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Crítica | Vingança

por Gabriel Carvalho
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“Eles estragaram tudo, mas você é tão linda que é difícil resistir.”

O uso de conjunções adversativas nas frases diz muito da intenção de um discurso. Em um filme como Vingança, lançado durante um tempo de mudanças, quebras de convenções sexistas relacionadas ao papel da mulher como personagem cinematográfica, empoderamento, junto com o de tantas outras mulheres, também das artistas de cinema, não mais impunemente usadas como itens de desejo sexual por grandes produtores, a atenção do espectador está na espera da subversão de vários aspectos da temática abordada, o rape and revenge. A direção e o roteiro são frutos do trabalho de uma mulher, Coralie Fargeat, entendida da relevância de sua presença nesses postos, tomando as decisões mais corretas possíveis na hora de trabalhar o assunto, identificando, na tela, diversos dos problemas acerca desta questão toda, extremamente ampla. Durante a mesma estrutura de desenvolvimento narrativo usual – o estupro, a sobrevivência e, enfim, a vingança propriamente dita -, a cineasta adiciona pequenos detalhes que, juntos, fazem uma diferença absurda no resultado final, divergindo o filme de tantos outros.  Deveras polêmico, o subgênero, muitas vezes identificado como fetichista, diante de realizações problemáticas anteriores, é manuseado por Coralie Fargeat de uma maneira tão inteligente que Vingança surge como uma importantíssima produção feminista, contendo, já em uma primeira instância, ótimas interpretações vindas de cada um dos membros do pequeno, mas suficiente elenco.

Qual é realmente a responsabilidade do cineasta na hora de trabalhar assuntos tão delicados? Como diferenciar os irresponsáveis, os fetichistas e os entendidos do assunto, dispostos a abrange-lo de uma maneira honesta, mas também respeitável? Primeiramente, não é à toa que Jennifer, aqui interpretada por Matilda Lutz, uma força da natureza nesse papel, compartilha do mesmo nome da protagonista de A Vingança de Jennifer, filme da década de 70 bastante controverso acerca da abordagem do estupro seguido de vingança. Apenas para começar, a cena de estupro, em Vingança, não dura sádicos e torturantes 30 minutos. Coralie Fargeat, antes de tudo, traz a tensão anterior ao acontecimento em si, impactando o espectador diante das frases ditas, que premeditam o futuro e nos apavora, ao mesmo tempo que o silêncio surge de uma maneira devastadora. Enquanto Jen é devorada pelos olhos de Stanley (Vincent Colombe), o público imerge na obra com profundo asco do que acontece, além do medo inexorável. Vingança é uma obra que incomoda da maneira certa, desde um inseto pousando-se sobre uma maçã estragada ao horror em seu formato mais gráfico possível. A conexão entre estas associações com o conteúdo da trama é simples, porém longe do óbvio, muito menos do mal-intencionado. Retornando a tal cena-chave, uma terceira figura, já na hora do ato, dá espaço para que um simples plano detalhe, em câmera lenta, escancare genialmente a ojeriza representada na situação. Junto a isso, aquela pausa interminável que nos faz ansiar para uma mudança no estado das coisas; a última fagulha de esperança.

A viagem de Jennifer e o namorado Richard (Kevin Janssens), francês galanteador, a uma casa situada no meio de um deserto inóspito torna-se o pesadelo em carne e osso. O filme, ao seguir tantas cartilhas previamente definidas para o sub-gênero, utiliza dos clichês propositalmente, distanciando-se pontualmente da fórmula, em especial de todos os componentes machistas, os quais tornaram outras realizações fetichistas. Por exemplo, a nudez é vista de uma maneira completamente diferente, levada inteiramente para o âmbito do corpo masculino, desnudo completamente em cena climática fenomenal; o duelo final entre a vítima e o covarde. Coralie Fargeat também é extremamente competente ao filmar as cenas de perseguição, sem buscar por zonas de conforto, diferenciando-se em cada uma delas. Na primeira, ela é cômica, intercalando-se entre os corredores; na segunda, a perseguição se une a um gore, outra característica impactante da obra, munindo-se de uma tensão vagarosa; já na última, o cenário é um componente essencial para a criação de ritmo, acelerado e inevitável, com os envolvidos sendo ora caça ora caçador. No mais, são três os responsáveis pelo trauma que acomete Jen, todos com responsabilidades distintas, multidimensionando os dedos apontados, cobertos por uma luva ácida. A problematizar o filme, contudo, a duração é longa demais para o que é proposto em tela, alongando-se na caracterização de Stanley, fraquejado pela sua covardia, incapaz de concretizar sua fúria. A previsibilidade também incomoda, sugerindo-se, desde o início, quem será o último combatente de Jen. A sequência psicodélica, todavia, é inventiva e significativa.

