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Crítica | “The Works” – Queen

por Luiz Santiago
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Crítica de número 4.000 do Plano Crítico

Em uma conversa sobre preferências musicais, sempre que digo os por quês de o Queen ser a minha banda favorita, jamais deixo de citar a coragem que o quarteto tinha em reinventar-se. E vejam, não digo “reinvenção” como alteração de uma faixa dentro de um gênero “desconhecido” para o grupo ou o uso de um determinado instrumento de forma diferente ou ainda a tomada de ‘caminhos incomuns’ de produção. Ao ouvir discos como Queen II, Jazz e Hot Space temos a clara ideia de que a capacidade camaleônica do Queen funcionava bem e com alta qualidade (mesmo achando Hot Space um álbum mediano eu dou o braço a torcer para todas as mudanças de produção), gerando obras em territórios legitimamente diferentes.

The Works é uma dessas obras. Um álbum de quase meados da década de 1980, o décimo primeiro da banda, que veio provar ao público que o Queen não devia nada aos novatos surgidos no final da década passada, das cinzas do punk, e que já davam algumas cartas na cena musical da Europa: U2 (1976), The Police (1977) e Duran Duran (1978). Mas a reunião da banda para a gravação de The Works — e o nome tem a ver com o enorme trabalho que foi terminar o disco — não foi orgânica e não foi fácil. Inúmeros problemas de relacionamento entre os amigos, em curso desde The Game (1980), ainda eram sentidos e, apesar de já apresentar momentos de paz — dando lugar ao tédio natural do convívio durante tantos anos, o que nenhum dos quatro negou ou escondeu em entrevistas –, trazia problemas na hora das decisões criativas. Além disso, haviam preocupações com projetos solo de três dos quatro membros da banda: May com o EP Star Fleet Project (1983); Taylor com o disco Strange Frontier (1984); e Mercury preparando Mr. Bad Guy (1985) ao mesmo tempo que mantinha uma parceria com Michael Jackson, com quem compôs três canções: There Must Be More To Life Than This,  State of Shock  e  Victory.

LADO A

O grande trunfo de The Works é a sua mescla bem sucedida de estilos. A retomada do hard rock, após o fracasso de Hot Space foi uma benção para a banda e para os fãs, embora a tendência pop, funk, eletrônica e futurística ainda permanecesse em alta. E abrindo o álbum, o synthpop de Roger Taylor, Radio Ga Ga, uma crítica do baterista à dominação do formato televisivo  (especialmente os videoclipes da MTV, que ironicamente o próprio Queen ajudou a moldar, com Bohemian Rhapsody) e o olhar um pouco nostálgico para o passado, citando a famosa transmissão radiofônica de Guerra dos Mundos, em 1938, pelo diretor Orson Welles e o lendário discurso “This was their finest hour” (1940) de Winston Churchill, em plena II Guerra Mundial. O curioso aqui é o uso perfeito dos sintetizadores (por Fred Mandel) em favor da música, sem interferir na harmonia e dentro de uma dinâmica cíclica marcada por frases duplas em um único motivo lírico, que ganhou um clipe homenageando o filme Metrópolis (1927), de Fritz Lang.

Tear It Up, composta por Brian May, é certamente um olhar para o passado, não só na estrutura da música — linha do baixo em blocos, refrão de estádio e bateria nos moldes de We Will Rock You –, mas na mensagem que passa, uma mensagem entregue com força total pelos vocais de Freddie Mercury, que parecia sentir saudades da fase operística da banda e se esforçou bastante para elevar a voz ao máximo nas faixas exuberantes de The Works. Vejamos, por exemplo, que sua execução se mantém em fortissimo na faixa seguinte, It’s a Hard Life, uma faixa que ninguém negaria ser de Freddie Mercury e que se baseia na ária Vesti la Giubba, a ópera Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo.

Embora não seja conceitualmente complexa — temos três partes que se ligam por uma ponte melódica –, a faixa mostra a exigência de produção dos refrões com coro orquestral e intricadas sobreposições de vozes dos tempos de A Night at the Opera  e  A Day at the Races, com uma marcação mais pop, um piano com participação menos intensa, dissonâncias e melodias que mudam nas fases antes da entrada do coro operístico e cíclico. Mercury tomou a raiz de Play the Game para os arranjos dessa faixa, que teve um clipe musical excêntrico, em um ambiente cortês meio Casanova que May e Taylor simplesmente odiaram gravar, apesar de gostarem muito da canção. O que chama a atenção no clipe é a sua máxima ironia: um home da nobreza, coberto de riqueza e rodeado por súditos, cantando de forma épica como a vida é difícil…

Esta primeira parte do disco termina com Man on the Prowl, um rockabilly composto por Mercury e que nos lembra muito Crazy Little Thing Called Love, com seus vocais graves em ascendência para um refrão alto e vozes de apoio que dão à faixa um sabor musical à la Elvis Presley.

