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Crítica | Strong Island

por Ritter Fan
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Strong Island, que estreou no Festival de Sundance de 2017 e, depois, foi adquirido pelo Netflix para distribuição mundial, promete, em seus primeiros segundos, investigar o que realmente aconteceu no assassinato do jovem negro William Ford (irmão da diretora) em 1992, e porque ninguém nunca foi preso. No entanto, surpreendentemente, não é exatamente isso que vemos se desenrolar perante nossos olhos. E é justamente ao se desviar da premissa, que Yance Ford transforma seu documentário em algo fora do comum.

Entrevistando primordialmente sua mãe, sua irmã e dois amigos de William, a diretora parte para humanizar a vítima e mostrar o quanto a morte sem sentido de seu irmão pelas mãos de um mecânico em Long Island e a subsequente desídia da polícia e do Sistema Judiciário mexeram com sua família ao longo dessas mais de duas décadas. Yance usa as ferramentas que têm imediatamente disponíveis apenas e não transborda seu filme com informações detalhadas sobre o que aconteceu. Não é esse seu propósito. O que ela realmente consegue fazer muito bem é nos fazer olhar o microcosmo do racismo e não todo o universo. Ao colocar um nome na vítima e nos mostrar seus familiares, com reações de cortar o coração, ela torna o problema real. Deixamos de ver a floresta para focar na árvore, algo que às vezes é realmente importante para que seja possível criar a conexão necessária com o problema.

E não pensem vocês que a família Ford é o estereótipo da família negra americana que, de forma useira e vezeira, é o objeto das mais variadas obras. Barbara Ford, a matriarca, foi professora e diretora de uma escola e a família vivia e vive bem economicamente. Nunca foram ricos e tinham que fazer seus sacrifícios, mas é longe – muito longe – da miséria que nos acostumamos a ligar com situações como essa. Esse aspecto é relevante, pois, mais uma vez, o caso é trazido para mais perto de nós, de algo diretamente relacionável.

Mas Strong Island é também uma espécie de documento catártico pessoal para Yance – que se auto-entrevista também, usando propositalmente incômodos close-ups extremos, além de quebrar a quarta parede, falando diretamente conosco – e, com isso, ele cria um rapport ainda mais forte com o espectador. É, talvez, a forma que a diretora tinha de não deixar o assunto morrer e, principalmente, estabelecer uma espécie de “encerramento” deste doloroso assunto para sua família. Diria que é particularmente corajoso dela colocar para os olhos do mundo algo assim tão cru e direto que vai no âmago de sua própria família e dela mesmo, o que certamente cria uma poderosa legitimidade ao documentário que tem o poder de deixar o espectador em transe e em parte iguais revoltado (pela tragédia) e orgulhoso (por ver uma obra dessa chegando ao alcance de todos).

Há, porém, que se reiterar que os recursos limitados disponíveis a Yance (afinal, mesmo considerando as circunstâncias do crime, já se foram mais de 20 anos) dão outro significado à investigação que ela promete fazer. Não há nada detetivesco aqui. Nem mesmo vemos o rosto do assassino, apesar de seu nome ser mencionado. No máximo, vemos Yance ligando para pessoas que participaram da investigação original que não resultou em absolutamente nada. E, mesmo assim, quase nenhum detalhe é trazido à tona. A investigação a que ela se propõe é mesmo de cunho pessoal e lida vagarosamente com a ideia que um negro tem muito menos chance de ver a justiça ser feita do que um branco. Clichê? Certamente. Já vimos isso antes? Sem dúvida. Não é bem assim? Há obviamente outros fatores e o caso de William nem é o mais revoltante, mas sim, é assim sim. Perguntas assim, porém, não esvaziam o poder do que Yance coloca em tela e nem as arguições que faz, essas sim perguntas relevantes. Porque o assassino nem mesmo foi algemado quando a polícia chegou? Porque o único que testemunhou na delegacia foi o amigo de William – também negro – que estava lá, mas nem mesmo viu o tiro? Porque um júri de 23 pessoas brancas nem mesmo levou o caso à julgamento?

Ao fazer essas pequenas perguntas, Yance desnuda um problema sistêmico. Ela nunca se dão ao trabalho de fazer a extrapolação, porém. Esse é nosso papel. Sua função é lidar com o plano detalhe (a árvore) de forma que nós possamos ver o plano geral (a floresta), o caminho inverso ao que vimos, por exemplo, em A 13ª Emenda. A personalização de William e de sua família – sem criar heróis, sem bater no peito e dizer que o irmão era sem defeitos, muito ao contrário –  é um convite doloroso à reflexão. Ela não procura de verdade uma “solução” para seu problema em particular, mas se preocupa em legar um documento que pode ser utilizado como mais um tijolo nesse enorme mural das tensões raciais nos EUA que são refletidas, em maior ou menor grau, em praticamente todos os países, inclusive o Brasil.

Estruturalmente, Yance quer incomodar e não só usa os mencionados close-ups em si mesma, como mantém sua câmera parada nos momentos mais dolorosos das entrevistas em uma montagem não-linear que, apesar de uma certa lentidão narrativa – ela inclusive fala devagar – captura a atenção imediatamente e consegue costurar muito bem uma história que começa ainda no início do século XX, o que ajuda a contextualizar a mudança da família para Long Island e os eventos posteriores. Aqui, a simplicidade é chave e Yance mostra um poder manipulador (no bom sentido) muito bom e preciso que provoca e desafia, levando-nos por seu documentário sem maiores percalços.

Strong Island pode não parecer fácil – ou particularmente agradável – de se assistir, mas a verdade é que, quando se aperta o play, parar é muito difícil. Somos fisgados pela rasteira que Yance nos dá ao anunciar sua premissa investigativa, logo adaptando o termo para outro tipo de investigação e, a partir daí, por seu drama pessoal com enormes ecos no coletivo.

Strong Island (EUA/Dinamarca – 2017)
Direção: Yance Ford
Com: Yance Ford, Harvey Walker, Kevin Myers, Lauren Ford, David Breen, Ed Boyar, Barbara Dunmore Ford
Duração: 107 min.

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