Mas Vingança é visceral, chocante e se situa em um cenário certamente poderoso para o desenrolar de seus eventos principais. O deserto é definitivamente o lugar mais propício para Coralie contar essa história, encaixando solidão e o senso de vazio em meio a uma paisagem belíssima, realçada pela fotografia, que sabe fazer uso das possibilidades abertas pela ambientação. Por outro lado, a vastidão acaba atuando contrariamente a uma lógica espacial, visto que, em termos geográficos, o longa-metragem prova estar um pouco perdido, juntando personagens situados em lugares distantes sem muita coerência. Ademais, o caráter da violência que reside na obra talvez seja a característica dela que mais se exalte para fora das telas, estendendo intencionalmente para dentro do estômago do espectador, revirando-o. Com um belíssimo trabalho de maquiagem, são muitas as feridas abertas em cena, tanto as internas quanto as externas. A câmera não tem medo de repousar sobre ângulos incômodos, que revelam, parcialmente ou integralmente, toda a dimensão do estrago causado por balas, facas e até cacos de vidro. Vingança é definitivamente um exemplar do Novo Extremismo Francês, caminhando em direção ao horror visual em seus tantos ápices possíveis. A direção de arte, que exalta cores no primeiro ato, é tomada por uma avalanche sanguinária no último. As primeiras escolhas de cores são certeiras para o contraste criado entre início e fim. O branco é tomado pelo vermelho, corredores inundados por poças.

Vingança, no final das contas, também é uma obra esperta, com tendências afiadíssimas na condução do espectador, principalmente no grande diferencial existente no primeiro ato dessa obra com a de outras, presumidamente bastante semelhante a qualquer visão cinematográfica antiga – e, às vezes, atual – do corpo da mulher, mas drasticamente renovado e pronto para apontar dedo, de maneira discriminada, honesta e corajosa. Os closes em Jennifer são, na realidade, uma maneira de se subverter a própria realidade das coisas como são feitas nos estúdios. Dessa forma, Coralie quer atingir exatamente os espectadores que, naquele caso em específico, também seriam alvo da vingança de Jen: os estupradores, os dissimulados e os acobertadores. A resposta do público ao estupro depende muito de como ele absorve o que é exposto inicialmente, durante os minutos iniciais. Não é à toa que Jen é apresentada de forma inspirada na personagem Lolita. A diretora está tentando nos manipular, definir quem nós somos e, em muitos casos, conseguirá evidenciar as hipocrisias de nossos pensamentos. Quando os danos do machismo estão expostos, mas são curados pelo item que muitas vezes o define, a cerveja, a câmera já se transformou, surgindo de maneira fantástica, encaixando-se na própria natureza irrealista da sobrevivência da garota. Por fim, Vingança é uma obra que apela para a denúncia interna do público, capaz de saber, internalizando ou exteriorizando, em um mundo em que falar besteira na internet está na moda, da sua responsabilidade no problema, agora generalizado, abraçando inúmeras vertentes. O olhar direcionado a nós, no último plano do filme, também não é à toa.

Vingança (Revenge) – França, 2017
Direção: Coralie Fargeat
Roteiro: Coralie Fargeat
Elenco: Matilda Lutz, Kevin Janssens, Vincent Colombe, Guillaume Bouchède
Duração: 108 min.

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