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Crítica | Uma Noite de Crime: Anarquia

por Luiz Santiago
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Parece até piada de mal gosto um crítico reclamar do uso de ideias políticas ou contextos sociais “em demasia” num determinado filme, mas isso é justamente o que eu vou fazer aqui. Por que Uma Noite de Crime: Anarquia (2014) é isso, o exagero mal organizado de um conteúdo social/ideológico/político que traja sangue em um cenário que naturalmente tinha potencial para aludir a “discussões-cabeça” sem precisar de mais apelações. E como se isso não bastasse, ainda temos o fatigável tom conciliador do final, que nos deixa em um ponto menos interessante e claramente inferior ao que o diretor James DeMonaco nos deixara na primeira parte do expurgo vista em Uma Noite de Crime (2013).

Convenhamos: a maioria de nós gostamos de ver violência retratada ou problematizada em alguma arte (cinema, games, literatura, quadrinhos…). Todos nós temos uma besta interna que sorri quando vê sofrer algo ou alguém de quem não gostamos ou que achamos que devesse passar por aquilo (quem nunca se maravilhou com o Superman tomando porrada do Batman neste clássico aqui?). Não é preciso ser um guru da psicologia para chegar a esse tipo de conclusão, certo? Pois bem, é justamente por conta dessa predisposição humana a achar interessante o uso da força em momentos extremos da arte — especialmente se houver vingança, segundos interesses e conceitos ideológicos em jogo — que eu penso a ideia de Uma Noite de Crime como um projeto muito rentável e culturalmente interessante para o cinema. A ideia não é original, mas a proposta é válida. Há coisa boa a se tirar daí.

No primeiro filme, De Monaco tropeçou mas, a despeito de tudo, conseguiu vender bem seu peixe: um filme-pipoca ambientado em um futuro próximo e distópico onde a estrutura é a liberação de violência extrema para qualquer cidadão durante 12h em um dia do ano, tudo isso em troco de quase 0% de violência, crescimento econômico da nação e mínima taxa de desemprego. O conceito é interessante e a realização seguiu pelo menos caminho. Mas então aconteceu de o diretor querer intricar o contexto distópico inerente ao mundo que ele mesmo criou. E aí as coisas saíram dos trilhos.

Em Anarquia, o foco da obra é transferido para a periferia, diferente do cenário de Uma Noite de Crime. O roteiro tenta “dar sequência” à história aberta anteriormente, só que por um outro foco. E a pergunta é legítima: sem nenhum ou com pouco dinheiro, como as pessoas pobres e os miseráveis conseguem sobreviver e lutar na noite do expurgo? Não é curioso que em uma sociedade que dá licença para matar a troco de melhores condições de vida para todo mundo deixe claramente aberta a sua eterna ferida da exclusão social?

Baseado nisso, DeMonaco entrega um texto que adiciona um sabor interessante ao evento: a luta ou os questionamentos sociais. Mas isso não aparece no filme como uma linha orgânica. Ela é forçada goela abaixo do espectador através de um discurso de libertação social/ideológica de UM TIPO de esquerda e se arrasta por todo o longa. No final, essa ponta é amarrada de uma forma estranha, com a revelação da intervenção do governo na noite do expurgo (os civis não estava matando mais!), mas devo admitir que tudo o que não parece orgânico na construção para o grupo de Carmelo Johns funciona completamente na intervenção do Estado. E por quê? Simples: porque o projeto do expurgo é estatal. A intervenção de um tipo de Exército, mesmo que extraoficial, é plenamente aceitável.

Como não temos aqui o fator da claustrofobia em foco, foi preciso que o diretor criasse uma boa atmosfera de tensão para cada núcleo de personagens, que acabam se encontrando em dado momento do filme. Uma mistura de azar com manjadas coincidências formam esse aparato narrativo que recebe uma boa montagem paralela no início, mesmo que demore um pouco para mostrar seu padrão. DeMonaco alterna takes de amplos espaços urbanos e eficientes espaços domiciliares, com destaque absoluto para a breve cena na casa onde o pai de Eva é utilizado como mártir e, claro, a sequência em que DeMonaco emula O Discreto Charme da Burguesia, colocando o lote de pessoas no palco para serem brevemente leiloados. Aliás, toda a sequência nesse “paintball mortal dos ricos” merece destaque.

Uma Noite de Crime: Anarquia abusa de sua própria mitologia e põe em cena um destaque político que tornou o filme forçado e um pouco chateante. É claro que existem boas sequências e a direção de DeMonaco não é imprestável, mas o roteiro não segue uma linha coerente (o final quase romântico é um tiro no pé) e alguns setores técnicos como fotografia, trilha sonora (composições e uso) e edição/mixagem de som não cumprem muito bem seu papel. O filme é abaixo da média, mas na soma de tudo acaba divertindo e não nos dá a impressão de termos perdido totalmente o dinheiro do ingresso.

Uma Noite de Crime 2: Anarquia (The Purge: Anarchy) – EUA, França, 2014
Direção: James DeMonaco
Roteiro: James DeMonaco
Elenco: Frank Grillo, Carmen Ejogo, Zach Gilford, Kiele Sanchez, Zoë Soul, Justina Machado, John Beasley, Jack Conley, Noel Gugliemi, Castulo Guerra, Michael Kenneth Williams, Edwin Hodge
Duração: 103 min.

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