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Crítica | Um Rosto na Multidão

Um filme de horror.

por Ritter Fan
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Um Rosto na Multidão é um filme aterrorizante. E não, não se trata de um filme de horror propriamente dito. Longe disso, na verdade. Mas o efeito que ele exerce é justamente o que as melhores obras do gênero exercem sobre os espectadores: aversão e medo.

Mas essa aversão e medo vêm não só da temática, mas, principalmente, do quão ela é atual, perfeitamente aplicável hoje quanto ela era há quase seis décadas. Na verdade, esqueça isso. A temática abordada por essa fita de Elia Kazan e primeiro filme protagonizado por Andy Griffith é bem mais atual hoje do que foi em sua época, quando foi mal recebido pela crítica. Kazan mostra, de uma vez por todas, o quanto ele era a frente de seu tempo, quase que literalmente sensitivo ou perfeitamente em sincronia com os acontecimentos a seu redor. Alias, como um aparte, é interessante e principalmente irônico como Griffith, antes da fama trazida pelo The Andy Griffith Show, chegou aonde chegou justamente em virtude de Um Rosto da Multidão, algo que, por si só, já mereceria uma análise em separado.

Trabalhando um roteiro de Budd Shulberg, baseado em conto homônimo dele próprio, Kazan nos apresenta ao vagabundo carismático Larry ‘Lonesome’ Rhodes (Griffith), descoberto literalmente na prisão por Marcia (Patricia Neal), repórter de uma pequena rádio de uma cidadezinha no Arkansas. De um completo “zé ninguém”, ele é catapultado ao estrelato nacional graças a seu sorriso contagiante, conversa filosófica e atitude expansiva. Em típica estrutura de “ascensão e queda”, vemos Lonesome Rhodes subir na consciência coletiva atropelando a tudo e a todos, ganhando patrocinadores, costurando poderosas ligações políticas somente para cair vertiginosamente como Ícaro, apesar dos avisos de seu pai Dédalo.

Marcia, que inevitavelmente se envolve romanticamente com o simpático – mas sinistro – charlatão, não enxerga um palmo a sua frente. O papel de Grilo Falante fica com Mel Miller (Walter Matthau, em seu quinto longa metragem) o discreto redator que não tem dúvidas sobre a verdadeira personalidade de Lonesome e que é, também, platonicamente apaixonado por Marcia.

O roteiro de Schulberg não tem pressa em estabelecer a ascensão de Lonesome. Nós o vemos a cada passo de sua bombástica carreira, que Kazan trabalha de maneira quase documental, até porque o personagem e sua trajetória foram baseados na vida de Arthur Godfrey, estrela da televisão das décadas de 40 e 50 que exerceu enorme influência nos EUA em sua época. Com isso, a narrativa da primeira metade da fita é engajante e meteórica como a vida de Lonesome.

A partir do momento em que ele se envolve romanticamente com uma jovem líder de torcida e se casa com ela, seu destino está traçado: nós sabemos o que vai acontecer e Kazan não esconde isso de ninguém. Ao contrário, até, pois ele carrega nas cores e começa a mostrar com clareza a personalidade distorcida de Lonesome. Se, antes, havia alguma esperança para o personagem (e nunca houve), Kazan arranca-a completamente ao aproximar sua câmera de Griffith em atuação memorável em termos de histrionismo, exageros e “mastigação de cenário”.

O espetáculo midiático-circense que se estabelece ao redor de Lonesome é o alvo de Schulberg e de Kazan. Os dois não deixam pedra sobre pedra e demonstram o poder de influência e corrupção da televisão em uma época em que ela ainda estava, para todos os efeitos, em sua infância. Agora imaginem vocês, caros leitores, o quanto isso é ainda mais atual em uma época como a moderna, em que somos cercados em profusão por televisões e computadores, redes sociais e smartphones que multiplicam exponencialmente esse efeito. Vivemos uma época em que diversas versões de Lonesome Rhodes surgem aos borbotões a cada 15 dias. Somos influenciados, cobiçados, manobrados e desvirtuados pelo incessante bombardeio de publicidade, “celebridades” efêmeras, programas tendenciosos que nos tornam insensíveis para o mundo verdadeiro ao nosso redor. Lonesome Rhodes é um símbolo inafastável da decadência midiática que vivemos e Marcia é o símbolo da ignorância que desperta em meio ao alagamento, quando recolher os últimos resquícios do que realmente somos já é impossível, mesmo que a nosso lado sempre tenhamos tido um Mel desnudando a verdade nua e crua que nunca quisemos aceitar.

