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Crítica | Tudo o Que o Céu Permite

por Luiz Santiago
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O ano era 1955 e Douglas Sirk ainda colhia os muitos louros de Sublime Obsessão, seu grande sucesso lançado no ano anterior. O público recebera calorosamente a abordagem crítica e amarga do cineasta para as relações humanas em momentos crise, especialmente em se tratando de uma incontrolável paixão. Dizia-se que o diretor conseguiu, como ninguém, mostrar o contraponto entre a necessidade de ser amado e o status ou um comportamento irrepreensível a ser mantido em sociedade.

Como é bastante comum em sucessos desse porte, o estúdio que o produziu começou a pensar em repetir a dose.

Mas isso não aconteceu imediatamente. A Universal deu a direção de dois dramas históricos para Sirk – Átila, o Rei dos Hunos (1954) e Sangue Rebelde (1955) – antes de investir bastante dinheiro em uma produção luxuosa e com praticamente a mesma equipe técnica de Sublime Obsessão. O casal protagonista formado por Jane Wyman e Rock Hudson foi o grande destaque da equipe que se repetiu, mas também houveram nomes como a atriz Agnes Moorehead, o produtor Ross Hunter, o compositor Frank Skinner e Russell Metty, o diretor de fotografia favorito de Sirk em sua fase americana.

Tudo o que o Céu Permite é uma obra-prima que mostra a fragilidade das relações sociais, especial e mais cruelmente a familiar. Sirk voltaria a trabalhar este tema em seu longa seguinte, Chamas que Não se Apagam (1956), mas já temos aqui um tom bastante amargo e duro do diretor em relação às convenções sociais que encerram o indivíduo em uma caixa onde, se não sair, será aceito e aplaudido por todos, embora esteja grandemente insatisfeito consigo mesmo.

Ao criticar a sociedade americana da época, o diretor desenvolveu dois núcleos narrativos e duas “versões” comportamentais para seus protagonistas, independente de suas inclinações morais. Essas versões para uma mesma pessoa mostram não só a mudança pela qual elas passam mas também como essas versões podem trazer à tona egoísmo, ódio, amor, compreensão e magoar ou salvar alguém em algum momento da convivência diária.

A relação de Cary Scott (maravilhoso papel de Jane Wyman, com seus olhos grandes e rosto pacífico) com os filhos é o ponto chave desta seara de mudanças. Ambos cobram da mãe uma postura diferente da que ela segue em sua viuvez. Eles não aprovam o casamento com Ron Kirby (Rock Hudson, em mais um ótimo papel), e o filho mais velho chega a colocar a tradição e a importância que a casa da família tem para ele, condenando a mãe por pensar em deixar o local.

Curiosamente o mesmo filho, meses depois, ao saber que vai para a Europa, diz que venderá a casa. Com sua saída do país e o casamento da irmã caçula, “uma casa daquele tamanho não combinaria com uma pessoa só morando nela”. O ar mesquinho da falsa moral, da conveniência e do egoísmo cheio de condenação para tudo o que não lhe favorece é destacado com cores, música e roteiro duro e objetivo.

Os filhos, tão preocupados com a opinião dos outros, demonstram não se importar em nada com a opinião da mãe. Esta, preocupada com a opinião dos vizinhos, colegas de clube e filhos, desiste de viver sua vida renunciando uma proposta de casamento vinda da única pessoa que lhe trouxe real felicidade após a morte do esposo, e tudo isso para viver aquilo o que os outros diziam ser o correto a ser feito. O roteiro de Peg Fenwick gira em torno de renúncias e aparências; de maldade e tentativa de um grupo de pessoas em controlar os outros. Sirk expõe algo triste e muito sério em sociedade: a febre de quem querer que todos pensem igual e se comportem conforme aquilo que acreditam ser o correto.

O ambiente de Tudo o que o Céu Permite traz a passagem do outono para o inverno, e há um forte simbolismo nesse ponto em relação ao amor de Cary e Ron, ponto trabalhado de forma irrepreensível na fotografia de Russell Metty. As icônicas cenas de Jane Wyman olhando através da janela enquanto um grupo de crianças passam montadas em um trenó cantando músicas de Natal e o momento em que ela recebe uma televisão de presente dos filhos e se vê refletida na tela bastariam para inscrever o nome do fotógrafo e de Douglas Sirk na lista dos grandes criadores de espetáculos sentimentais. Aliadas à perfeitamente localizada trilha sonora de Frank Skinner, essas cenas personificam o sentimento de abandono e isolamento pessoal da protagonista e ressaltam com grande (e triste) beleza o assunto central do texto: vale a pena fingir e a agradar o mundo enquanto se morre por dentro?

Nunca antes um melodrama foi batizado com tantas cores, com belíssimo tema musical ao piano (lembrando um noturno de Chopin), um tema central tão crítico e dirigido com tanto rigor. Entre espelhos, escadas, figurinos em contraste e aparente convencionalismo (há quem não capte a ironia, metáfora ou crítica social disfarçada e veja esta obra de Sirk como um novelão clichê), Tudo o que o Céu Permite é um grandioso espetáculo cinematográfico, uma obra que, com extrema elegância, denuncia e condena o padrão de vida pré-fixado que a maioria das sociedades impõem aos seus membros e que muitas pessoas, com medo de sofrer as penas de sua “indecência”, aceitam adotar em detrimento de suas verdades e desejos interiores.

Tudo o Que o Céu Permite (All That Heaven Allows) – EUA, 1955
Direção: Douglas Sirk
Roteiro: Peg Fenwick (baseado na obra de Edna L. Lee e Harry Lee)
Elenco: Jane Wyman, Rock Hudson, Agnes Moorehead, Conrad Nagel, Virginia Grey, Gloria Talbott, William Reynolds, Charles Drake, Hayden Rorke, Jacqueline deWit, Leigh Snowden, Donald Curtis
Duração: 89 min.

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