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Crítica | Tudo Pode Dar Certo

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

Quando escrevi sobre Vicky Cristina Barcelona (2008), salientei o fato de Woody Allen ser um cineasta observador e cínico ao seu tempo. Em retrospecto, a maioria de seus filmes trazem uma observação nessa linha — misturada com tragédia e romance — da sociedade. Em suas obras, é possível encontrar, intrínsecas às neuroses e aos comportamentos excêntricos dos personagens, a influência do mundo externo em diversas áreas. A cada uma de suas fases (é válido lembrar que Woody Allen dirige filmes desde 1969), um molde é destacado e as obras daquele período se encaixam nele.

Para que possamos entender essa fase “século XXI” do cineasta, é preciso voltamos alguns filmes no tempo. Estacionemos em 1999, ano do lançamento de Poucas e Boas, a película que inauguraria um período pejorativamente denominado de “fase Woody Light” e que contaria com as seguintes obras: Trapaceiros (2000), O Escorpião de Jade (2001), Dirigindo no Escuro (2002) e Igual a Tudo na Vida (2003). Os filmes da fase “Woody Light” são (à exceção, talvez, de Poucas e Boas), os filmes mais “leves e um pouco insossos” de toda a carreira do diretor. O que não significa que não são inteligentes ou que não possuam incursões críticas, vide a forma como ele coloca a “nova burguesia” em Trapaceiros; o cinema dos anos 1940 com toques noir em O Escorpião de Jade; a metalinguagem e a indústria cinematográfica em Dirigindo no Escuro; a vida com fortes doses existencialistas, pessimistas e estoicas em Igual a Tudo na Vida, obras que provam que o padrão crítico ainda estava lá, só que vestindo luvas de pelica.

É nesta fase, entretanto, que se forma o embrião para a fase seguinte, quando o humor de Woody Allen funde-se com sua experiência da “fase Bergman” e adquire linha e toques pessoais, estruturando-se sobre uma narrativa ácida, agressiva (moral, filosófica, ética) e trágica, ao mesmo tempo. O primeiro resultado desse “humor-com-dor” foi o filme Melinda e Melinda (2004), história dupla narrada de forma cômica e trágica. Foi, porém, em 2005, com Match Point, que Woody Allen girou de vez a roda da fortuna. Em 2006, veio Scoop – O Grande Furo, com o diretor voltando a atuar e brincando com a perspectiva da morte.

Em 2007, O Sonho de Cassandra, terceiro filme consecutivo do diretor em Londres que selou a tendência das novas abordagens: o ataque à família hipócrita, às instituições sociais mascaradas e a investigação dos processos (i)morais e (anti)éticos que permeiam a sociedade. Em 2008, com Vicky Cristina Barcelona, o cineasta põe para brigar artisticamente o Velho e o Novo Mundo, além de ironizar determinados arranjos amorosos contemporâneos. Em 2009, depois de quatro filmes na Europa, Allen retornou a Nova York para filmar Tudo Pode dar Certo, obra que carrega forte influência de sua experiência no Velho Continente e que transporta para sua cidade e seu país todo o ataque e acidez característicos da sua tetralogia recém encerrada.

Tudo Pode dar Certo é um dos picos do pessimismo woodyano. O filme conta a história de Boris Yellnikoff, incrivelmente interpretado por Larry David, um hipocondríaco gênio da Física e indicado ao Prêmio Nobel, que conhece Melodie (Evan Rachel Wood, em ótima atuação sob a direção de Allen), jovem de 21 anos, do interior do país e com conhecimento limitadíssimo que passa a ser “ensinada, educada, civilizada” por Boris. Com um roteiro vintage (o filme teria Zero Mostel no papel principal, mas foi engavetado depois da morte do ator, em 1977), Woody Allen retoma a história de Pigmalião, desta feita, revitalizada com especificidades do século XXI e com citações da história recente dos Estados Unidos e do mundo, como “a eleição de um presidente negro” ou o Talibã. Aliás, citações históricas não faltam neste filme. Há também referências aos gregos antigos, aos egípcios, aos maias e aos astecas.

Além da narrativa mais “solta”, porém não menos pessimista que as da tetralogia europeia, Tudo Pode dar Certo traz já nas sequências iniciais a metalinguagem explícita, forma que o diretor não usava em tal magnitude desde A Rosa Púrpura do Cairo (1985) — entendam que a metalinguagem de Desconstruindo Harry ou de Dirigindo no Escuro são de outro caráter. Boris é o único personagem do filme que sabe da existência de uma plateia do outro lado da tela e tenta mostrar isso, sem sucesso, aos seus amigos. Há momentos em que ele se dirige aos espectadores para discutir elementos da trama e, com isso, já vemos uma mudança na atitude formal do roteiro.

