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Crítica | Um Conto Chinês

por Luiz Santiago
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estrelas 4

Investigar o sentido da vida foi e continua sendo a linha central de inúmeros filmes. Dentre os episódios mais interessantes nesse âmbito, podemos destacar o projeto do grupo Monty Python, O Sentido da Vida (1983), que além da reflexão sobre a existência humana, ironiza, satiriza e aborda com cáustico humor uma série de situações triviais, de onde parte a reflexão sobre o que é a existência humana. É evidente que esse lado do pensamento não é muito comum, já que a maior parte das comédias não possuem tal foco narrativo ou estrutural, exceto quando se trata de comédias muito particulares, como as de Ingmar Bergman (Uma Lição de Amor), ou Woody Allen (Meia Noite em Paris).

A simplicidade das coisas e o potente eco do Carpe Diem ficam muito evidentes em comédias de natureza humanista, pitoresca, simpática, e por que não dizer, clichê. Quando o humor entra em pauta, a reflexão se torna mais palatável e mais leve, embora trate de problemas sérios, como é o caso de Um Conto Chinês (2011), deliciosa comédia argentina escrita e dirigida por Sebastián Borensztein. A película conta a história de Roberto, um veterano da Guerra das Malvinas que acaba dando abrigo a um chinês perdido que não fala uma palavra em espanhol. Uma vaca que caiu do céu no outro lado do mundo, mudará a vida de um argentino metódico e reclamão, e além disso, temos no filme uma ótima exposição do que é o contato entre culturas diferentes. Após o estrondoso sucesso nas bilheterias de seu país, Um Conto Chinês conquista público e crítica aqui no Brasil.

Se as inconstâncias fotográficas (o único ponto fraco do filme) incomodam um pouco, temos outros elementos muito bem arquitetados, o que acaba valendo, e muito, o ingresso. O roteiro e a direção de Borensztein são pontuais, optam por uma linguagem urbana desprovida de formalismo, captam uma personagem específica sem se importar em dar uma visão universal do seu mundo, nada de profundidade exacerbada, o objetivo do filme é trazer para o clichê da vida um pouco de exagero; e nisso acerta muitíssimo, pois escapa à armadilha de não conseguir fechar todas as janelas. No recorte feito, o trabalho consiste em explorar ao máximo a personagem, de sua vida regrada até a mudança surgida com a chegada de Jun, o chinês.

Ricardo Darín brilha na pele do protagonista, construindo com precisão e naturalismo o frio e rabugento Roberto, personagem muito parecida com a de Larry David de Tudo Pode dar Certo. Vale-se dizer que o ator leva para as telas a persona mais natural possível, mais parecido consigo mesmo, característica que às vezes pode se mostrar repetitiva, mas que funciona muito bem em personagens tão diferentes por ele interpretados como em XXY (2007), O Segredo dos Seus Olhos (2009) ou Abutres (2010). Ignacio Huang é o ótimo contraste no papel de Jun. Sua (in) expressão na maior parte do tempo, que muito me lembrou o rosto impassível de Buster Keaton, é um ponto de equilíbrio para o filme e sua linha cômica, principalmente na parte final. A cena em que ele imita uma galinha botando ovo é um dos momentos impagáveis, mesmo sendo muito curto. Muriel Santa Ana, uma quase novata no cinema, interpreta com muita competência o papel de Mari. Destacamos as nuances que ela traz a cada momento do filme, ajudando a dar maior brilho às cenas em que aparece.

A solidariedade e o sentido da vida em conflito com a privacidade são os pontos centrais do filme. O diretor elenca cada um dos motivos propostos compassadamente, e o filme explica-se sem ser didático ou uma afronta à inteligência, como é de praxe na maioria das comédias atuais. Em dado momento, o enredo volta-se para o passado, e a reconstituição em um morto tom cinza de uma lembrança de Roberto é a melhor criação fotográfica da obra. Já a música de Lucio Godoy mistura pequenas composições orquestrais com temas chineses – inclusive um recorrente tema cômico-misterioso, surgido sempre em takes de muita importância –. As cenas que ilustram a narração em voz over das notícias de jornal nos lembra bastante o humor violento de Álex de la Iglesia em Crimen Ferpecto.

Uma comédia leve e densa ao mesmo tempo, Um Conto Chinês se impõe com bastante inventividade. Não é uma obra-prima do cinema argentino, mas é sem dúvida, um filme divertidíssimo. Com um roteiro simples e irônico, o diretor consegue estender uma linha cômica do início ao fim, e ainda dá espaço para cenas de reflexão, emoção, tristeza e esperança. Ao término, somos levados a perguntar sobre o motivo das coisas, o acaso, a amizade… Uma das verdades ali ditas é que a vida nos reserva surpresas tão imprevisíveis, que às vezes parece ridícula, mas de um modo ou de outro, está aí para ser apreciada e vivida. Um Conto Chinês flerta com a fina comédia e com o clichê pitoresco, traz a sabedoria popular e filosófica, e retrata de certo modo a sociedade de nosso tempo. Desse mundo excêntrico surge algo a que se apegar, por isso o filme alcança seu objetivo e se conclui muito bem. Não há, portanto, motivos para não vê-lo.

Um Conto Chinês (Un cuento chino) — Argentina, Espanha, 2011
Direção: Sebastián Borensztein
Roteiro: Sebastián Borensztein
Elenco: Ricardo Darín, Muriel Santa Ana, Ignacio Huang, Enric Cambray, Iván Romanelli, Joaquín Bouzas, Julia Castelló Agulló, Gustavo Comini, Vivian El Jaber, Javier Pinto
Duração: 93 min.

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