Home QuadrinhosOne-Shot Crítica | The Spirit Archives – Vol.1: Origem e Primeiras Aventuras (1940)

Crítica | The Spirit Archives – Vol.1: Origem e Primeiras Aventuras (1940)

por Luiz Santiago
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Foi por iniciativa de Everett M. “Busy” Arnold, editor das histórias em quadrinhos da Quality Comics, que Will Eisner concebeu The Spirit. Com a percepção de que muitos jornais dominicais americanos dedicava, com considerável sucesso, um suplemento para HQs semanais com personagens vivendo “aventuras para adultos” —  publicações que de certa forma já faziam frente às revistas em quadrinhos –, o editor propôs a Eisner, no final de dezembro de 1939, a criação de um personagem que pudesse “representar” alguns títulos que faziam parte do mesmo sindicato que a Quality.

Com um acordo nada comum para a época, com Eisner tendo total controle e posse de sua criação, o contrato foi assinado e a encomendada “série de detetive” ganhou os seus primeiros traços. Eisner rejeitou o nome “Ghost”, proposto por Arnold, e sugeriu “The Spirit”, embora o editor não tivesse entendido exatamente o que isso significava, ou seja, que tipo de personagem seria esse indivíduo. Ao visual engravatado, o artista adicionou uma máscara para cumprir uma exigência de “cara de super-herói”, que estava na gênese do projeto, assim como uma certa “veia sobrenatural”, que Eisner soube manipular muito bem. Através do Register and Tribune Syndicate, a chamada The Spirit Section estreou em 2 de junho de 1940, numa publicação combinada de 20 jornais dominicais, passando, depois, para os sábados, numa empreitada que durou até 5 de outubro de 1952.

Ao longo das décadas, desde o encerramento da The Spirit Section, inúmeras histórias do personagem foram republicadas em diferentes jornais e revistas, assim como séries e minisséries inéditas apareceram em distintas casas, dentre as quais podemos destacar New York Herald Tribune, Harvey Comics, Kitchen Sink Press, Warren Publishing, Tempo Books, DC ComicsIDWDynamite. No presente compilado, trago críticas para as publicações em jornais da The Spirit Section entre a sua estreia, em 2 de junho de 1940 até a edição de 29 de dezembro do mesmo ano.

A Origem do Spirit foi a primeiríssima história do famoso criminologista de Will Eisner, fazendo jus, com louvor, ao seu título. De maneira simples e com apenas um único ponto um tanto questionável em relação a andamento da trama (uma raridade em se tratando de quadrinhos da Era de Ouro) o texto faz as devidas apresentações e o estabelecimento do nome do herói logo nas três primeiras páginas. Conhecemos o Comissário de Polícia de Central City, Eustace Dolan; conhecemos o Doutor Cobra; conhecemos Happy, o médico-legista; e temos também a primeira aparição de Ébano Branco (Ebony White) o personagem negro estereotipado (falarei mais sobre isso adiante) que em pouco tempo se tornaria uma das principais aparições das histórias do Spirit.

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De certa forma, a origem do personagem não foge aos exemplos de origem de super-heróis que seria popularizado no futuro. Isso é bom, porque um leitor de décadas depois pode facilmente ler esta história com um senso de identificação e sem muitos tropeços de afirmação para “como tal pessoa fez o quê“. Como disse no início, o único ponto menos interessante na excelente aventura de estreia é a forma como Denny Colt explica para seu amigo, o Comissário Dolan, como ele escapou do líquido do Dr. Cobra, após ser dado como morto e voltar, assumindo o nome de Spirit, com direito a QG no cemitério da cidade (Wildwood Cemetery) e tudo. Numa inteligente linha narrativa, ideias executadas sem complexidade exagerada (infelizmente, isso não seria um padrão para as outras tramas), boa dose de suspense, mais um certo tom macabro na arte, Eisner começa com louvor a saga de Spirit. Uma aventura policial que captura o leitor com rapidez, trazendo, em apenas 7 páginas, a origem, a motivação e uma série de possibilidades para o “policial morto” com seu terno azul, máscara domino, gravata vermelha e chapéu fedora agindo pela cidade, em nome da justiça.

