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Crítica | Tatuagem (2013)

por Luiz Santiago
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TATUAGEM 2013_hilton_lacerda_plano_critico

estrelas 3,5

Hilton Lacerda estreou no cinema em 1997, como roteirista de Baile Perfumado, obra de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Seu trabalho na indústria cinematográfica, especialmente junto ao polo de Recife, sua cidade natal, ganhou força e nome através de roteiros irreverentes e críticos, destacando-se em obras como Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2002), Árido Movie (Lírio Ferreira, 2005), e A Febre do Rato (Assis, 2011). Em 1998, Lacerda realizou o seu primeiro trabalho como diretor, no curta-metragem Simião Martiniano, o Camelô do Cinema. No ano seguinte, participou de um coletivo com obras de diversos diretores de seu Estado, o projeto O Brasil em Curtas 06 – Curtas Pernambucanos; e em 2007, dividiu a direção com Lírio Ferreira no documentário Cartola – Música Para os Olhos. Tatuagem (2013), foi a primeira ficção dirigida por Lacerda, um filme que traz os dramas, os medos e as felicidades de muita gente e grupos ao redor do país.

Escrevendo e dirigindo Tatuagem, Hilton Lacerda buscou inspiração no Grupo de Teatro Vivencial (cujo espaço de apresentação, uma espécie de café-teatro chamado Vivencial Diversiones, foi construído à margem do mangue, em uma favela no limite de Recife e Olinda) e ambientou sua história em pleno período de decadência da Ditadura Militar, entre os anos de 1978 e 1979. Clécio Wanderley (Irandhir Santos) lidera uma trupe de teatro anarquista na periferia da capital. Arlindo “Fininha” Araújo (Jesuíta Barbosa) é um soldado de 18 anos cuja família mora no interior. Esses dois mundos são opostos, misturados, justificados e recriados pelo cineasta, todos carregando as dificuldades máximas apontadas pelo filme (problema de comunicação e exagero do estado apolíneo ou dionisíaco dos personagens) e vontade de ser feliz, normalmente perseguindo uma palavra que é mais poesia do que realidade nua e crua: liberdade.

No primeiro ato, temos a apresentação geral dos personagens e seu Universo. De um lado, o furor e extravagância do teatro, dos muitos gêneros e sexualidades, dos amores dispersos, do olhar perspicaz para o mundo e questionamento das condições humanas, sociais, políticas. Mostrado com grande vivacidade pela fotografia, montado de maneira mais acelerada e dirigido com maior exploração do cenário pela câmera, este Universo rapidamente se mostra portador de extrema alegria e extrema melancolia, resultando em uma beleza que vai além da estética. Do outro lado, a rigidez carola da família de Fininha, com fotografia explorando tons térreos, montagem quase clássica, planos mais longos e mais silenciosos. Há um pouco de maniqueísmo nessa abordagem de cenários, também utilizada do modo “frio e sem graça” nas cenas do Quartel, mas isso ocorre de forma irônica, como um ambiente homoerótico preso em si mesmo, uma parte em que a oposição visual é utilizada com função crítica e não simplista.

A introdução e o miolo do filme, até a segunda apresentação do espetáculo sobre “o cu e a liberdade“, são as melhores partes de Tatuagem. A abordagem dada pelo diretor aos atores sociais da periferia, sua exploração rica das personas, problemas e cultura de um lado muito escarnecido mas quase nunca honestamente mostrado da comunidade LGBT e uma exploração orgânica e sem amarras da sexualidade são muito gratificantes para quem assiste.

Em relação à sexualidade ou mesmo à nudez, seja para o sexo, seja para a apresentação teatral, deve-se dizer que não há, de fato, um “choque”. Há muitos corpos nus, alguns transando, outros mostrando bunda e sexo, mas dentro de contextos em que essas ações são entendidas e perfeitamente funcionais. Há exagero por parte do diretor? Particularmente não vejo exagero algum no trato do sexo ou da nudez até a última apresentação do espetáculo. Ali, o cineasta perde o andamento do filme porque repete — e isso realmente mata a ordem da narrativa, que estava majoritariamente limpa –, de maneira pouco criativa, algo que já havíamos visto. Daí parte para outro ponto fraco de seu roteiro, que é a inclusão do filme dentro do filme.

Glauber Rocha, Júlio Bressane e Ozualdo Candeias são referências interessantes que Lacerda traz para sua obra no exercício de metalinguagem, tanto na abordagem libertária e socialmente crítica, irônica e cínica; quanto na forma do filme, misturando artes e formatos narrativos. O espectador percebe a intenção, entende o que o diretor quis fazer, mas não necessariamente acha esta uma boa saída. Se as relações, a comunicação, a arte como motor de transformação de mentes e o humano problemático querendo fazer mais para o mundo são as artérias do roteiro, a parte final da obra faz um verdadeiro corte nelas, dispersando todo o vigor narrativo-conceitual que até então mostrara. Em seguia, o texto parte para uma terceira e última construção, dada pela evasão dos personagens. Eles não se acertam, apenas fogem e se refugiam no que resta da arte, às portas da institucionalização. O filme vem como ironia a tudo isso, é verdade. O texto neste momento é poderosíssimo, um ótimo chamado à reconstrução. Porém, há pouco tempo para se criar outra coluna e o drama das pessoalidades rapidamente se converte em teoria.

Quem, porém, jamais perde a vivacidade e qualidade no filme, é o elenco. Que trupe maravilhosa! E que interpretações as de Irandhir Santos (soberbo em todas as cenas que aparece) e Jesuíta Barbosa! Revejam, se puderem, a primeira chegada de Fininha, procurando por Paulete no cabaré/teatro e as subsequentes sequências em que ele se encontra com Clécio. Ambos estão muito bem sintonizados e um certo “fingir” de Fininha, para depois mostrar-se quem verdadeiramente é, dá conta de uma habilidade interessante de Jesuíta Barbosa em controlar nuances, coisas simples, como um sorriso ou o jeito de andar que mudam e fazem toda a diferença à medida que o tempo passa e sua “outra face” se revela. Hilton Lacerda merece todos os louros pela direção de atores e seu elenco merece igualmente os louros pela qualidade das interpretações entregues.

Fazer um filme sobre cu, política, amores e relações humanas olhando para a minoria da minoria da periferia não é para qualquer um. Hilton Lacerda faz uma ótima estreia, embora perca um pouco o passo no final. Seu filme é crítico e ao mesmo tempo nos dá a oportunidade para criar em cima da poesia, do teatro, dos corpos em pelo e dos conflitos que o roteiro nos entrega. A trilha sonora plural do ótimo DJ Dolores (Narradores de Javé) e de Johnny Hooker; e a direção de arte de Renata Pinheiro, que dá uma aula de como trabalhar com pouco material de forma elegante e perfeitamente funcional para o filme, são verdadeiros guias do espectador por esse labirinto de desejos, loucura e versões de liberdade que é Tatuagem, um filme irreverente e verdadeiramente humano.

Tatuagem (Brasil, 2013)
Direção: Hilton Lacerda
Roteiro: Hilton Lacerda
Elenco: Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa, Maria de Jesus Baccarelli, Auriceia Fraga, Ariclenes Barroso, Ana Georgina Castro, Deyvid Queiroz de Morais, Auriceia Fraga, Rodrigo García, Johnny Hooker, Nash Laila, Soia Lira, Sylvia Prado, Sílvio Restiffe, Diego Salvador
Duração: 110 min.

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