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Crítica | Thor: Ragnarok (1978)

por Giba Hoffmann
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O conceito de Ragnarok é um dos temas preferidos dos autores que buscam adaptar, em algum nível, elementos da rica mitologia nórdica em qualquer estilo de ficção que seja. Os elementos centrais que compõem o conceito lançam as estruturas básicas para uma trama verdadeiramente épica: a profecia inescapável e seu caráter cíclico, o fim do mundo que, ao mesmo tempo em que encerra na morte os deuses, garante sua imortalidade no renascimento também prenunciado. Assim, era apenas uma questão de tempo até que a versão marveliana de Asgard se visse às voltas com o crepúsculo dos deuses.

De forma geral, a profecia que a versão da Marvel monta a partir do registro mitológico é a seguinte: a partir ds confabulações de Loki, uma guerra entre os deuses se daria, com o ataque de Hela e uma horda de trolls e guerreiros submundanos seguidos pela terrível Serpente de Midgard (Jormungand), destruindo a Bifrost e trazendo a morte dos deuses e o esfacelamento de Asgard, que acabaria cauterizada pelas chamas de um emergente Surtur e sua Espada Crepúsculo. Variações da profecia apareceriam como ênfases distintas no texto, mas esses elementos gerais sempre se fizeram presentes nas diferentes histórias onde os eventos tenderam a se alinhar sugerindo a concretização da profecia. A mais conhecida iteração da ameaça do Ragnarok se deu nas páginas da Saga de Surtur, onde o demônio ancestral de Muspelheim aparece como protagonista da destruição, os esquemas traiçoeiros de Loki servindo apenas como possibilitadores de seu plano mais amplo que envolve encerrar o ciclo de uma vez por todas.

No entanto, essa não fora a primeira vez em que acompanhamos o panteão asgardiano às voltas com a concretização de seu destino final. Tendo sido citada e entrevista como tema de forma indireta em algumas das tramas envolvendo o reino dourado, em especial nos Contos de Asgard das edições #127 e #128 de Journey Into Mystery, a profecia de Volla que dá conta do final do mundo chega mais perto de se concretizar pela primeira vez no arco que se inicia na edição #272 da então renomeada Thor. Uma versão com tonalidade e desenvolvimento bastante diferentes da que se seguiria alguns anos depois sob a pena de Walt Simonson, a saga aqui apresentada balanceia uma narrativa mítica intrigante com elementos mais mundanos resultando em uma história bastante divertida, ainda que com seus problemas.

A dupla dinâmica de Roy Thomas e John Buscema pode ter sido responsável por produções clássicas dos Vingadores, mas o que transparece em sua versão de Thor é menos a ação super-heroica do que a fantasia medieval de Conan, o Bárbaro, série na qual foram colaboradores frequentes e que ditou uma redescoberta de interesse pelo subgênero de swords & sorcery da qual eles provavelmente se serviram para contar suas tramas envolvendo o rei do trovão e suas aventuras junto ao panteão asgardiano.

Após O Dia em que o Trovão Falhou, divertidíssima edição inicial que serve de prelúdio à história propriamente dita, trazendo um conto relatado em flashback a respeito de Thor, Loki e uma aventura onde eles têm seu poder e coragem postos à prova, somos levados ao início da saga com as ameaças de Harris Hobbs, repórter desiludido e ex-cliente do doutor Don Blake que, desde sua aparição em Journey Into Mystery #114, quando auxiliou Thor a lidar com a ameaça do Homem-Absorvente, tornara-se obcecado em descobrir tudo sobre Asgard visando realizar uma reportagem.

Mesmo chantageando Thor, Hobbs não consegue a permissão para acompanha-lo até Asgard. É aí que Loki faz uma jogada um tanto inusitada e consegue infiltrar o repórter para entrar em Asgard clandestinamente, acompanhado do cameraman Ruivo e do técnico de som Joey, dentro de um computador (pois é). Tolo daquele que pensar que se tratava de um novo negócio de “coiotagem” por parte do deus da trapaça, visando lucrar com a imigração ilegal entre os reinos – muito mais ameaçador do que apareceria à primeira vista, na verdade o esquema se tratava da armação do Ragnarok! Não apenas os sonhos que fazem parte da obsessão de Hobbs se revelam proféticos em relação ao crepúsculo dos deuses, mas também ao que tudo indica ele se trata de um peão central nos planos de Loki. Mas o humano, mesmo desconfiado das consequências impensavelmente graves de seus atos, acaba topando, pensando na glória futura do furo jornalístico.