Anos depois, Eisner respondeu às muitas acusações a respeito da representação de Ébano Branco a partir de um modelo estereotipado, à la blackface, em suas histórias. O personagem fala à maneira sulista, com sotaque carregado e em inglês gramaticalmente incorreto. Nessas tramas, Ébano é um garoto de 12 anos muito esperto, cheio de talentos e que, a despeito da idade, trabalha como motorista de táxi. A sugestão de idade do personagem se alterou ao longo dos anos, mas a ideia de que era um pré-adolescente foi a mais difundida nas histórias do Spirit.

Quando falou a respeito do personagem, Eisner disse que tinha plena ciência da forma estereotipada como foi construído, mas destacou que não era uma maneira de diminuir, segregar, zombar do personagem, que era sempre tratado com respeito por todos. A forma caraterística de falar era um dos elementos de humor dos anos 1940 e a representação estereotipada, embora não fosse algo cultural ou socialmente correto, o artista admitia, pelo menos em suas histórias não era um caminho de difamar o personagem. Ao contrário. Ele sempre foi incluído por todos, inclusive pelo protagonista, que se afeiçoou rápido a ele e trabalhou ao seu lado, tendo-o como sidekick.

Já outras formas de representação racista ou xenofóbicas nas histórias do Spirit, principalmente nos 3 primeiros anos de suas publicação, passaram posteriormente por uma mea culpa do autor, embora nunca tenham tido grande estardalhaço por não serem algo basilar nesses quadrinhos e terem o contexto histórico a favor do autor — e aqui quero chamar a atenção para o fato de ser engraçado que para alguns, muita gente logo logo encontra contexto para tratar polêmicas de época por um prisma dialético, sociológico, político, histórico; enquanto outros artistas ou obras são sabatinados por décadas e, mesmo admitindo o erro e contextualizando o trabalho, mantém-se na mira das ofensas anacrônicas. E aqui não quero dizer que esses erros não devem ser apontados. Apenas que o racismo (velado ou não), a xenofobia e a misoginia (esta nem um pouco velada) na obra de Eisner é simpaticamente ignorada ou rapidamente contextualizada (como deve ser, veja bem, mas deveria estar como realidade para todos os artistas!), enquanto que até hoje existem páginas, artigos e teses pela internet afora para reclamar da misoginia e racismo em Conan, do racismo e anti-semitismo nas Aventuras de Tintim, da xenofobia em Lovecraft ou racismo em Monteiro LobatoAgatha Christie e até Osamu Tezuka.

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Depois da primeira história, uma “triste” realização para o leitor. Basicamente tudo o que funcionou na abertura da The Spirit Section parece ter sido reduzido pela metade, ou até menos, em todas as outras aventuras de 1940. Peguemos por exemplo, o retorno do Doutor Cobra, onde de realmente importante temos apenas a apresentação de Ellen Dolan, a filha do Comissário Dolan. A moça aparece ao lado de seu noivo, Homer Creep, que de fato faz jus ao nome — e se tornaria um inimigo do Spirit, que jogaria o maior charme para jovem. Existe uma série de surpresas estranhas na trama, como a visita do casal (tarde da noite) à delegacia para colher informações para o curso de Psicologia de Ellen. O leitor fica confuso se é uma delegacia ou um sanatório, e a aparição do Doutor Cobra falando com a filha e o futuro genro do Comissário torna tudo ainda pior. O ruim, é que tanto o absurdo clichê na resolução de certos problemas como ideias nonsenses como estas serão vistas aos montes depois.

