Home QuadrinhosArco Crítica | Thor: A Saga de Surtur (1984 – 1985)

Crítica | Thor: A Saga de Surtur (1984 – 1985)

por Giba Hoffmann
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Walter Simonson já declarou em entrevistas que, na ocasião em que fora contratado para roteirizar e desenhar as aventuras do deus do trovão, no início dos anos 1980, acreditava estar trabalhando em uma mídia destinada a se encerrar em breve. Embora felizmente não tenha encontrado amparo na realidade, seu fatalismo talvez tenha sido pivotal na construção de uma narrativa destinada a marcar a história da mídia. Não apenas sua temporada no título pode ser considerada a fase definitiva de Thor como ainda, tomada no campo mais amplo da biblioteca da Marvel Comics, ela certamente merece destaque entre os gigantes da editora. Acreditando estar escrevendo literalmente as últimas histórias em quadrinhos, o autor não perdeu tempo em estabelecer uma narrativa energética e multifacetada, entrelaçando diversos elementos que compuseram o universo de Thor até então em torno de um verdadeiro épico que se iniciou com A Balada de Bill Raio Betaencontrando seu ápice ao longo do maxi-arco A Saga de Surtur.

Hoje em dia quando falamos em “épico” normalmente utilizamos o termo de forma vaga para nos referir a algo extremamente bom. Mas nas raízes, a palavra também denota algo mais específico – em termos de narrativa, falamos em algo de grandes proporções, que envolve riscos incomensuráveis e se estende por um largo período de tempo, provações quase impossíveis e, de preferência, com batalhas campais entre mais de um exército de criaturas fantásticas. A Saga de Surtur é épica não apenas no primeiro, mas também neste segundo e mais raro sentido. Trata-se inclusive de um épico dentro de uma série que se define pela larga escala e pela fantasia cósmica que frequentemente coloca a existência em jogo. Para apresentar-se como um ápice em meio às extravagâncias históricas dos Nove Reinos das páginas de Thor é necessário algo especial, algo a mais, e é isso que Simonson traz bem aqui.

A trama central gira em torno da volta de Surtur, o mais antigo e poderoso dos demônios de fogo de Muspelheim. Ser ancestral até então frequentemente associado a Ymir, seu equivalente nos gigantes de gelo de Niffleheim, o arco dá um novo contorno ao personagem, que se revela uma ameaça muito maior do que se poderia imaginar, uma vez que, em suas aparições anteriores, nada se mencionava a respeito de sua espada e de seu destino profetizado e lugar no cosmos. Aqui, revela-se, através de Odin, que Surtur não é apenas o mais antigo dos demônios de fogo, mas que é um ser tão antigo quanto a própria existência, provavelmente destinado a ser o primeiro e último a ser nela. Seria ele a trazer a derradeira destruição aos Nove Reinos, através do uso de sua poderosíssima espada.

Nesse contexto é que, logo no início de A Balada de Bill Raio Beta fomos levados a presenciar a ominosa forja de uma espada gigantesca, no coração em chamas de uma galáxia. Por todo o restante das edições que compõem o desenvolvimento do arco, voltamos a ter vislumbres do gigante e de sua Espada Crepúsculo. Tudo ganha sentido quando nos é revelada a rusga de Surtur com os deuses asgardianos. No início do tempo, Odin viajara acompanhado de seus irmãos Vili e Ve até Muspelheim para tirar satisfação com o cara a respeito dessa terrível lâmina destinada a acabar todos os mundos em fogo. Combinando seus poderes, eles têm sucesso em destruir a espada e selar Surtur, às custas das vidas de Vili e Ve, cujas forças se unem no irmão sobrevivente dando origem à Força Odin.

Ou seja, a forja que acompanhamos ser realizada (sempre com o uso ambíguo da onomatopéia “DOOM!”) é literalmente uma ameaça tão antiga quanto o tempo e provavelmente destinada a se tornar responsável pela destruição definitiva dos Nove Reinos. Nem mesmo as Nornas são capazes de visualizar com precisão o que acontecerá a partir da invasão de Surtur – embora lhes seja claro que ela é inevitável. Estando pronta a espada, tudo que falta ao raivoso demônio ancestral é mergulhá-la na Chama Eterna, que lhe fora roubada em seu embate contra os filhos de Bor, encontrando-se em Asgard, sob o cuidado de Odin. Uma ameaça colossal, do  tipo da que realmente pode apresentar um senso de risco aos deuses imortais. Se utilizado muito frequentemente, trata-se de um artifício tão propenso a falhar quanto qualquer cenário de fim do mundo. O segredo aqui é a forma como a trama é trabalhada, tanto em termos de narrativa quanto do bom uso da mitologia estabelecida e dos temas centrais da série.

