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Crítica | Tintim e os Pícaros

por Luiz Santiago
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A rigor, Tintim e os Pícaros foi o último álbum de Hergé, que faleceu em março de 1983, antes de terminar Tintim e a Alfa-Arte, história que, mesmo incompleta, acabou sendo publicada.

A trama de Tintim e os Pícaros se passa na República Parlamentarista de San Theodoros, que nessa ocasião, está sob comando do General Tapioca. As relações de poder, a ocorrência de ditaduras e as estranhas motivações revolucionárias na América Latina já haviam sido abordadas por Hergé em O Ídolo Roubado, álbum no qual vemos Tintim em San Theodoros pela primeira vez, numa situação política bastante semelhante a dessa presente história, mesmo tendo acontecido 40 anos antes.

É evidente que no mundo fictício das aventuras de Tintim, não é nada absurdo termos o jovem que lutou contra bandidos e conheceu os índios Arumbayas nos anos 1930 ter a mesma cara e a mesma vitalidade nos anos 1970, quando então ajuda o General Alcazar a retomar o poder. Todavia, Hergé se preocupava com essa passagem do tempo, tanto que é possível observar uma grande mudança de comportamento em Tintim nessa história. Em primeiro lugar, vemos ele chegando de moto em Moulisart; depois o vemos praticando ioga e, para terminar, vemos que ele não aceita ir para San Theodoros, temendo uma armadilha de Tapioca para si e para seus amigos. Certamente um Tintim mais maduro…

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Em outros tempos, seria impossível imaginar Tintim se recusando a participar de uma aventura ou mesmo demonstrando outros interesses e afazeres além das investigações e resoluções de mistérios. Quem conhece os álbuns anteriores de Hergé sabe que cada aventura (ou, inicialmente, cada sequência de tirinhas semanais em suplementos infantis) eram crônicas de ação e investigação do repórter ao lado de Milu e dos Dupondt. Com o passar dos anos e o aparecimentos de personagens recorrentes como Professor Girassol e Capitão Haddock, as histórias passaram a ter um foco narrativo bem mais amplo e Tintim passou a dividir a atenção com seus companheiros, além de ter um melhor contexto para as aventuras, pelo menos no que diz respeito ao equilíbrio da ação por personagem.

Em contrapartida, esse aumento de personagens e aprimoramento narrativo do autor trouxe alguns problemas na construção das histórias. O exemplo mais drástico, na minha opinião, foi o de Voo 714 para Sydney. A aventura tem uma proposta inicial incrível, um excelente trabalho com os acontecimentos até o sequestro do avião, mas, do meio para o final da história, a base sobrenatural e a desmedida veia humorística puseram tudo a perder. Com pouco espaço para desenvolver melhor grandes histórias e com ambições de sagas cinematográficas nos roteiros desta fase, Hergé foi bastante prejudicado pelas exigências editoriais. Mesmo que ele pudesse escrever o que bem entendesse, havia um limite de tamanho para suas aventuras.

No caso de Tintim e os Pícaros, o autor procurou manter os pés no chão e não fugir um único momento do tema central, apenas desacelerando rápido demais os eventos ao final da história. Mesmo que tenha ficado com aparência de término abrupto, a aventura não decepciona e tem vários momentos impagáveis, com o Professor Girassol também agindo de maneira mais ativa e mostrando sua inteligência de modo mais incisivo desde o os álbuns da exploração lunar, nos anos 50.

O interessante aqui não é apenas o modo mais maduro com que Hergé trata os acontecimentos políticos e se refere indiretamente a Cuba, mas a incursão perfeita de fatos comuns e culturais do dia a dia, como o álcool, o Carnaval e a presença de uma mulher dominadora, no caso da esposa de Alcazar. Só o quadro do General de avental rosa secando louça valeria por tudo, porque é engraçado e tem um bom contexto por trás. Até a colocação de Bianca Castafiore, sua secretária, seu pianista e os Dupondt  cabem como uma luva à situação, justificando, inclusive o “desaparecimento” desses personagem no desenvolvimento da história, para mostrar o longo plano de resgate ser construído.

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Tintim e os Pícaros é uma ótima aventura do tipo “Perigo na República das Bananas”, uma história que traz boas mudanças de comportamento nos personagens clássicos de Hergé e, a não ser pelo modo como foi finalizada, uma irretocável sequência de acontecimentos, com direito a militares burros, guerrilhas atrapalhadas, Carnaval como distração popular para causas políticas e, acima de tudo, plena demonstração de amizade. Um enredo cheio de referências pop e também aos quadrinhos (Mickey e Asterix, por exemplo) que marca o final da produção de Hergé, ao menos com ele coordenando o projeto do início ao fim.

Tintin et les Picaros – Bélgica, 1975 a 1976
Publicação original: Tintim Magazine, 16 de setembro de 1975 a 13 de abril de 1976.
Publicação encadernada original: Casterman, 1976
No Brasil: Companhia das Letras, dezembro de 2008
Roteiro: Hergé
Arte: Hergé
64 páginas

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