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Crítica | Una

por Guilherme Coral
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estrelas 5,0

Una é um daqueles filmes que nos pegam de surpresa, que se esgueiram pelos lançamentos da semana de forma descompromissada, se configurando, imediatamente, como uma obra de grande força, trazendo um necessário, maduro e chocante olhar sobre uma temática extremamente controversa. Baseado na peça Blackbird de David Harrower, que assina o roteiro do longa-metragem, temos aqui um olhar perturbador sobre a pedofilia, que dispensa as costumeiras vilanizações às quais estamos acostumados.

É muito comum considerarmos como monstros pessoas que cometem certos tipos de crime, mas ao definir alguém através de um substantivo garantimos a eles uma certa imutabilidade, uma incapacidade de redenção que vai de encontro com a base de nosso sistema judiciário, nos jogando de volta à Lei de Talião, transformando as sentenças em apenas uma medida punitiva e não corretiva. Una é perturbador justamente por lidar de forma certa naquilo que tão facilmente nos sentimos compelidos a regredir a nossos estados mais primais como civilização.

Os primeiros minutos de projeção já nos entregam o peso de sua narrativa. Vemos uma menina de treze anos à frente de sua casa. Silenciosa ela caminha para uma cabana onde vê algo e um corte brusco nos leva para o claustrofóbico cenário de uma boate, com música eletrônica a todo o volume e luzes piscantes que apagam a individualidade daqueles ali presentes. Vemos, ali, Una (Rooney Mara), já crescida, que poucos instantes depois se encontra fazendo sexo com um estranho. Sentimos desde já que há algo de errado com ela, em sua expressão fisgamos o vazio típico de alguém preso em outro tempo ou situação – sabemos que a garota que vimos é ela e aquele é seu flashback.

A trama se desenrola e nos revela que a protagonista vivera, há tantos anos, uma relação pedófila com Ray (Ben Mendelsohn) que já estava em seus trinta anos durante o ocorrido. Anos, porém, se passaram e a então garota, agora mulher crescida, vai de encontro à sua antiga e problemática paixão. Na fábrica onde ele trabalha eles se encontram, iniciando uma jornada de reminiscências na qual verdades são reveladas e dores são trazidas à tona, sensação essa que é estampada no rosto de Ray, que empalidece ao ver Una mais uma vez.

Desde já enxergamos a força do elenco principal da obra, tanto Mara quanto Mendelsohn não precisam dizer uma palavra para exporem seus sentimentos. O olhar de terror do personagem masculino quando vê o seu caso de tantos anos atrás resume perfeitamente as sensações que o tomam de surpresa. Sentimos, desde já, o temor sentido por ele, de que sua vida reconstruída após o ocorrido poderia ser destruída. Mara, por sua vez, nos entrega uma menina presa no corpo de adulta, alguém que jamais conseguiu superar os traumas pelos quais passou, o que é refletido perfeitamente pelo fato de ainda morar na mesma casa com a mãe. Suas palavras jogam a culpa no pedófilo que arruinara sua vida, quase como se tentasse esconder que ainda nutre uma proibida paixão por ele – suas memórias oscilam entre o sonho e o pesadelo, com diálogos que, quando começam a se tornar saudosistas, são revertidos para a triste realidade.

Certamente trazer essa composição para as telonas não foi algo fácil. Transpor a linguagem teatral para o cinema é algo que poucos conseguem fazer, visto que a estrutura da peça muitas vezes é mantida em excesso, prejudicando o dinamismo necessário em uma produção cinematográfica. Tanto o diretor Benedict Andrews quanto o roteirista David Harrower, porém, partiram do teatro e agora se arriscam no audiovisual, eles entendem as diferenças dos dois formatos e compõem quadros tão intensos que chegamos a esquecer que tudo isso é baseado na peça Blackbird. Essa total consciência dos realizadores sobre essa nova abordagem ao texto original se reflete na própria mudança de título, que coloca Una como a personagem central, estabelecendo a narrativa sob seu ponto de vista.

Andrews ainda brinca com o teatro ao utilizar planos mais abertos que mostram a protagonista quase perdida na imensidão da tela, somos colocados, em pontuais momentos, como o espectador distante, enxergando a solidão da mulher, que não consegue abandonar seu passado. Partimos, então, para os closes tão sufocantes, que sabem exprimir a tensão existente entre os dois, revelando a tensão sexual e o medo presente em ambos, com silêncios que rapidamente se extinguem perante explosões por parte de dois personagens cujas dores tão facilmente enxergamos em seus rostos. A distancia dos planos abertos desaparece, enquanto somos jogados para dentro da tela em desconforto tão grande quanto os de Una e Ray, nos vemos presentes naquelas salas da fábrica e, assim como na narrativa, tudo ao redor deixa de existir, só permanecemos nós e eles.

Intercalando esses momentos de pressão, sem qualquer aviso ou preparação, temos os constantes flashbacks da protagonista e a montagem de Nick Fenton sabe utilizar esses momentos a fim de ilustrar a situação presente, oferecendo algumas respostas que nos mantém instigados com a projeção. A fotografia assume tonalidades oníricas, denunciando a incerteza da memória, que dialoga com a parcial verdade detida por cada um dos personagens – não existe o passado certo, apenas as etéreas lembranças banhadas nos sentimentos de cada um, ora saudosas, ora traumáticas, misturando a vontade de esquecer com o exato oposto, a necessidade de reacender tal chama.

Com isso, o monstro é desmistificado, ele se torna humano e nos vemos na desconfortável posição de entender o ocorrido, ainda que repudiemos tal fato. Quem há de dizer se a sentença cumprida por Ray foi justa? Ela refletiu o impacto na vida da garota de treze anos, que teve sua vida destruída, que jamais conseguiu se desvencilhar do passado? A vilanização deixa de existir e o retrato humano toma conta da narrativa, que coloca em tela essa difícil temática. Una não é uma história de vingança ou sequer de superação, é mais que isso, o filme nos mostra a realidade, por mais difícil que seja de assisti-la e, com isso, nos atinge em cheio, ao passo que enxergamos que não podemos substantivar as pessoas, não há apenas uma verdade e sim dolorosos pontos de vista, os quais explicam aquilo que preferimos simplificar através do bem e do mal.

Una — Reino Unido/ EUA/ Canadá, 2016
Direção:
 Benedict Andrews
Roteiro: David Harrower (baseado em sua peça de teatro Blackbird)
Elenco: Rooney Mara, Ben Mendelsohn, Riz Ahmed, Tobias Menzies, Poppy Corby-Tuech, Natasha Little,  Tara Fitzgerald, Ruby Stokes
Duração: 94 min.

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