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Crítica | Viagem a Tulum

por Luiz Santiago
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Histórias em quadrinhos são a fantasmagórica fascinação daquelas pessoas de papel, paralisadas no tempo, marionetes sem cordões, imóveis, incapazes de serem transpostas para os filmes, cujo encanto está no ritmo e dinamismo. É um meio radicalmente diferente de agradar os olhos, um modo único de expressão. O mundo dos quadrinhos pode, em sua generosidade, emprestar roteiros, personagens e histórias para o cinema, mas não seu inexprimível poder secreto de sugestão, que reside na permanência e imobilidade de uma borboleta num alfinete.

Federico Fellini

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Federico Fellini era um grande fã de histórias em quadrinhos e caricaturas. Ele próprio foi caricaturista e quadrinista em Roma, profissionalmente e também durante a libertação da Itália (1943 – 1945), desenhando os soldados americanos ou situações cômicas envolvendo personalidades do cinema.

Mesmo quando começou a dirigir filmes, Fellini seguiu desenhando, criando situações, cenas e sequências inteiras para a maioria de suas obras, um material que já foi reunido e publicado num livro chamado Federico Fellini: The Book of Dreams.

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O nascimento de “Tulum”

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Milo Manara e Federico Fellini.

No ano de 1986, durante a finalização de Ginger e Fred, Fellini recebeu o convite do Jornal Corriere della Sera para publicar o tratamento de uma ideia que em breve seria transformada em roteiro – algo inédito na carreira do diretor.

O cineasta então aceitou a proposta de lançar em 6 partes uma espécie de novelização do seu projeto futuro: Viagem a Tulum. Era mais que evidente que Fellini não tinha intenção de transformar Tulum em filme, por isso não achou que seria uma má ideia disponibilizar para o público o que ele pensava e queria fazer nesse roteiro. Ao final da 6º e última parte, o diretor escreveu esta nota para os leitores:

Não sei se, e nem quando, vou transpor esta narrativa para a forma de imagens. Mas o fato de ter aceito o convite para publicar a história antes, me faz suspeitar que eu estava seguindo um instinto inconsciente para deixá-la pendente. E vocês, pacientes leitores, deveriam saber de um pequeno segredo: a jornada e a misteriosa aventura que originaram este conto, livremente adaptado à narrativa cinemática, realmente aconteceram.

Não era a primeira vez que Fellini tinha um projeto e o deixava de lado. Em meados dos anos 1960, ele sofreu com o destino de seu “filme amaldiçoado”, A Viagem de G. Mastorna, obra sobre a qual o leitor pode ter mais informações lendo a crítica do documentário Anotações de um Diretor. O fantasma de Mastorna, aliás, volta em Tulum, mas este é um assunto que trataremos mais adiante. O que importa agora é dizer que uma das condições de Fellini para que o Corriere publicasse seu “conto seriado” era que o jornal também adicionasse algumas ilustrações que Milo Manara fizera do diretor  mais ou menos no mesmo período.

Fellini conheceu Manara em 1983 (chegando a convidá-lo para visitar o set de E La Nave Va), e a amizade imediata entre os dois se estreitou e ultrapassou os limites da vida pessoal para também entrar na vida profissional dos dois artistas. Manara foi contratado pela produção, a pedido de Fellini, para fazer o pôster oficial de Entrevista (1987) e A Voz da Lua (1990), o que prova a admiração de Fellini para com o trabalho do artista.

Maravilhoso pôster de Milo Manara para o filme “Entrevista” (1987).

Foi depois do exercício de Fellini no Corriere della Sera que Manara pediu sua autorização para transformar Viagem a Tulum em uma graphic novel. Consta que Fellini não acreditou no pedido e tentou dissuadir Manara de todas as formas, dizendo que seu “folhetim” não era páreo para a imaginação do artista. Por fim, e depois de uma grande insistência de Manara, Fellini cedeu. Era o final de 1986. Três anos depois nascia esta obra que ora criticamos. O “título original” é bem grande: “Viagem a Tulum: um roteiro de Federico Fellini para um filme a ser realizado. Adaptado para os quadrinhos por Milo Manara.”

Por fim, vale ainda uma curiosidade: Viagem a Tulum (o roteiro de cinema) nasceu de uma visita de Fellini ao México, para encontrar o escritor esotérico Carlos Castañeda, cujos livros, segundo o próprio diretor, o tinham interessado e perturbado.

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Uma viagem inesquecível

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Viagem a Tulum não é uma graphic novel comum.

Versão em quadrinhos de um roteiro de cinema escrito por Federico Fellini e Tullio Pinelli e jamais produzido ou filmado, essa história nasceu como a expiação de um sonho impossível, uma forma do Mago de Rimini colocar um ponto final na tentação de um dia levar esse roteiro para as telas.

Na companhia de Milo Manara, Fellini misturou acontecimentos reais de sua viagem à cidade de Tulum, no México, e outros eventos que protagonizou ao lado do amigo Manara na Cinecittà, criando um mundo de sonhos e esoterismo, uma viagem emocionante e revisionista de sua própria carreira, contendo elementos dos quadrinhos europeus, especialmente de Moebius, e do surrealismo esotérico do cineasta chileno Alejandro Jodorowsky, a quem Fellini admirava bastante.

