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Crítica | Todo o Dinheiro do Mundo

por Ritter Fan
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Alguns filmes ganham mais notoriedade por fatores exógenos a ele do que por sua qualidade intrínseca. Todo o Dinheiro do Mundo é uma dessas obras que periga trafegar por esse caminho, deixando de ser reconhecida pelo que é, ou seja, o melhor trabalho de Ridley Scott desde pelo menos O Gângster, de 2007.

Depois de pronto e prestes a ser lançado no circuito de festivais, as acusações de que Kevin Spacey teria cometido assédio sexual começaram a vir à tona e, em uma decisão inédita, o estúdio e Scott, para impedir que a produção fosse simplesmente soterrada debaixo do peso dos atos do ator que vivia J. Paul Getty, personagem-chave da obra, reescalaram o papel e refilmaram todas as respectivas cenas em tempo recorde a um astronômico custo de 10 milhões de dólares (um quarto do que havia sido gasto até então, elevando o valor total a 50 milhões). Christopher Plummer que, aliás, havia sido a escolha original de Scott, derrubada pelo estúdio que queria um nome que vendesse mais facilmente o filme (inescapável a ironia, não?), foi escalado a toque de caixa e Mark Wahlberg e Michelle Williams também voltaram para atrás da câmeras, levando-nos ao segundo escândalo: enquanto para o mundo as refilmagens foram “vendidas” como atos graciosos dos atores, Mark Wahlberg recebeu algo como 1,5 milhões de dólares enquanto que Michelle Williams ridículos mil (isso mesmo, mil) dólares e com um agravante, Wahlberg teria usado seu poder de veto da escalação no novo Getty para negociar esse valor.

Mas o fato é que essa situação inusitada mostrou o enorme valor e flexibilidade de Ridley Scott atrás das câmeras, pois Todo o Dinheiro do Mundo é um produto que não mostra seus problemas de bastidores e acaba sendo um feito embasbacante quando lembramos o que foi alcançado em tão pouco tempo, literalmente uma questão de semanas. As sequências com J. Paul Getty são várias e suas interações com seu braço direito Fletcher Chase (Wahlberg) e sua nora Gail Harris (Williams) não são poucas, revelando o tour de force invisível que Scott soube guiar com maestria e que o elenco entregou com grande competência.

Aliás, competência é a palavra que ecoa ao longo da produção que lida com a notória história do sequestro do adolescente John Paul Getty III (Charlie Plummer, sem parentesco com Christopher) na Itália e a inusitada recusa de seu avô, então o homem mais rico do mundo, em pagar o resgate de 17 milhões de dólares. Apesar da fama da história e seu conhecido desfecho, não abordarei detalhes para não estragar o prazer de se assistir à fita para quem porventura não sabe o que acontece com o jovem. Mas, de toda forma, o que importa, na verdade, não é o final e muito menos a fidelidade histórica, já que muita coisa foi alterada para fins dramáticos, mas sim as várias lições de vida que o roteiro de David Scarpa, com base em livro de John Pearson, tenta passar.

Ao lidar rapidamente com o sequestro em si nos primeiros minutos da projeção, os holofotes são logo dirigidos para a reação fria e dura do velho Getty que se recusa até mesmo a falar com a mãe do garoto, algo que ganha cor e uma certa quantidade de textos expositivos por intermédio de alguns flashbacks que, diria, apenas chovem no molhado. De toda forma, uma coisa é certa: o filme é inclemente sobre Getty e sua famosa reação, elementos que são somente suavizados pela magistral atuação de Plummer, emprestando uma pesada camada de solidão a esse homem que tinha tudo, mas, ao mesmo tempo, não tinha nada. Arrisco dizer que se Spacey tivesse sido mantido no papel o efeito não seria o mesmo, especialmente em razão de seu trabalho como o maravilhosamente asqueroso Frank Underwood em House of Cards. Plummer, o eterno Capitão Von Trapp, ao contrário, tem uma longa reputação de papeis bondosos e generosos, a antítese de seu personagem aqui e essa fusão funciona muito bem para criar uma ambiguidade poderosa que somente é amplificada pela fotografia escura de Dariusz Wolski e pelos interiores grandiosos, ricos de objetos, mas pobres de calor humano, das propriedades de Getty, que emolduram brilhantemente o personagem, fundido-o com suas tão amadas artes, que sempre são o que são, diferente das pessoas, como ele deixa muito claro.

Portanto, o primeiro ponto do filme é um estudo sobre a riqueza extrema e o que talvez seja seu inevitável preço. Nunca saberemos exatamente o que é “ser” rico – e não tornar-se rico, a diferença é importante -, pelo menos não nessa magnitude impensável e Scott nos permite um olhar sobre o quanto essa condição pode ser a manifestação exterior de uma doença tão grave que contamina a todos em seu redor, deixando seu portador completamente isolado, definhando sozinho em meio a tanto, mas tanto dinheiro, que ele perde completamente seu significado, sendo muito mais uma obsessão “colecionista” do que qualquer outra coisa. Plummer absorve esse papel como uma esponja absorve água e, apesar de lá no fundo entendermos o cruel racional que leva Getty a nem sequer pensar em pagar o resgate, não conseguimos deixar de sentir completa ojeriza ao personagem que ele cria. Na verdade, quase completa, pois o ator deixa passar gotas de sua ternura natural por entre a frieza das ações de seu mitológico personagem.