LADO B
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Machines (Or ‘Back to Humans’) é um dos trabalhos mais experimentais do Queen, juntamente com Don’t Lose Your Head, de A Kind of Magic (1986). Mas ao contrário daquela, Machines peca pelo desmedido uso de sintetizadores, pelo formato de acordes incompletos e estruturas melódicas insossas. Porém, o formato e a estrutura não seriam incômodo algum se a tenebrosa bateria eletrônica (que mais parece alguém amassando uma lata pequena) não fosse adicionada na mixagem e não houvessem as vozes sintetizadas das máquinas, o verdadeiro estrago da faixa, sendo ela ou não uma crítica. Radio Ga Ga também é uma crítica e não precisou lançar mão de tamanho exagero. O pior de tudo é que a faixa, se você conseguir ignorar a bateria-de-lata-amassada e as vozes das máquinas, é boa. E eu juro que não estou sendo irônico.

John Deacon, sempre antenado às tendências do pop em sua forma mais simples e em mistura com outros gêneros, compôs I Want to Break Free, o segundo single e um dos hits de The Works. A faixa não possui refrão, apenas uma ponta que perpassa três versos, sendo o último deles em um bloco estendido na letra sem alteração na forma instrumental, que se inicia com a Red Special de May (que dá a tônica) acompanhada por três fases harmônicas de um sintetizador. A extensão das notas lembram a métrica comum do blues, mas o ritmo e as variações de um ponto para outro não permitem que esse modelo se complete, o que divide a canção em partes bastante fáceis de se gravar e acompanhar contrastadas a outras de execução mais complicada, que vai de frases com vocais menores a maiores em questão de segundos.

O clipe de I Want to Break Free, com os membros da banda vestidos de mulher, foi ideia de Roger Taylor, que queria fazer uma paródia da novela britânica Coronation Street. O vídeo causou ira nos fãs mais conservadores e foi boicotado pela MTV e por parte dos DJs dos Estados Unidos, o que explica a canção ter tido tanto sucesso na Europa e não na terra do Tio Sam — bom, isso e o fato de o Queen ter, sem querer, se afastado dos Estados Unidos, não renovando contrato com uma das distribuidoras do país e, no caso de Mercury, deixando seu apartamento em NY para nunca mais voltar.

Keep Passing the Open Windows é uma das mais fracas composições de Freddie Mercury, mas não chega a ser ruim. A faixa foi composta inicialmente para a trilha do filme Um Hotel Muito Louco (1984), mas o diretor Tony Richardson optou por usar música clássica, para cortar gastos. A partir dela que Queen, então em pausa, resolveu juntar-se para produzir The Works. A música é uma mistura de rock com alguma outra coisa que é difícil identificar, porque está diluída em seis ciclos que se alongam mais do que deveriam, talvez o maior defeito da faixa.

Mas toda e qualquer estranheza logo se perde quando chegamos à penúltima faixa, a excelente Hammer To Fall, a mensagem antibelicista de Brian May, referindo-se várias vezes às ameaças nucleares que marcavam a Guerra Fria. Todos os ingredientes para o sucesso e beleza da canção estão presentes: riff viciante, melodia “chiclete” e letra que carrega versos curtos, mais facilmente encaixados na métrica da canção, tornando-a mais fluída, especialmente porque os vocais não se alteram tanto — temos apenas uma oitava em jogo — e porque a incursão de vozes de apoio como acompanhamento ou backing vocal ajudam a criar uma sensação de grandeza que é facilmente percebida nas execuções ao vivo da faixa.

E o disco termina no número nove, composição de Freddie Mercury e Brian May, Is This the World We Created…?. Trata-se de uma canção de protesto, produto da última sessão de gravação do álbum e que tomou o lugar de There Must Be More To Life Than This. Pela primeira vez, em 14 anos de parceria, Mercury e May dividiam os créditos de uma canção, o que talvez explique os curiosos caminhos musicais da faixa — que é uma balada em seu clássico modelo –, e certamente traz influências musicais e líricas de seus dois compositores. Há uma cadência reflexiva tão grande na faixa que ela quase se tornou estranha no fechamento do disco (se bem que alguns acham que ela de fato não deveria estar no final). O fato é que a música aponta para um caminho oposto ao de Radio Ga Ga, o que me faz vê-la no lugar certo, não fechando o ciclo, mas adicionando mais um tópico na proposta geral do disco, fazendo valer a sua mistura de gêneros e estilos.