Lonesome Rhodes, porém, é, por si só, um símbolo inocente da corrupção pelo poder. Sim, ele pode ser encarado como um vilão e sim, Griffith, sob as lentes inclementes de Kazan e seus close-ups arrasadores, controladores, é uma caricatura de muitos seres que conhecemos por aí. Mas Lonesome Rhodes também é uma vítima. Vítima da máquina que nos engole, nos mói e nos cospe fora quando perdemos a utilidade. Só que são várias as máquinas: a máquina publicitária que nos faz querer o que precisamos e consumir aquilo que não nos faz bem; a máquina política que vende seus candidatos como produtos e que transformam as pessoas em marionetes de um jogo incessante de poder; a máquina televisiva que só interessa empurrar aquilo que a “massa ignorante” (como Lonesome mesmo coloca) quer consumir, sem se preocupar em elevar o nível do debate, sem nos educar. É como a máquina Moloch em Metrópolis, de Fritz Lang, consumindo-nos, transformando-nos em meros autômatos sem cérebro.

E Kazan, sabendo do rico material que tinha em mãos e produzindo uma obra que jamais seria produzida hoje, investe em nos manter presos à sua mensagem. É bem verdade que ele perpetua e repete a temática, mas ele o faz para o nosso bem. Mesmo a fotografia em preto e branco de Gayne Rescher e Harry Stradling Sr. tem apenas esse único propósito: deixar evidente a manipulação. Por isso, a obra tem, em seu começo, muita luz, uma tendência ao branco não só na fotografia como em toda a cenografia e figurino. As filmagens são de dia ou muito iluminadas. Com o passar do tempo e notadamente na meia hora final, os diretores de fotografia vão escurecendo seu trabalho, chegando até mesmo a trabalhar o chiaroscuro de maneira semelhante a filmes noir como na sequência no bar, em que vemos Marcia bebendo sozinha, com Mel chegando logo depois.

E a montagem funciona da mesma forma. Gene Milford costura a narrativa com a cadência do bater do tambor das galés romanas em passado remoto. Primeiro em velocidade de cruzeiro, depois em velocidade de ataque, terminando com a velocidade de aríete, mas jamais confundindo o espectador. Além disso, apesar de o roteiro ser econômico com a indicação da passagem do tempo, a montagem substitui essa falta, permitindo-nos aceitar a subida a jato do protagonista como um prelúdio para sua proverbial e inevitável queda.

No entanto, Kazan não consegue fugir de clichês, como a cobertura no último andar de um altíssimo prédio que é presenteada a Lonesome e, quase completamente sem inspiração, a utilização da descida do elevador entrecortada com o público se revoltando contra o queridinho da nação é didática demais, simplista demais, especialmente considerando que essa situação já havia ficado clara não muitos minutos antes e que sua inevitabilidade já havia sido estabelecida desde o começo da projeção.

Mas vejo esse didatismo até como necessário. Certamente é um problema narrativo, mas um problema que interpreto como proposital, como objetivando a mais perfeita compreensão do ocorrido pelo maior público possível. É Kazan tentando fazer com que sua cáustica mensagem ultrapasse o confinamento de seu meio para literalmente abrir um buraco na mente de todos nós. É um serviço de despertador. Uma verdadeira necessidade que deveria fazer parte do currículo obrigatório de escolas e faculdades irrestritamente.

Um Rosto na Multidão é o mais aterrorizante filme que você verá. O trauma de assisti-lo será profundo e inesquecível. E essa foi justamente a intenção de Elia Kazan.

Um Rosto na Multidão (A Face in the Crowd, EUA – 1957)
Direção: Elia Kazan
Roteiro: Budd Schulberg
Elenco: Andy Griffith, Patricia Neal, Anthony Franciosa, Walter Matthau, Lee Remick, Percy Waram, Paul McGrath, Rod Brasfield, Marshall Neilan, Alexander Kirkland, Charles Irving, Howard Smith, Kay Medford, Big Jeff Bess
Duração: 126 min.

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