O início do sonho (ou da realidade?) antes da viagem a Tulum… Quantos e quais filmes de Fellini você consegue identificar nesses quadros?

Após os primeiros desenhos entregues por Manara, uma longa discussão de deu. O artista queria fazer de Fellini o diretor  protagonista da graphic novel, algo que o Fellini recusou assim que viu os primeiros desenhos e se achou bonito demais nos quadros. “Bonito demais, magro demais e com cabelo demais“, nas palavras do próprio diretor. Demorou um tempo até que ele convencesse Manara a usar a figura de Marcello Mastroianni como seu alter-ego.

E assim foi feito. Mastroianni entrou para a história declaradamente como alter-ego de Fellini (não é algo figurado, é realmente um atributo dado com todas as letras nos diálogos iniciais, mais um toque metalinguístico dentre todos os outros presentes na aventura) e assume o nome de Snaporàz, o personagem que viveu no longa Cidade das Mulheres.

O roteiro de Fellini assume o mesmo critério que o de seus filmes. Há alegorias, metáforas, símbolos de todos os tipos, fartas alusões sexuais (já nas primeiras páginas temos a Anita Ekberg de As Tentações do Dr. Antonio) e fortes doses de esoterismo e sonho. É evidente que podemos falar de um círculo perfeito na história, que tudo faz o maior sentido no final, mesmo que a trama, a rigor, não termine, mas, como o objetivo do diretor e Manara era brincar com a metalinguagem e com conceitos filosóficos e oníricos, não é possível bater o martelo para nada. Viagem a Tulum é um “filme” de Fellini em quadros imóveis: quando ele chega ao fim é exatamente quando a aventura começa, e toda a jornada até aquele momento torna-se um aquecimento de interpretação plural.

Dois momentos de descoberta: o lago de náufragos fílmicos e a Torre de Babel.

A viagem do diretor Snaporàz aos Estados Unidos, o encontro com Alejandro Jodorowsky e Moebius numa coletiva de imprensa, as indicações mágicas da Civilização Tolteca, a posterior visita ao México, a passagem pela Torre de Babel e o encontro com o ancião-guia e com a própria natureza são elementos que brincam com a alma de um criador, seja ele um deus qualquer ou um cineasta à procura de material para seu próximo filme. A história de Tulum é, na verdade, uma espécie de Oito e Meio tardio, mais maduro, mais amargo e mais mágico e libidinoso. É a história de uma viagem por uma obra já erguida à procura de peças necessárias para fazer mais uma obra decolar. É a procura de um artista por inspiração, ao passo que ele se debate com todas as dificuldades encontradas na produção de um filme. É o “de novo” na carreira de um velho cineasta, que apesar do amor pela profissão, declarava: I’m getting too old for this shit.

O fantasma de G. Mastorna volta, e vemos que muitas coisas que Fellini fizera depois de Julieta dos Espíritos tinha um pouquinho daquele seu projeto que começou a ser filmado mas nunca terminou. Temos a fobia do voo e a inquietante chegada de um avião a uma terra estranha, algo que nos lembra o início de Toby Dammit; temos a metáfora dos aviões no fundo do lago, na Cinecittà (“todo avião abandonado aqui é um projeto que não decolou“), onde o diretor revisita seu documentário Anotações de um Diretor; também temos flashes da orgia de Styricon; a cabeça de Vênus emergindo da água, como em Casanova; o navio Gloria N. afundado, de E La Nave Va; os cenários principais que compõem a fantasia de Entrevista e A Voz da Lua. Assim como eu disse na crítica deste último filme citado, Fellini estava cada vez mais num mergulho pleno em sua carreira, como se fosse tempo de prestar contas consigo mesmo, algo que nos desenhos de Manara ganha a aparência mais que perfeita.

Mergulho transcendental e transfiguração: a luta contra a feiticeira.

Para quem não conhece bem a carreira de Fellini, Viagem a Tulum é uma obra completamente sem sentido. A graphic novel foi escrita e desenhada como uma revisão crítica de uma filmografia, portanto, não é uma produção intelectualmente acessível a todo mundo. É uma história cifrada e cheia de símbolos, direcionada para um público em particular. Talvez um leitor que desconheça Fellini mas tenha mente e espírito livres consiga ler a obra e compreender a intenção dos artistas, mas, com certeza irá perder a verdadeira alma do projeto. Se este era o incentivo que você precisava para conhecer a filmografia de Fellini, pois aqui está. Conheça. E depois leia Viagem a Tulum, porque é uma aventura complementar à obra do cineasta e que aborda absolutamente TODOS os seus filmes, de Abismo de um Sonho até A Voz da Lua. Teria como uma coisa dessas não ser uma obra-prima?

Viagem a Tulum (Viaggio a Tulum) – Itália, 1989
Roteiro: Federico Fellini
Arte: Milo Manara
107 páginas

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