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Crítica | Visita ou Memórias e Confissões

por Luiz Santiago
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A autenticidade de Manoel de Oliveira é espantosa. Seu cinema é repleto de camadas familiares, íntimas, sentimentais e históricas, e mais em alguns filmes do que em outros, vemos preocupações e até fixações do diretor em relação a um tema ou a um tipo de pessoa/objeto de estudo ganhar destaque em uma porção de “obras do momento”. Visita ou Memórias e Confissões (1993) é um desses filmes de desabafo em tela. E sua história é bastante curiosa.

As filmagens de Visita aconteceram em 1982. Na ocasião, o diretor aproveitou-se da venda de sua casa, a casa onde ele viveu 40 anos de sua vida, onde viu nascer os 4 filhos e onde dois deles se casaram, para criar uma memória em imagem que pudesse ligar a pessoa e o profissional Manoel de Oliveira ao público, tendo em cena uma linha de pensamentos onde se misturam diários de produção de roteiro, aforismos sobre a vida em família, História de Portugal e da própria família Oliveira e, cimentando essa coluna de memórias e confissões, a intromissão do público, que é representado por um casal de visitantes à antiga mansão. Os estranhos em um velho mundo. Aqueles a quem alguns segredos, depois de muito tempo, se revelam.

Como docudrama, Visita cumpre com elegância o seu papel. A obra não se ressente de sua brincadeira de distanciamento e aproximação (o que talvez gere, em um bloco ou outro, um pequeno estranhamento da narração ou da intenção de “contar segredos“, mas nada grave) e acompanhamos o dia, a tarde e a noite dessa chegada de estranhos (ou seja, de nossa chegada) à antiga morada, agora vendida para que o diretor pagasse dívidas, depois de diversas tentativas para tombamento cultural ou ligação com a Universidade do Porto. Nossa intromissão tem hora marcada. O filme é urgente, mas não porque a montagem corre demais ou porque o tema é espremido pelo roteiro de Agustina Bessa-Luís ao lado de Oliveira. Nada disso. A urgência aqui é orgânica, obedece ao tempo, dialoga com o entardecer (momento para o qual o texto traz uma linda reflexão costurada ao envelhecimento) e sugere aos visitantes que sua presença ali já se estendeu demais. É hora de ir embora.

A ordem de Manoel de Oliveira era para que este filme fosse exibido apenas depois de sua morte. Trata-se de uma exposição de vida que o diretor queria que fosse conhecida apenas quando não estivesse mais aqui, para poder falar por si. Mas como um “fantasma da casa” (a metáfora é exatamente o que esperávamos de Oliveira), ele ainda estaria, contando sobre laços pessoais, sobre sua relação com a esposa, sobre as amizades cinematográficas, sobre a ditadura em Portugal e como ele chegou a ser preso, de como foram os interrogatórios, de como ele concebeu ‘Non’, ou A Vã Glória de Mandar (1990) e de como ele escrevera um filme, na época chamado apenas de Angélica, que só filmaria décadas depois.

Em 1993, por ocasião de uma retrospectiva da carreira do diretor, a Cinemateca Portuguesa foi autorizada a fazer uma única exibição do filme. Depois disso, a obra voltou a ser guardada e só estreou no dia 4 de maio de 2015, na cidade do Porto, pouco mais de um mês após a morte do diretor, como ele havia pedido. Ao som do Concerto para Piano n.º4 de Beethoven, que termina por nos trazer a textura necessária na transição entre cômodos e a adição de novas camadas de confissões, Visita é o tipo de filme que faz qualquer espectador pensar sobre o seu legado, sobre que tipo de memória e marca ele, como indivíduo, deve deixar para o mundo. Da obra, meu único impasse é com a montagem das fotografias de maneira meio displicente na tela, enquanto imagens bem mais interessantes passam ao fundo. Mas a força dela não é diminuída por isso.

Vamos de um encontro casual com o espaço para uma total significação dele. De filmes caseiros a comentários críticos do diretor sobre sua Tetralogia dos Amores Frustrados. Da felicidade e tristezas da vida a reflexões sobre a dor e a morte. Um filme sobre o fim da vida, mas com uma visão tão enraizada na racionalidade, na arte e nas mais diversas relações pessoais que não paira sobre o espectador aquele peso ou a tristeza que a morte traz. Resta-nos a paz de saber que mesmo no escuro, uma certa flor de magnólia ainda está presa à árvore e essa é a grande metáfora, memória e constatação que realmente precisamos para entender não só essa dinâmica cíclica da vida, mas também o poder da arte e do cinema na perpetuação do indivíduo e um convite à reflexão sobre a fugacidade das coisas.

Visita ou Memórias e Confissões (Portugal, 1993)
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira, Agustina Bessa-Luís
Elenco: Manoel de Oliveira, Maria Isabel de Oliveira, Diogo Dória, Teresa Madruga, Urbano Tavares Rodrigues
Duração: 73 min.

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