No lado oposto, há Gail, a mãe desesperada para ter seu filho de volta. Ela simboliza a família, mesmo que seja uma família rachada por um marido que se entregara às drogas e à esbórnia. Mas quem espera uma atuação clichê de Michelle Williams como a mulher que se descabela, grita, chora e esmurra a parede, terá uma agradável surpresa. A atriz entrega um trabalho absolutamente encantador como uma lutadora, como alguém que em momento algum deixa o lado emocional tomar-lhe completamente. Orgulhosa e dedicada aos filhos, a Gail de Williams é a raiva contida, escondida e enterrada que abre espaço para uma praticidade ímpar que também inevitavelmente carrega um pouco de frieza, algo que os paparazzi são inclementes em apontar.

No meio desses dois lados em furiosa oposição, há o ex-espião da CIA Fletcher Chase, que é o negociador-chefe de Getty. De certa forma, ele é o personagem que mais se transforma ao longo da projeção e Mark Wahlberg, apesar de uma latitude dramática mais limitada, entrega uma mais do que convincente atuação, já que o roteiro de Scarpa evita a criação de heróis maiores que a vida. Muito ao contrário, o elemento humano é mantido muito próximo do que podemos efetivamente acreditar, mesmo considerando as vastas alterações em relação à história, especialmente quando a narrativa camba para um lado de thriller investigativo que surpreendentemente funciona, apesar de talvez ser um pouco mais detalhado do que o necessário para passar sua mensagem.

Até mesmo o elenco de apoio brilha, especialmente a atuação contida de Charlie Plummer como o sequestrado e Romain Duris como Cinquanta, o sequestrador que se afeiçoa dele em uma espécie de Síndrome de Estocolmo reversa que  é trabalhada com bastante naturalidade ao longo da projeção. E nós vemos a mão da direção de atores de Scott muito presente aqui, com seu controle muito próximo de seu elenco que acaba extraindo momentos tensos e realistas mesmo para aqueles que conhecem em detalhes a história que inspirou o filme.

Aliás, a tensão é elemento que é também obtido com a opressão causada pela já citada fotografia de Dariusz Wolski. Se o parceiro de longa data de Ridley Scott consegue eficientemente isolar Christopher Plummer com suas fotografia escura e uma paleta de cores que não foge do preto e marrom em uma rebuscada atmosfera barroca, ele ao mesmo tempo oprime o espectador quase que a cada segundo, transformando ambientes espaçosos em prisões, em labirintos que colocam todos os personagens no mesmo tipo de situação sem saída que o jovem Paul Getty se encontra. O jogo de gato e rato kafkiano é cada vez mais intenso na medida da progressão da obra até que o espectador se sente realmente incomodado com a situação, quase que querendo que ela acabe de uma vez.

Diria, porém, que é na extensão do seu momento climático que o filme se perde um pouco. Há muito o que se pensar sobre as atitudes de Getty e o desenrolar de toda a situação no seio daquela família. Scott acertadamente intercala o peso dessa análise com o lado mais “comum” de sua obra, ou seja, com os aspectos investigativos do sequestro e por boa parte ele consegue prender a atenção. No entanto, há um alongamento dramático do encerramento da situação principal que afasta um pouco o filme de seu cerne, banalizando-o com o tipo de ação que talvez seja um pouco demais nessa altura do campeonato. Não é nada estrondoso ou que destoe do que vinha sendo construído, mas esse clímax poderia ter sido reduzido para manter o ritmo narrativo. De toda forma, uma vez finalizado esse lado, temos dois momentos mágicos e contundentes envolvendo Plummer de um lado e Williams de outro que, sozinhos, já valem o preço do ingresso, ainda que, historicamente, eles sejam o que mais destoem da realidade dos fatos.

Todo o Dinheiro do Mundo prova que Ridley Scott ainda tem muito a oferecer à Sétima Arte. Mostrando seu clássico controle sobre as produções em que se envolve e que desatou um nó górdio de bastidor, ele entrega um filme que é muito mais do que os escândalos que o marcaram. A história dos Getty ficará com os espectadores por muito tempo depois que os créditos terminarem de rolar, o que por si só já revela todo seu mérito.

Todo o Dinheiro do Mundo (All the Money in the World, EUA – 2017)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: David Scarpa (baseado na obra de John Pearson)
Elenco: Michelle Williams, Christopher Plummer, Mark Wahlberg, Romain Duris, Timothy Hutton, Charlie Plummer, Charlie Shotwell, Andrew Buchan, Marco Leonardi, Giuseppi Bonifati, Nicolas Vaporidis, Andrea Piedimonte Bodini, Guglielmo Favilla
Duração: 132 min.

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