Como pode-se imaginar a partir dessa premissa, a tonalidade da história é bastante leve e despretensiosa em sua maior parte, o que contrasta com a temática abordada. Enquanto que a jornada narrada por Thor na edição inicial consegue resgatar os ares de fábula asgardiana, guardando um bom humor mas sem cair no absurdo, as edições posteriores patinam um pouco nesse equilíbrio necessário, especialmente no que tange à trupe de repórteres, que parecem “sobrar” na história cumprindo um papel de alívio cômico. Um alívio cômico que certamente é interessante, para além da surpresa e incredulidade dos humanos em tentar compreender o absurdo que se passava ali, tendo tempo para nos mostrar um lado pouco visto do panteão, em especial o completo descaso de Odin e dos grandes heróis de Asgard pelos mortais, os quais só conseguem receber a atenção de Thor, ainda que tarde demais.

A hybris de Odin, inclusive, pode ser vista como o tema central de todo o arco, ainda que não seja lhe dado destaque explícito. É aqui que o Pai de Todos faz a troca lendária com o guardião do Poço da Grande Sabedoria, Mimir, deus gigante ancestral o qual era detentor de todo o conhecimento do mundo e do qual Odin mantinha a cabeça flamejante aprisionada como resguarda e reserva de sabedoria. Vingando-se de seu aprisionamento, Mimir pede-lhe o olho, que Odin oferece na tentativa de prever e impedir ou postergar o Ragnarok – que é, em todo caso, criação de uma encarnação ancestral sua (de outro ciclo anterior). A busca pela onisciência e por lutar contra a própria e reconhecidamente necessária “mortalidade” custam-lhe o olho, dando ao personagem seu visual clássico.

Porém mesmo este sacrifício não é o suficiente para evitar a cadeia de eventos que se segue – na verdade, num movimento clássico de histórias que lidam profecias, a tentativa de impedi-la acaba por concretizar a cadeira de eventos de forma a levar Hela e a Serpente para a porta de Asgard (e provavelmente despertar Surtur do sono profundo), após a morte de Balder. Se por um lado trata-se de um clichê, ele é bem trabalhado aqui, em especial com a dissimulação total de Loki a respeito de seus planos. O bravíssimo Balder recebe uma morte patética por conta dos artifícios de Loki. Mas é Odin quem se pode culpar, já que não apenas sua ausência facilitou o retorno de Loki, mas o autor do disparo de flecha de visco (a única coisa na natureza que não jurou à Frigga jamais machucar Balder enquanto ele estivesse em Asgard) é ninguém menos que Hoder, deus cego que Odin encontrou no caminho de volta de uma viagem que visava justamente conhecer mais sobre as profecias de Volla, visando impedi-las.

A (quase) morte de Balder sinaliza o momento perfeito para o ataque de Hela e de sua horda submundana, bem como o ataque da Serpente de Midgard, destinada a enfrentar Thor em uma batalha final onde ambos sairiam derrotados. Todos esses elementos se alinham adaptando as narrativas mitológicas com fidelidade, no traço expressivo de Buscema. O ponto fraco da história vem na forma de outro detalhe inserido por Loki na trama dos eventos. Ruivo, o cameraman de Hobbs, apaixona-se perdidamente por Sif, tornando-se possesso de raiva ao perceber que não poderia competir com Thor. Entra em cena Loki que, desfrutando de conhecimentos a respeito de um “plano B” de Odin para salvaguardar a força de Thor, caso fosse necessária em um momento em que ele pudesse estar em Midgard, selou-a nos equipamentos de seu lendário treinamento: as luvas Járngreipr e o cinto Megingjord (retornando pela primeira vez desde o embate contra Sandu, em Journey Into Mystery #91). Essa medida de Odin, que visava principalmente eventos como um certo Ragnarok anunciado, mais uma vez se prova fatal quando Loki o utiliza para criar seu próprio Thor – desta vez ruivo e com barba, como nos mitos originais – e com ele desarmar seu odiado irmão.

O problema de Ruivo é que o personagem em nenhum momento empolga. Pelo contrário, suas atitudes em relação à Sif são extremamente infantis e fora de lugar de uma tal forma que o personagem empunhar o Mjölnir passa a ser um completo e total absurdo, mesmo com a explicação dos itens mágicos que é oferecida. Trata-se de um personagem patético e com uma motivação pífia e mal construída, ainda que possa se compreender a intenção do autor de que trata-se justamente do deus da trapaça utilizando-se do espírito mesquinho dos humanos a seu favor, como já fora feito com Hobbs. Em todo caso, Loki acaba sentenciado, onde temos uma subtrama interessante com Sigyn, sua sofrida esposa (recém chegada com a comitiva de deusas de Asgard) que vem em seu auxílio, porém sofrendo com o reconhecimento de que o marido obviamente não merece perdão. O estrago, no entanto, já é feito, com a vida de Balder protegida por um fio pela magia de Odin, que no entanto acaba por conta disso incapacitado de lutar contra as hordas invasoras. Sif é levada pelo Thor Ruivo, após este ameaçar destruir o Escudo de Odin que protegia precariamente a vida de Balder. A derrota de Thor e a rendição fácil de Sif forçam um pouco a barra em termos de caracterização, ainda mais por virem de um personagem tão fraco quanto Ruivo.

