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Crítica | Trapaça

por Ritter Fan
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estrelas 3,5

O que é “ser alguém” dentro do chamado “Sonho Americano”? Essa é a pergunta fundamental que Trapaça faz ao longo de seus 138 minutos de projeção, com muitos figurinos exagerados do final da década de 70 e uma abundância de personagens.

Ou, pelo menos, esse é o aspecto que saltou aos olhos logo a partir de seu comecinho, com a excelente cena de Irving Rosenfeld, o mestre em trapaças vivido de forma cômica por um quase irreconhecível Christian Bale, arrumando seu cabelo – ou o que restou dele – em frente a um espelho. Em uma operação delicada e divertida (ao menos para nós), vemos o quase careca Irving, em uma suíte do famoso hotel The Plaza em Nova Iorque, arrumando seus fiapos aqui e ali e enxertando um topete que mais parece uma enorme bola de pelos recém-regurgitada por um gato gordo.

Com uma montagem esperta, que não poupa o espectador dos detalhes hilários – e até meio nojentos – David O. Russel e seus três montadores nos apresentam ao primeiro “alguém” de Trapaça. Um completo Zé Ninguém careca e barrigudo, além de dono de um duvidoso gosto por peças do vestuário, transformar-se em Irving Rosenfeld, o chamado self-made man, dono de uma cadeia de lavanderias, além de ser um enganador de marca maior que até arte falsificada vende. Ele é o resultado típico do que o Sonho Americano pode produzir. Alguém que lutou para conseguir o que tem, mesmo que essa luta tenha se dado completamente à margem da lei e aproveitando-se de gente, digamos, menos inteligente.

Mas Irving não é único em Trapaça. Longe disso, aliás. O filme de Russel, que também co-escreveu o roteiro original com Eric Warren Singer (que, antes, só escrevera um – e insipiente – longa, Trama Internacional) é um desfile de personagens essencialmente idênticos a Irving, o que já demonstra a tendência do roteiro em andar em círculos e a repetir sua temática à exaustão.

Temos Sydney Prosser (Amy Adams), uma americana do meio-oeste que finge ser uma lady britânica, com direito a sotaque e tudo mais e que faz questão de nos dizer – em uma narrativa em off incessante e repetitiva – que ela há muito deixou de ser quem ela foi e que só assim conseguiu o que ela queria. Ela é amante de Irving e sua parceira em seus negócios escusos e a grande razão de seu sucesso mais recente.

Temos também Rosalyn Rosenfeld (Jennifer Lawrence), esposa de Irving que já vive seu “sonho americano”. Ela é a companheira dedicada e mãe de família que vive exclusivamente para o marido e para o filho, isso quando o marido, claro, não está enroscado com Sydney e suas trapaças. Mas a vida de Rosalyn é sua fuga, é sua “nova identidade” também, ainda que consigamos ver muito claramente, especialmente no terço final do filme, sua personalidade mais verdadeira (difícil dizer se é completamente verdadeira).

Richie DiMaso (Bradley Cooper) é o ambicioso agente do FBI que, forçando Irving e Sydney a cooperar, começa a montar uma armadilha (mais uma trapaça, mais um golpe!) para capturar outros trapaceiros mais graúdos. Richie não sabe quando parar e, na medida em que seus planos ganham novas dimensões, logo chegando a senadores americanos e à máfia italiana (há uma ótima e ilustre ponta de um grande ator famoso por fazer mafiosos italianos), ele vai se enrolando exatamente como os falsos cachos que ele cultiva meticulosamente em casa com ridículos “mini-bobes”.

