resolvem diálogos inteiros – ainda que sejam esteticamente rudes. Outros momentos poderosos acontecem quando o diretor realiza as sequências de entrevistas e pesquisa em montagem. As rápidas sequências – e também a pontual montagem paralela que ele executa no meio do filme, tiram o longa do marasmo e injetam algum vigor na narrativa.

Mesmo mantendo esses bons momentos, o diretor consegue ser absolutamente brilhante em três ocasiões. A primeira, talvez a mais inteligente, ocorre quando o grupo faz uma audioconferência com um informante. Na conversa, ele revela a quantidade assustadora de padres molestadores. Nisso, lentamente a câmera vai para trás, fazendo um travelling out enquanto o grupo fica sem reação diante a revelação que acabaram de escutar.

Para entender a sensibilidade desse momento é preciso saber um pouquinho de linguagem cinematográfica. Geralmente em momentos cruciais e reveladores de diversos filmes, é muito comum a câmera se aproximar do ator lentamente – no travelling in. O movimento serve para enfatizar o que o ator revela, para fixarmos nossa concentração apenas no monólogo e na atuação e nos envolver em atmosfera única. Porém, aqui, McCarthy realiza o oposto. A câmera se afasta. Mas qual o motivo disso?

Se viu muitos filmes de terror clássicos dos anos 1930, 1940 e até mesmo algumas obras dos anos 1990 como Pânico, perceberá que após a mocinha em perigo descobrir e confrontar o monstro, a encenação natural pede para que ela se afaste dele lentamente. Indo para trás até encostar em alguma parede ou tropeçar e cair. Nessa cena, a câmera se comporta justamente como as mocinhas dos filmes de terror. Ela se choca com o horror revelado. Ela recusa a verdade e parte lentamente para trás, em recusa, até o movimento cessar no fim da cena. Isso pode parecer trivial e bobo, mas acredite, não é. É uma encenação de câmera que agrega na narrativa de modo absurdo, afinal ela reflete o choque dos personagens e também do espectador. A repulsa, o nojo, o medo e o horror são representados por ela.

Já o segundo ponto brilhante de McCarthy se dá em um enquadramento que exibe o personagem de Liev Shreiber chegando Boston Globe. Ali, na porta do jornal, está escancarado um outdoor da AOL com os dizeres “em todos os lugares”. A mensagem é clara como a luz do dia e eficiente. O novo jornalismo, a nova notícia vs. a velha mídia. E isso, propagandeado, em seu próprio território.

Às vezes, durante as estreias da semana, temos similaridades ou coincidências bizarríssimas que até nos assustam. No mesmo dia que estreia Os Oito Odiados no Brasil, também estreia Spotlight. Aparentemente os dois não tem nada em comum, fora uma característica: o uso da canção Noite Feliz. Em ambos os filmes ela é inserida de forma brilhante rendendo, talvez, os melhores momentos de cada um deles. Em Spotlight, o diretor realiza outra boa montagem. Dessa vez exibe a matéria sendo escrita conforme o prazo final se aproxima. Enquanto os jornalistas escrevem os horrores descobertos por eles, McCarthy dimensiona ainda mais a tragédia ao inserir a icônica canção natalina cantada por um coral infantil – tudo justificado dentro do filme. Ao mesmo tempo que essa união de som e imagem te choca, ela te entristece. E muito mais se você for católico como eu sou. Impossível não sentir um pesar, um momento de luto, uma reflexão. Provocar esses sentimentos no espectador é algo importante. McCarthy prova que quando ele quer fazer algo estupendo, ele consegue.

O design de produção também agrega na narrativa de modo positivo mesmo que seja enviesado no realismo. A força principal da área é exclamada pelo correto modo de filmar do diretor. Em diversas cenas, vemos que a redação do Spotlight fica em uma sala separada da redação normal. O escritório dos protagonistas fica um tanto escondido, um lugar que leva algum tempo até chegar nele, um ambiente recluso, o que já abre a diversas interpretações sendo a principal delas a ironia dessa construção e disposição de cenário. O lugar onde os maiores segredos são revelados, fica um tanto escondido dentro do prédio, um lugar quase secreto.

Como todas as áreas técnicas também partem da premissa realista, a fotografia não poderia fugir disto. O ambiente do Boston Globe é sempre estéril, higiênico, fotografado pelas cores monocromáticas de branco, gelo mescladas com tons de marrom e cinza. Todas iluminadas com a estética naturalista do cinematógrafo Masanobu Takayanagi que aproveita muito do clima nublado de Boston para deixar sua fotografia dessaturada, difusa e delicada.

Na música temos o ótimo Howard Shore. As composições, muito singulares e restritas no filme, tem forte carga dramática, além de serem curtas em sua duração. Muitas são melancólicas e se parecem muito entre si – variações repetitivas do tema principal. Ela também envolve as cenas em mistério, conferindo outra paixão pelo jornalismo e a investigação em si. Principalmente pela presença marcante do piano comportado, hesitante. As notas caminham a passos lentos evocando pureza e ingenuidade enquanto os violinos secundários a seduzem lentamente. Por algum motivo, o trabalho de Shore me lembrou muito das também excelentes peças originais para o jogo The Wolf Among Us que também tem sua narrativa centrada numa investigação.

A meu ver, o filme é de forma alguma anticatólico como alguns espectadores podem pensar. Justamente por ser realista, o tratamento não pode ser maniqueísta e caricato. É dito dentre tantos diálogos que a reportagem é um ataque a instituição da igreja que simplesmente acobertou todos esses casos repulsivos de pedofilia por décadas – contra fatos não há argumentos. O filme nunca é desrespeitoso com a fé alheia ou até mesmo com as pregações do catolicismo. Ele apenas aborda a história como ela ocorreu em 2001.

O filme traz uma grande história sobre um dos acontecimentos mais importantes deste século. A história de homens que colocaram uma instituição milenar de joelhos, obrigada a reconhecer seus crimes. Nisso temos um elenco fortíssimo, uma estética realista rara de se ver no cinema comercial contemporâneo e uma direção que tem momentos de brilhantismo espetaculares. Tudo isso compensa o ritmo inconstante, as confusões geradas pelo texto perdido ao meio de inúmeros personagens, pelas oportunidades mal aproveitadas, a falta de desenvolvimento de alguns arcos importantes – incluindo a conclusão um pouco apressada do longa e a frieza que explicita um trabalho sem paixão, quase robótico, em termos de direção cinematográfica.

Temos aqui o nascimento de um novo clássico sobre jornalismo investigativo.

Aliás, mais que isso. Spotlight é sobre os homens, seus crimes e pecados na Terra. E o castigo.

Spotlight: Segredos Revelados (Spotlight, EUA, 2015)
Direção: Tom McCarthy
Roteiro: Josh Singer, Tom McCarthy
Elenco: Mark Ruffalo, Michael Keaton, Rachel McAdams, Stanley Tucci, Liev Schreiber, John Slattery, Brian D’Arcy James, Gene Amoroso, Neal Huff, Jamey Sheridan.
Duração: 128 minutos.

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