Para o leitor a gravidade da situação é apenas prenunciada, ficando clara apenas posteriormente. O conflito épico central é construído em camadas e astutamente entremeado com tramas pontuais, que se encontram de forma significativa no desfecho. Aqui trata-se de uma estrutura típica das melhores sagas de quadrinhos dos anos 1970 e 1980, que balanceavam muito bem o episódico com os maxi-arcos, normalmente focados em personagens. Assim, contracenam aventuras urbanas de Thor que remontam às histórias iniciais do personagem (com o twist de se tratar agora de Sigurd e não mais de Don) com as complexas tramas de viagem entre reinos que marcaram os desenvolvimentos posteriores do personagem. Na tapeçaria geral dos acontecimentos, Surtur só ganha destaque na reta final, que consiste em quatro edições da mais pura escalagem de ação (algo como um equivalente da Batalha do Portão Negro para o universo asgardiano da Marvel). Porém tudo que acontece tem seu papel e importância para a batalha decisiva, seja em desenvolvimento de roteiros e personagens, seja no nível temático, onde Simonson expande o bom desenvolvimento de seu arco inicial.

Para todos os efeitos, eu consideraria a batalha final longa demais, mesmo retratada sob o traço energético e expressivo de Simonson. Porém em nenhum momento ela se torna desinteressante ou passa a se acomodar em um ritmo já manjado, como em muitas da batalhas campais dos eventos mais recentes da Marvel, por exemplo. Ou seja, se o desfecho épico e repleto de ação é sem dúvida um atrativo (pecando talvez até um pouco pelo excesso), ele se sustenta e tem efeito apenas porque o autor toma seu tempo em sua preparação, revestindo de sentido aquilo que poderia se passar como apenas mais uma bela representação gráfica de uma guerra fantástica-cósmica (o que, convenhamos, já não é pouca coisa).

Após terem sido muito bem trabalhadas no arco anterior, as temáticas do valor do guerreiro e do significado da batalha voltam a aparecer, exploradas sobre ângulos diversos. Com o fim da identidade de Donald Blake, a partir da transferência do poder para Bill, temos um Thor lidando com a mortalidade de forma totalmente diferente, superando o paradigma estabelecido para o personagem em sua primeira aparição de forma definitiva. Suas aventuras sob a nova e desajeitada identidade civil de Sigurd Jarlson servem em geral para estabelecer ótimas situações humorísticas, muitas delas envolvendo as tentativas de Lorelei em seduzi-lo. Mas para além disso, trata-se de um momento de redescoberta para Thor, uma vez que ele passa a contemplar sua identidade a partir de um ponto de vista com o qual não estava acostumado, já que seu apreço por Midgard estava muito ligado à encarnação de Don Blake.

É aí que abre-se o espaço para explorar um outro lado do personagem: não mais a dualidade entre a fragilidade responsável e o poder aventureiro de Don Blake e Thor, mas sim a própria identidade de Thor como guerreiro que, tendo aprendido sua lição de humildade pelos olhos de Blake, tenta agora unir as duas perspectivas e refletir sobre o que significa afinal de contas lutar por algo. Tema mais asgardiano, impossível. Ao invés de um alter-ego, Simonson explora a temática no jogo com outras figuras de guerreiros que, de diferentes formas, se encontram em situação semelhante à de Thor, ao mesmo tempo em que encarnam a fragilidade contrastante ao seu poder que antes cabia à Blake.

No contexto da batalha contra um Fafnir de Nastrond reanimado por Loki, temos Eilif, o último viking, e seu desejo de morrer em batalha contrariado pela incapacidade física em fazê-lo de forma minimamente honrada. Após sua bela ascensão para Valhalla, entra a figura de Roger Willis, que assume o papel de escudeiro de Thor no contexto da batalha contra o elfo negro Malekith, o amaldiçoado, pelo controle da Caixa dos Invernos Passados. Veterano da guerra da coréia, Willis é um guerreiro calejado e world-weary que se vê envolvido com o conflito ao herdar, a contragosto, a guarda da caixa de seu pai. Falando em Malekith, o vilão funciona melhor aqui, como ameaça intermediária, do que quando forçado a um papel de antagonismo principal como em Thor: O Mundo Sombrio, a aventura de Thor e Willis com os elfos negros conseguindo ser um ponto alto mesmo entre tantos momentos marcantes sendo prova disso.

