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Crítica | Um Conto da Mulher-Maravilha: Amazônia

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

Ambientada na Terra-34, basicamente em dois lugares (Londres, Reino Unido e Amazônia, Ilha Kera — ou Ilha Paraíso), esta graphic novel de William Messner-Loebs e Phil Winslade coloca a Mulher-Maravilha em um cenário muitíssimo mais sexista e misógino do que a real Inglaterra da Era Vitoriana, utilizando de opressivas realidades históricas para criar uma Terra onde todas as mulheres precisavam andar com correntes nas mãos e onde assassinatos eram cometidos por puro prazer e sadismo, feitos não só para que as mulheres sofressem ainda mais, mas para que elas pudessem dar algumas partes de seu corpo como alimento para os “gentis senhores” desta Bretanha infame.

Alguns leitores apontam para o fato de que o roteiro de Loebs, mesmo que critique o tratamento mortal dado às mulheres na Inglaterra da Terra-34, acaba caindo na própria armadilha, cometendo ele mesmo um mal tratamento das personagens, apenas para destacar esta ou aquela característica de um país onde o adorado líder, Rei Jack Planters (mais conhecido como Jack, o Estripador) realiza caçadas urbanas às mulheres — ato inicialmente escondido e depois mais escancarado — e que encontra na Amazônia, o paraíso das “aberrações femininas que não precisavam de homens para nada“, o lugar perfeito para a execução de algo similar ao Pão e Circo, embora não houvesse a necessidade social do pão, porque todos ali eram parte da elite britânica, com mulheres acorrentadas em uma arena do tipo Coliseu e homens drogados, tendo uma única vontade de momento: matar mulheres da forma mais violenta possível.

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A Amazona Diana Trevor se apresentando em um teatro de variedades, com o nome de Lady Samson, assistida pelo Rei Jack, o Estripador.

É preciso tomar cuidado ao analisar um tema como se ele fosse “a culpa em si” e não um canal pelo qual o autor está mostrando um mundo propositalmente exagerado para destacar atrocidades às vezes disfarçadas ou ignoradas em nossa própria sociedade. Contra o roteiro deste elseworld, podemos dizer que há abuso de narração — é melhor mostrar do que falar sobre, mas o autor tende a ignorar essa ideia — e que o ponto de vista e maior “fala” no volume é de um homem tetraplégico. Verdade que seria mais interessante se tivéssemos uma mulher, ou um grupo de mulheres, que guiassem o leitor por esta realidade, ou ao menos dividisse espaço com o ponto de vista masculino, o que não acontece. Mas vejam, esses são impasses menores na constituição da trama e não indicam nenhuma postura condenável do autor, tal qual às que ele critica em sua história.

Outro ponto que normalmente gera discussões é o final, com Diana e o príncipe Charles (considerando que esta história foi lançada em 1998, ficam óbvias as referências à recente morte de Diana, Princesa de Gales e um olhar em outra realidade para o seu casamento com o Príncipe Charles, se tudo tivesse corrido bem e se eles se gostassem de verdade). Há um certo conformismo no enlace matrimonial dos dois, colocado como um final feliz clichê e um pouco destoante do tom geral do roteiro, que até então mostrava a quebra das amarras femininas nesta sociedade mais o fim do julgo falocrata que dominou a nação desde a coroação de Jack, o Estripador.

Todavia, o casamento não tem um princípio forçoso, ele é apenas estranho vindo após as lutas e conquistas expostas na obra. Não se trata de algo que a personagem de Diana odeia ou rejeita. Não podemos nos esquecer de que ela vivia uma vida absurdamente tenebrosa ao lado do misógino Stephen Trevor, apenas para conseguir sustentar as duas filhas, então o casamento não é algo que não poderia ser considerado pela personagem aqui. Ele só parece um elefante branco porque vem rápido demais e não há qualquer preparação textual para sua existência, sem contar que ele nubla uma sequência de luta por dignidade e igualdade, esta sim a temática que deveria ter sido colocada em destaque no final.

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Os britânicos invadem Amazônia, Ilha Kera; a Themyscira da Terra-34.

Muitos elementos das histórias clássicas da Mulher-Maravilha podem ser vistos aqui. Há uma mescla de origens da personagens na versão de Charles Moulton e relações, pensamentos e resoluções dramáticas que lembram bastante os arcos Deuses e Mortais, Desafio dos Deuses e O Chamado do Destino, tudo isso com características visuais ligadas à Era Vitoriana e ao gênero Cyberpunk. O artista Phil Winslade transformou Diana em uma “Gibson Girl” e se inspirou muito na Art Nouveau de Alfons Maria Mucha para criar este Universo. A arte-final é escura, marcada por hachuras e outros “ruídos de imagem” que destacam a podridão moral, social e geográfica dos lugares visitados. Quando esta não é a intenção (o caso das cenas na Amazônia — que não tem nenhuma relação com a nossa floresta, é apenas a terra natal das Amazonas nesta realidade), a imagem é parcialmente limpa, mas perde impacto nas cores, talvez para destacar a constante ameaça contra a Terra das Mulheres e a falta de esperança para elas.

Amazônia é um conto tocante, violento e cheio de ideias polêmicas (ou quase isso) para serem discutidas. Em comparação a um elseworld de quase duas décadas depois, A Verdadeira Amazona, ele parece mais preocupado em abalar as estruturas sociais que erguem o massacre feminino do que se importar com as personagens, mas esta é apenas uma das muitas formas de se olhar determinada situação de opressão, afinal, histórias assim sempre seguirão um lado de abordagem, seja o pessoal, o social, ou ideológico. Uma coisa é certa: será bem difícil não fazer uma leitura com torcida para que Diana descubra logo o que ela pode fazer com seus poderes e que traga fúria aos “homens de bem” que estão matando mulheres para comerem um bom fígado e terem um tipo de gozo na demonstração do poder masculino sobre àquelas que, como é dito pelo rei Jack, só tem uma missão na vida, gerar herdeiros e morrer.

Um Conto da Mulher-Maravilha: Amazônia (A Tale of the Wonder Woman – Amazonia) — EUA, 1998
Roteiro: William Messner-Loebs
Arte: Phil Winslade
Cores: Patricia Mulvihill, Digital Chameleon
Letras: John Workman
Capa: Phil Winslade
Editoria: Paul Kupperberg

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