Cercado por bandidos, quase sempre auxiliado por Ébano Branco a partir da terceira aventura, e com uma presença marcante da Black Queen como vilã (uma personagem concebida de modo muito interessante, mas que sofre com o desenvolvimento das histórias onde aparece), além de um destaque progressivo para Ellen e outras mulheres de ocasião, estas, infelizmente, servindo apenas de “moças em perigo” e objetos dos caprichos do Spirit — chega a ser irritante, na verdade –, o título segue alterando momentos “apenas ok” em sagas de sequestro, guerra, dívida, jogos de azar, super-poderes e encontros macabros, com outros absolutamente ruins. Evidente que temos histórias bonitas, como a dos órfãos e a de Natal, e personagens que ganham uma boa representação no meio do caminho, mas em nenhuma delas os vemos aparecer num roteiro tão bem estruturado como o da estreia do personagem, pelo menos nesses meses iniciais de sua publicação. A mesma coisa, porém, não podemos dizer da arte.

A partir da sexta história, Eisner começou a dar um tratamento bastante cuidadoso para as páginas de abertura, me lembrou até o glorioso trabalho de outro artista de saga policial (porém, cômica) que surgiria menos de um ano depois do Spirit, o Homem-Borracha, de Jack Cole, personagem que pertencia à Quality, editora ligada ao Spirit via seu editor. Mesmo que a diagramação interna seja apenas parcialmente inovadora, nesses quadrinhos, a arte jamais dá um passo em falso e é o grande atrativo da série, prendendo muito mais o leitor que os roteiros. É a arte, na verdade, que dá o grande charme inesquecível de Spirit, nos fazendo entender o por quê a série se manteria ativa, mesmo não tendo uma base tão boa de histórias em sua primeira leva. A promessa de grandeza do personagem, todavia, já se podia divisar. Ele só precisava de um pouco mais de tempo para mostrá-la.

Nota: Abaixo, para quem interessar, coloco mais algumas imagens e os títulos de todas as aventuras dessa primeira fase, contempladas nos comentários acima.

As Histórias de Spirit Publicadas em 1940
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  • 2 de junho: The origin of The Spirit
  • 9 de junho: The Return of Dr. Cobra
  • 16 de junho: The Black Queen
  • 23 de junho: Voodoo in Manhattan
  • 30 de junho: Johnny Marston
  • 7 de julho: The Black Queen’s Army
  • 14 de julho: Mr. Midnight
  • 21 de julho: Eldas Thayer
  • 28 de julho: Palyachi, the Killer Clown

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  • 4 de agosto: The Death Dolls
  • 11 de agosto: The Kidnapping of Daisy Kay
  • 18 de agosto: The Morger Boys
  • 25 de agosto: The Orphans
  • 1º de setembro: Orang the Ape-Man
  • 8 de setembro: The Return of Orang, The Ape That is Human
  • 15 de setembro: Ebony’s X-Ray Eyes
  • 22 de setembro: Gang Warfare
  • 28 de setembro: Oriental Agents

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  • 6 de outubro: The Mastermind Strikes
  • 13 de outubro: The Spirit! Who is He?
  • 20 de outubro: Ogre Goran
  • 27 de outubro: Conscription Bill Signed
  • 3 de novembro: The Manly Art of Self Defense
  • 10 de novembro: The Kiss of Death
  • 17 de novembro: Dr. Prince Von Kalm
  • 26 de novembro: The Kidnapping of Ebony

plano critico the spirit will eisner The Prom

  • 1º de dezembro: The Prom
  • 8 de dezembro: The Haunted House
  • 15 de dezembro: Slim Pickens
  • 22 de dezembro: Christmas Spirit of 1940: Black Henrey and Simple Simon
  • 29 de dezembro: The Leader

Spirit Newspaper Strip (EUA, junho a dezembro de 1940)
No Brasil:
RGE (1975), Ng (1981, 1988)
Roteiro: Will Eisner
Arte: Will Eisner
Assistente de arte ou desenhos de fundo: Bob Powell, Dave Berg, Tex Blaisdell
Editoria: Will Eisner, Everett M. Arnold
218 páginas (o volume completo, mas cada aventura tem entre 7 e 10 páginas)

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