Sem as figuras centrais de Odin, Balder e Sif, cabem aos Três Guerreiros e a um Thor desarmado comandar as forças de Asgard contra a invasão caótica de Hela. No decorrer da batalha, Thor encontra a chance de tirar satisfação com Loki, em uma sequência de batalha fantástica dos irmãos em meio ao que poderia ser o fim do mundo. Se a batalha de Thor contra Ruivo não empolga pelo roteiro fraco, as duas batalhas do deus do trovão contra Loki são excelentes, com o deus da trapaça apresentando um arsenal de armas e técnicas que mostram que ele estava, de fato, preparado para toda a situação que transcorreu. O traço de Buscema brilha nas cenas de luta, que trazem a movimentação típica de uma boa cena de ação de Conan, com um toque da grandeza cósmica dos asgardianos. O papel de Ruivo previsivelmente acaba sendo o de cumprir a profecia quanto à morte de Thor frente ao combate contra a Serpente, em um gesto de redenção que vem do nada e pouco significa. Tivesse o personagem sido construído com mais calma ao longo de mais edições (como o próprio Hobbs foi, para citar um exemplo muito próximo), talvez tivessemos algum senso de grandeza no ato em que ele desiste do martelo em favor de seu verdadeiro proprietário, efetivamente provando resistência à onda de destruição e ao Ragnarok, ao mesmo tempo em que ironicamente cumpria sua parte da profecia.

Em si, trata-se de uma história interessante, ainda que traga traços de estilo que remontem, de forma um tanto dissonante, ainda à Era de Prata, uma vez que a alçada de Thor à Era de Bronze viria apenas alguns anos mais tarde, com a entrada de Simonson no título. Porém a trama de Roy Thomas cumpre bem o que se propõe a fazer e, em especial, prepara o palco para um desfecho mais definitivo da trama do Ragnarok em A Saga de Surtur. O papel que a quase-morte de Balder tem no desenvolvimento desta importante saga futura, bem como do personagem como um todo, remonta ao que ocorre aqui. Mas não apenas isso. Ao final, Odin declara aos altos pulmões que antecipara tudo que se passou: a morte de Balder e a criação do Thor impostor foram formas de concretizar as profecias de Volla, apenas para virar os eventos a seu favor de maneira a evitar que os inimigos de Asgard fizessem o uso delas para seus próprios fins. Na ocasião do ataque definitivo de Surtur, a lição amarga que Odin aprende é justamente a de que ele é culpado pelo mesmo pecado por conta do qual sentenciou Thor ao exílio em Midgard. Sua hybris fez com que ele achasse que estava mais no comando do que realmente estava, e com isso seu sacrifício para impedir o ataque da Espada Crepúsculo é especialmente significativo – mais do que o olho entregue em troca de um conhecimento que se provou inútil frente às maquinações das Nornes.

Normalmente obscurecida pelas sombras dos pilares que são a fase de Stan Lee & Jack Kirby e a fase de Walter Simonson, a passagem de Roy Thomas pelo título merece ser resgatada e relida no mínimo pelo valor histórico de transição de períodos, mas mais do que isso, por apresentar aventuras divertidas que resgatam o charme dos Contos de Asgard sob um enfoque que, se deixa faltar um pouco no lado cósmico, ganha pela execução precisa dos temas de fantasia e pelo uso eficiente da mitologia nórdica como inspiração para os seus arcos. Ragnarok não é exatamente o ponto alto dessa fase, mas merece destaque na medida em que introduz a ameaça da profecia, que se fará presente na cronologia do universo asgardiano da Marvel até os dias de hoje, através de um misto de humor e aventura que funcionam bem, ainda que deixem a desejar no que diz respeito ao uso dos personagens e desenvolvimento da narrativa.

Thor: Ragnarok (Thor Vol.1: The Mighty Thor: Ragnarok #272 – 278) — EUA, junho à dezembro de 1978 
Marvel Comics
No Brasil: Heróis da TV #95 – 99 (Abril, 1987)
Roteiro: Roy Thomas
Arte: John Buscema
Arte-final: Tom Palmer, Chic Stone
Cores: George Roussos, Bob Sharen, Glynis Wein, Ben Sean
Letras: Joe Rosen
Capas: John Buscema
Editoria: Jim Shooter, Roy Thomas
126 páginas

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