Ambos, Eilif e Willis dão exemplos de valor e do sentido da luta mediante o destino aparentemente inescapável, revestindo os heroísmos de Thor de grandeza e trazendo a todo momento o tema da relação não apenas com a morte, mas efetivamente com o fim, com o vazio da não-vida. A morte honrada dos guerreiros de Asgard, que em fundo guarda um pouco de vida já que é a morte em batalha (não por menos uma morte que significa o eterno renascimento) versus o simples fim, o apagar de tudo (a “morte em palha” tão temida por Eilif) – é isso que está em jogo com o ataque de Surtur, que despreza absolutamente a vida mas que não age necessariamente em direção à morte, mas sim em favor do nada. Neste sentido cabe destacar uma terceira figura: Balder.

O mais Bravo entre os bravos de Asgard encontra-se em completa crise após sua experiência de pós-vida causada por Loki anteriormente, onde presenciara os efeitos de suas ações, visualizando as pessoas que matou e o que ocorre, afinal, em Hel. Apesar de não contracenar muito com Thor, a exploração do personagem traz muitos desses temas, em especial na sequência com as Nornas, onde lhe é feita a proposta de arrebentar o fio de sua vida – mas sem tempo para hesitar, teste no qual o guerreiro, que havia saído a galope no deserto sem fim decidido a simplesmente desaparecer, falha miseravelmente, sendo tragado de volta às rédeas de sua própria vida (literalmente, ele aparece segurando as rédeas mesmo). Os questionamentos de Balder e seu desejo de morte são muito bem trabalhados, fazendo de sua chegada para batalha final outro momento memorável.

Assim é que esses temas tomam forma e essas subtramas se encontram no desfecho colossal, com o encontro de todos esses personagens e mais algumas figuras do Universo Marvel, num combate que se dá em Nova York sobre um Rio Hudson congelado, deserto do Saara, campos élficos ocultos da Inglaterra e Asgard – tudo ao mesmo tempo e sem pestanejar. Nota-se aqui um excelente uso dos contrastes de escala, indo das colossais batalhas campais inimagináveis entre as hordas demoníacas e os guerreiros de Valhalla aos perrengues de Willis e de um desajeitado Tocha Humana para tentar salvaguardar a Caixa dos Invernos, perdida nas profundezas da fortaleza oculta de Malekith. As perspectivas individuais de Thor, Loki e Odin lutando em Asgard e de Bill, Sif e muitos outros asgardianos liderando as tropas em Midgard também tornam a coisa toda especialmente envolvente, dando personalidade ao conflito e fazendo com que o leitor se importe com as diferentes frentes de combate que são mostradas de forma intercalada e surpreendentemente equilibrada. Não é fácil manter tanta coisa rodando ao mesmo tempo e não perder a atenção do leitor em ao menos alguma frente, mas ao menos neste arco o feito é garantido – e a escolha por jogar em tantas frentes mostra resultados.

Conjugando diversos elementos do universo asgardiano da Marvel de forma magistral, A Saga de Surtur não é apenas o ponto alto da aclamada fase de Walter Simonson no título, mas representa também um marco para a mitologia da editora como um todo. Simonson certamente bebe da fonte de Kirby (e quem não?), em termo dos seminais Contos de Asgard, no campo do personagem em questão, mas também de todo épico cósmico do autor, que praticamente criou e aperfeiçoou o subgênero na nona arte, cujo charme é bem captado por Simonson e retomado com rara precisão. Mais do que isso, sua retomada de Kirby é inspirada, mesclando com o clássico um estilo próprio do autor, um toque de originalidade que traz de volta algo do que o inspirou, mas sob um tom de imprevisibilidade. Nesse sentido, e arriscando talvez um paralelo um tanto distante, poderia-se dizer que Simonson está para Kirby assim como Don Rosa está para Carl Barks. É um trabalho de fã que nasce mais da inspiração do que da admiração, o fanfic supremo, se assim o quiser – afastando o sentido pejorativo do termo, e sim no sentido em que, apoiando-se sobre o trabalho do mestre, o fã cria algo de novo. Os quadrinhos felizmente continuam firmes e fortes até hoje – mas tivessem acabado com a fanfic doida de Simonson, ao menos o filho favorito de Odin teria tido um final à sua altura.

Thor: A Saga de Surtur (Thor Vol.1: / The Mighty Thor: The Surtur Saga #341 – 353) — EUA, março de 1984 a março de 1985
Marvel Comics
No Brasil: Thor: A Saga de Surtur #1 – 6 (Abril, 1988-1989); Os Maiores Clássicos do Poderoso Thor #1 – 2 (Panini, 2006)
Roteiro: Walter Simonson
Arte: Walter Simonson
Arte-final: Walter Simonson
Cores: George Roussos, Christie Scheele
Letras: John Workman, John Workman Jr.
Capas: Walter Simonson
Editoria: Mark Gruenwald, Michael Carlin
290 páginas

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