Até mesmo o prefeito de New Jersey, Carmine Polito (Jeremy Renner), vive sua crise de identidade e sua tentativa de se firmar como algo que ele não é. Com seu gigantesco – mas verdadeiro – topete lotado de brilhantina, ele tenta, a todo custo, reavivar Atlantic City. Ele já havia conseguido licença de jogos para a cidade, mas ainda não tem o dinheiro para reconstruir os cassinos e hotéis. Seu bom-mocismo vem de seu genuíno amor pela população local e sua relutância em aceitar propina. Mas seu Sonho Americano só se tornará realidade se ele se curvar à força do dinheiro, das trapaças, dos golpes (essa é a parte do filme baseada em fatos reais, ainda que, claro, fortemente modificados). É mais um que vive a vida de quem ele acha que deveria ser e não de quem ele verdadeiramente é. Mas Carmine, no final das contas, é o único personagem por quem talvez sintamos algum tipo de empatia. Ele quer mesmo fazer o bem, mesmo que para isso tenha que se vender no processo.

Todos os demais têm interesses escusos condizentes com a versão mais saliente de sua personalidade, aquela que é visível por meio dos ternos ridículos de Irving, da roupa “Os Embalos de Sábado à Noite” de Richie, dos decotes umbilicais de Sydney ou do esmalte “agridoce” de Rosalyn. É um mundo que demonstra que só os “espertos” se dão bem e que o Sonho Americano nada mais é do que a Ilusão Americana.

A crítica de Russel é bem-vinda e muito bem feita. Mas ele peca na repetição, no “flash bum bang!” da produção que faz questão de multiplicar qualquer coisa à décima potência, lembrando em muitos momentos a trilogia de Austin Powers. Se o tema central fica claro nos primeiros vinte minutos, ele não precisava repetir a questão de diversas formas diferentes e ainda por cima usando narração (ah, a muleta cinematográfica!) para deixar isso claro ao espectador, além de uma montagem não-linear que procura mostrar como Irving e Sydney se aproximaram.

As tão faladas ótimas atuações, na verdade, se perdem em meio à todo esse bombardeio sensorial que é Trapaça (o nome American Hustle ou algo como Golpe Americano é muito mais descritivo da mensagem do filme do que apenas “Trapaça”). É claro que, pelo enfoque e pelo inusitado de seu personagem, Christian Bale consegue se sobressair, especialmente porque, da última vez que o vimos no cinema, ele era um almofadinha que gostava de se fantasiar de morcego (olha aí a identidade dupla novamente!). A mudança radical em sua forma de atuar e sua transformação física são impressionantes, dignas de De Niro no já longínquo auge de sua carreira.

Outro destaque que muito pouca gente menciona é a atuação contida, mas genuinamente encantadora de Jeremy Renner, que vagarosamente vem se firmando realmente como um ótimo ator. Seu prefeito Carmine Polito é um simpático inocente que precisa se corromper para conseguir o que quer e seu rosto de relutância na primeira altercação que tem com Irving e Richie surpreende pelas nuances.

Já Amy Adams e Jennifer Lawrence são rostinhos bonitos perdidos no meio do tiroteio. Ainda que Adams tenha uma participação essencial, seu trabalho é apenas ok e chama muito mais atenção pelos abissais decotes do que pelo conjunto da obra. Lawrence não faz muito mais do que uma ponta glorificada carregada de chororôs e berreiros que não justifica toda a atenção que ela recebeu.

Trapaça – sem resistir ao trocadilho infame – engana o espectador ao se vender como algo mais complexo do que é. Ao repetir o tema à exaustão, sem dar trégua, David O. Russel entrega um trabalho inchado, de pouca carga dramática e que, apesar de ter muitos momentos interessantes e uma dupla de ótimas atuações, será muito mais lembrando em cinco ou dez anos pelos absurdos figurinos do que por qualquer outra coisa. Mas talvez o Sonho Americano seja raso e efêmero de verdade, quem sabe?

Trapaça (American Hustle, EUA – 2013)
Direção: David O. Russell
Roteiro: Eric Warren Singer, David O. Russell
Elenco: Christian Bale, Bradley Cooper, Amy Adams, Jeremy Renner, Jennifer Lawrence, Louis C.K., Jack Huston, Michael Peña, Shea Whigham, Alessandro Nivola, Elisabeth Röhm, Paul Herman
Duração: 138 min.

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