The Works, Indeed
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O período de gravação de The Works (agosto de 1983 a janeiro de 1984, em Los Angeles e Munique) foi, apesar de problemático, um dos mais produtivos do Queen. O álbum acabou tendo apenas 9 faixas, mas pelo menos 20 obras foram compostas, pensadas e/ou gravadas durante esse período, algumas sendo inclusas em outros projetos e outras jamais conhecendo algum lançamento oficial. Abaixo, faço uma lista do material extra concebido durante a produção de The Works.

Back to Storm

Infelizmente a canção nunca foi completada. Uma demo foi gravada, com bateria, piano e vocais de Mercury, que claramente ainda estava estruturando a letra. Todo o material disponível sobre essa demo é de má qualidade, mas é possível ouvir bem os três elementos musicais gravados, como vocês podem acompanhar abaixo. Existe uma outra faixa chamada Little Boogie, também gravada, que é um exercício de Mercury ao piano em uma espécie de adendo para Back to Storm.

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I Dream of Christmas / Man Made Paradise / Man on Fire

Composta por Brian May, I Dream of Christmas deveria ser a “canção de Natal” do Queen, mas foi substituída por outra, escrita por Roger Taylor. Há rumores de que o Queen chegou a gravar a faixa, mas nenhum registro disso confirma o boato. O fato é que Anita Dobson, futura esposa de May, gravou I Dream of Christmas, com May e Deacon entre os instrumentistas.

Man Made Paradise chegou a ter uma demo da banda, mas não recebeu maiores atenções. Mercury gravou a canção, com outro arranjo, para seu disco Mr. Bad Guy (1985).

Man on Fire, composição de Roger Taylor, também não entrou para o álbum e foi usada pelo cantor em seu disco Strange Frontier (1984).

I Go Crazy

Outra de Brian May que não entrou para o álbum. A faixa chegou a ser lançada pelo Queen como Lado B do single Radio Ga Ga.

Let Me In Your Heart Again

E mais outra (maravilhosa!) canção de Brian May que não entrou para The Works, mas foi lançada por Anita Dobson. A faixa foi gravada durante as sessões de Los Angeles e só chegou ao público no disco especial Queen Forever (2014), em uma versão remasterizada.

Love Kills

Obra de Mercury e Giorgio Moroder para The Works, mas que acabou não entrando para o álbum. A faixa foi retrabalhada e lançada em uma trilha sonora alternativa para o filme Metrópolis (1927), de Fritz Lang. Uma versão em balada foi lançada oficialmente pelo Queen, no álbum especial Queen Forever (2014).

Thank God It’s Christmas

Composição de May e Taylor, Thank God It’s Christmas foi lançada pelo Queen como single de Natal em novembro de 1984. A faixa também foi posta no lado B do single A Winter’s Tale, de Made in Heaven (1995), o último álbum da banda. Ela também apareceu como uma das canções do especial Queen Greatest Hits III (1999).

There Must Be More to Life Than This

Composição de Mercury, esta canção foi inicialmente gravada pelo cantor em parceria com Michael Jackson, quando estavam trabalhando em algumas músicas, nos Estados Unidos. Nunca lançada, a faixa foi então regravada pelo Queen para Hot Space, mas também não entrou no disco. Retrabalhada para The Works, também não entrou na versão final. Mercury regravou a faixa sozinho para seu álbum Mr. Bad Guy e a faixa também foi lançada em Queen Forever (2014), com mixagem de William Orbit.

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Nota sobre fontes: eu traduzi trechos de informações em entrevistas com os membros da banda para diversas redes de TV e rádio ao longo dos anos; compilei informações técnicas específicas expostas no livro Queen – História Ilustrada da Maior Banda de Rock de Todos os Tempos, de Phil Sutcliffe (e também de encartes de CDs, documentários de DVDs e livros que acompanham os boxes Especiais da banda); trouxe diversas informações sobre decisões ou discussões de bastidores, processo de criação das músicas, uso específico de instrumentos, descrição de cenas da produção dos discos, estilos ou comparações entre canções de diversas Eras da banda através de um processo criativo de caráter biográfico do documentário Queen – Days of Our Lives e também de artigos em diversas páginas ligadas à banda, aos estúdios e principalmente aos produtores dos discos.

Aumenta!: Radio Ga Ga
Diminui!: Machines (Or ‘Back to Humans’)
Minhas canções favoritas do álbum: Hammer to Fall

The Works
Artista: Queen
País: Reino Unido
Lançamento: 27 de fevereiro de 1984
Gravadora: EMI, Parlophone
Estilo: Rock, Hard rock

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