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Crítica | Vergonha (1968)

por Luiz Santiago
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Ingmar Bergman escreveu o roteiro de Vergonha (que em fase inicial de concepção chegou a ser chamado de A Guerra e também Os Sonhos da Vergonha) na primavera de 1967. O conflito no Vietnã há pouco tinha entrado na fase de “Guerra Total”, promovida pelo presidente americano Lyndon Johnson, mas o diretor afirmou que as notícias ainda não tinham o ar de “espetáculo de horror” que ganharia na imprensa e na opinião pública a partir de do segundo semestre de 1968 e, especialmente, após 1969. Mas o mais interessante aqui é a afirmação de Bergman de que Vergonha não era, em essência, um filme político. Sua intenção aqui era outra. Mostrar algumas pessoas afetadas e profundamente transformadas pela guerra.

Na trama, Eva (Liv Ullmann) e Jan (Max von Sydow) vivem em uma fazenda, na ilha para onde se retiraram após o início da Guerra Civil em seu país. Eles eram músicos profissionais, mas a orquestra foi desfeita e só restava a eles o afastamento da grande cidade, também como uma forma de não se posicionarem politicamente, pois não tinham ideias ou posições políticas definidas. Eles eram contra a guerra, apenas. Mas como o Paraíso nunca está livre de armas e as tardes cultivando vegetais, os almoços quase românticos, o vinho, o sexo, a perspectiva de um filho e a vida tranquila na ilha desaparecem por completo quando as forças políticas nacionais passam a se enfrentar ali também. O local e os cidadãos começam a mudar. Alguns rapidamente são taxados de “colaboradores do inimigo” e há questionamentos, prisões, execuções e muita destruição.

O abuso de poder e a guerra, contra a qual Bergman claramente se opõe, são duas das principais linhas do roteiro, também assinado pelo diretor. Se esta temática já havia aparecido com força em suas obras do início da década (Luz de Inverno e O Silêncio), aqui ela é a raiz de todas as desgraças, o motivo pelo qual as pessoas tiram suas máscaras de convívio social, deixando transparecer seu lado animalesco. O desenvolvimento do personagem de Max von Sydow é a principal prova disso. O roteiro o mostra, a princípio, como um homem sensível, constantemente afetado pela guerra. Seu desespero, em contraste com a posição mais forte e intempestiva da esposa traz um bom contraste psíquico e comportamental, invertendo as nuances normalmente esperadas para o modo como um homem e uma mulher se comportariam diante de uma situação daquelas. Mas lá pelo meio do filme, quando as tropas chegam à fazenda, a coisa muda de figura.

Sven Nykvist escurece o filme na reta final, aplicando mais sombras ou elementos difusos na frente da câmera, indicando o momento de mudanças que tem, como marco inicial, a destruição dos instrumentos musicais da casa, o piano e o violino. A partir dessa “destruição da arte”, não sobra, para Jan, nada que o prenda ao mundo. Ele se torna mais inconsequente, impertinente e cruel. A postura covarde de antes é substituída por um ímpeto para a preservação da vida sob qualquer instância. Isso vem para o personagem em um momento de destruição de tudo ao seu redor. E Bergman plasma esses momentos de desespero como poucos diretores conseguiram mostrar na tela. Não se trata da exposição gráfica, de tiros por todos os lados e centenas de figurantes ou grandes panorâmicas em um cenário cheio de mortos. As cenas na fazenda do casal Rosenberg são cheias de horror, de angústia, do mais profundo desespero, e só temos dois atores em cena para capitanear essa gama de sentimentos, uma grande conquista da excelente dupla e da igualmente excelente direção de Bergman.

Notem que um outro ponto de mudança, não só de corrupção comportamental, mas também de moral de ética, acontece quando vemos Jacobi, o personagem do grande camaleão Gunnar Björnstrand ganhar destaque. Seu aliamento a uma das facções políticas da guerra e o uso de seu poder para obter vantagens  ou subjugar outros exibe uma outra visão do diretor para as “mutações” que a guerra traz. Não se trata apenas do horror da morte, do desespero gerado pela perspectiva da morte, do sofrimento, do enfrentamento de adversidades (os incêndios e a sequência final, no barco, inspirada em diversas fotografias de guerra da Life, são exemplos), da destruição. Trata-se do que este ambiente de ameaça, ódio, ideologias e violência pode gerar em uma pessoa que antes não era, não tinha e não demonstrava nenhuma dessas coisas.

A guerra apavora porque ela também muda o homem, ressaltando, muitas vezes, a sua selvageria — ou indo no sentido oposto e o tornando enjoado do sistema que sustenta a guerra e se recusando a fazer parte deles. Esse medo paralelo, aqui, está delineado por um louvável trabalho de edição de som e pela colocação de batidas à guisa de trilha sonora, um recurso realmente impactante, especialmente aliado ao que as imagens nos mostram — ironicamente, contrastada com um sonho simbólico e utópico (ou apenas escapista) na cena final. Vergonha é um filme cru, um estudo do comportamento humano dentro de um ambiente onde o inimigo pode ser alguém com quem você conviveu a vida toda. Um verdadeiro ode de horror às armas.

Vergonha (Skammen) — Suécia, 1968
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Liv Ullmann, Max von Sydow, Sigge Fürst, Gunnar Björnstrand, Birgitta Valberg, Hans Alfredson, Ingvar Kjellson, Frank Sundström, Ulf Johansson, Vilgot Sjöman, Bengt Eklund, Gösta Prüzelius, Willy Peters, Barbro Hiort af Ornäs, Agda Helin
Duração: 103 min.

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