Allen já usou muito a figura do narrador, o que sempre deu um tom de crônica às suas películas. Em Tudo Pode dar Certo, esta voz não é off nem é totalmente sugerida pela montagem, pela trilha sonora ou pela história auto-narrativa. O próprio Boris dá a linha de andamento. Ele é agente e observador dos atos do filme, o que faz de Tudo Pode dar Certo uma obra de grande proximidade com o espectador. Além dessa “onipresença” que atrai com cumplicidade a plateia, o filme tem uma das melhores execuções de timing de Woody Allen, e a mise-en-scéne é tão comunicativa e tão forte, que o final não poderia ser outro: todos os personagens do filme em uma sala, comemorando a passagem do ano. As quebras narrativas (cinco, ao todo), marcam fortemente cada bloco. Allen não permite que a história ultrapasse o limite da desaceleração. Quando a sequência esgota sua força, uma quebra de estrutura do roteiro acontece.

Se o ataque neste filme é às instituições, em especial à família “certinha e engessada”, o motor da obra é a particularidade de cada integrante desta roda burocrática e sua mudança quando em contato com uma realidade que lhe mostra “a luz”: Marietta, com seus sonhos artísticos frustrados durante tantos anos, termina como fotógrafa de corpos nus e vivendo em um amoroso ménage-à-trois. Melodie termina alcançando um alto nível intelectual e maturidade. O próprio Boris, que, mesmo não perdendo o pessimismo típico de sua personalidade, termina com um excelente monólogo otimista na cena final. O pai de Melodie, membro da Associação de Rifles, termina companheiro de alguém que ele disse ser “praticante da crença homossexual“.

Como se sabe, depois da escrita do roteiro, nada mais é tão pessoal nos filmes de Woody Allen quanto a trilha sonora. Neste filme, particularmente, ele escolheu e usou de forma muito ampla a música: jazz dos anos 1920 e 1940 (o típico mundo musical de seus filmes); a 9ª e a 5ª Sinfonias de Beethoven, rock, pop, bossa-nova e trechos de um musical de Fred Astaire.

Além desse amplo universo musical, a direção de arte e as locações merecem um olhar mais atento. Pode-se observar que o interior da casa de Boris é relativamente desprovido de coisas, enquanto o subúrbio onde mora (que compreende um bairro chinês) é abarrotado de placas, cores, barracas, objetos. Nesse caso, a fotografia de Harris Savides acompanhou a descaracterização dos interiores, sempre fotografados em tons fracos, escuros, com predomínio de cores frias e ironicamente pontuado por luzes externas de cores contrastantes — vide a cena em que Boris chega da casa dos amigos e há uma luz verde e amarela reluzente através da janela. Ele se move para a direita e a câmera o acompanha em plano-médio, então, na segunda janela, brilha uma fortíssima luz vermelha. A mesma coisa se repete na cena final: do contraste das muitas luzes da Quinta Avenida em pleno ano-novo, para uma sala de estar quase completamente marrom, embora elementos de outras cores (as luminárias chinesas) adornem o aposento. Não é forçoso identificarmos um contraste entre interior e exterior do homem através das internas e externas na obra.

Tudo Pode dar Certo é uma comédia pessimista aparentemente simples. Seu conteúdo crítico é praticamente um universo à parte. Woody Allen identifica nas neuroses e questões pessoais relacionadas ao mundo as causas do mau funcionamento da família, o que gera insatisfações, maus pais, maus casamentos, falsos fiéis, filhos desorientados, gente mais neurótica do que deveria ser. No final, a descrença na humanidade é patente. Pseudo-feliz, o desfecho do filme acende a chama das boas possibilidades mas retira toda a esperança de durabilidade desses momentos. Mesmo paradoxal, a mensagem é clara e agridoce: embora nunca seja para sempre, a felicidade deve ser aproveitada, sentida e compartilhada enquanto durar. Tudo pode dar certo. Mas não permanecerá assim para sempre.

Tudo Pode dar Certo (Whatever Works) – EUA / França, 2009
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Larry David, Adam Brooks, Lyle Kanouse, Michael McKean, Clifford Lee Dickson, Yolonda Ross, Carolyn McCormick, Samantha Bee, Conleth Hill, Marcia DeBonis, Evan Rachel Wood, John Gallagher Jr., Willa Cuthrell-Tuttleman, Nicole Patrick, Patricia Clarkson
Duração: 92 min.

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