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Crítica | Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia

por Luiz Santiago
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Depois da recepção insatisfatória de Pat Garrett & Billy the Kid (1973), Sam Peckinpah teve ainda mais dificuldade para conseguir financiar um projeto seu. Ele tentou com a Warner a realização de um longa que já vinha planejando há três anos, um filme chamado Bring Me the Head of… [o nome de alguém], mas o estúdio rejeitou a proposta, não só baseado numa prévia do roteiro, mas também na dificuldade que era trabalhar com um alcoólatra irascível como era o diretor.

Em vez de chorar as pitangas em Hollywood, Peckinpah se uniu a dois estúdios mexicanos e conseguiu, com liberdade total de criação — inclusive com opinião definitiva no corte final, o único filme da carreira do diretor em que isso foi possível — realizar Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia, uma versão imunda, desesperada e degenerada de O Tesouro de Sierra Madre, de quem Peckinpah empresta o nome do personagem vivido por Humphrey Bogart e o dá a um dos “soldados” de seu longa.

Alfredo Garcia, que só é mostrado no filme através de fotos, tem sua cabeça posta a prêmio pelo pai de uma garota que ele engravidara e abandonara. Os caçadores de recompensa aparecem em cena como em uma corruptela moderna do western. Dentre esses caçadores, Bennie é o que de fato se destaca. Seu amor bruto por Elita e a tentativa de levar a bolada em dinheiro entregando a cabeça do conhecido ‘Al Garcia’, que já está morto a essa altura da trama, é uma tentativa desesperada de conseguir uma vida boa, cheia de regalias e, enfim, de paz. Mas nada disso acontece.

Sam Peckinpah tinha um carinho todo especial em filmar grandes épicos sobre fracassos e fracassados, temperando suas jornadas com muita sujeira moral, muito sangue e bizarrices narrativas, coisas que não faltam em Alfredo Garcia. O filme demora um pouquinho  para engrenar, alcançando força suficiente quando as nuances investigativas e o caráter de road movie começam a aparecer, juntamente com algumas espantosas surpresas.

A fim de problematizar a psicologia de Bennie, Peckinpah resolveu forjar no personagem duas características bem diferentes, para na parte final do filme anulá-las e gerar uma terceira característica, a mesma que levará o caçador à morte. De início o vemos apenas como um bêbado fracassado e imoral, inclusive com um tratamento machista repudiável em relação a Elita, opinião que algumas dezenas de cenas adiante somos obrigados a mudar. Surge então um outro lado de Bennie, o do bruto cujo amor desajeitado e visceral se revela trôpego mas de maneira clara, com direito a piquenique com tentativa de estupro, duas mortes, pedido de casamento e lirismo e lágrimas debaixo do chuveiro.

O trajeto para encontrar o cemitério onde está enterrado Alfredo Garcia é um caminho de purificação para o casal selvagem do filme. Eles são acompanhados por dois outros caçadores de recompensa mas não sabem disso. Entre amor mal declarado e ressentimento pela profanação tumular, vemos uma parceria improvável que, ao ser quebrada com a morte de Elita, irá trazer à tona o lado psicopata de Bennie, que além de ter uma estranhíssima relação de amizade com a cabeça de Garcia dentro de um saco rodeado de moscas, fixa uma postura de vida onde o medo é ingrediente principal e onde todos os envolvidos no caminho de sangue devem pagar alto pelo que fizeram. E isso acompanha o protagonista vivido divinamente por Warren Oates até o final do longa.

A pouca experiência de praticamente toda a equipe técnica é compensada pela direção precisa de Peckinpah. Mesmo que em um momento ou outro tenhamos vislumbres geniais da fotografia, na maior parte do longa o trabalho de Álex Phillips Jr. decepciona, especialmente quando se trata de uniformidade de iluminação de ambientes. Mesmo assim, ele consegue nos dar cenas de beleza e significado colossais, como no caso do piquenique de Bennie e Elita; ou nas cenas de apresentação dos interiores, todas com enquadramentos rigorosos de Peckinpah e editadas de maneira rigorosa, obedecendo a um tráfego quase imperceptível de distanciamento e aproximação da câmera em relação a tudo o que está no quadro: carros, casas, objetos, pessoas.

Um orçamento curto e um grupo de profissionais inexperientes poderiam fazer de Alfredo Gracia apenas um filme ‘surrealista e nojento‘ se não fosse Sam Peckinpah o diretor da obra. O poeta da violência obriga todos a lutarem por algo morto, mata todos os seus personagens principais e deixa uma trilha de dor e sangue no decorrer do enredo, filmando cada uma das mortes de maneira diferente, destacando de uma forma estranhamente bela as sequências de violência, como se após o ritual da travessia fosse necessário um final digno para quem passava desta para melhor.

A busca dos personagens por algo (ou por si mesmos) ganha ares de loucura no desfecho, e sobra para o público a crueza de uma chacina filmada quase como se fosse uma cena de amor. Nunca uma cabeça humana foi capaz de gerar tanta coisa boa em uma única obra cinematográfica quanto esta do senhor Alfredo Garcia. Que filme, senhoras e senhores! Que filme!

Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (Bring Me the Head of Alfredo Garcia) – EUA, México, 1974
Direção:
Sam Peckinpah
Roteiro: Sam Peckinpah, Frank Kowalski, Gordon T. Dawson
Elenco: Warren Oates, Isela veja, Robert Webber, Gig Young, Helmut Dantine, Emilio Fernández, Kris Kristofferson, Chano Urueta, Donnie Fritts, Jorge Russek, Chalo González, Don Levy
Duração: 112 min.

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