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Crítica | Vítimas da Tormenta (Sciuscià)

por Luiz Santiago
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A semente do Neorrealismo Italiano plantada por Luchino Visconti, em 1943, com Obsessão, trouxe para o cinema italiano e depois para o cinema mundial uma forma mais crua, triste e… real de ver o mundo. O movimento, que oficialmente foi iniciado após a Segunda Guerra Mundial, tendo Roma, Cidade Aberta (1945) como um ponto de partida comumente aceito, teve neste início poucas obras que de fato abordassem o caráter humano, social e até psicológico dos italianos que lutavam pela sobrevivência em uma nação destruída e que ainda amargava o ranço do fascismo, especialmente nos departamentos de Estado.

Depois de Dias de Glória (1945, de diversos diretores), O Bandido (1946, de Alberto Lattuada) e Paisà (1946, de Roberto Rossellini), foi a vez de Vittorio De Sica contribuir mais uma vez de forma astuta com esse grupo de cineastas que viam no cinema uma forma de espelhar o mundo fora do glamour dos festivais e das salas de cinema e talvez fazer algo por aquelas pessoas que sofriam, sem perspectiva de mudança. A intenção, que se perderia como motivo estético-narrativo de base em menos de uma década (a rigor, foi o próprio De Sica quem pôs o ponto final ao movimento em 1952, com Umberto D.) ainda hoje pode ser vista, seja em ficção ou documentários que abordam realismo social, sempre trazendo muito do Neorrealismo Italiano, um dos movimentos que mais reuniu obras humanitárias, críticas e tocantes e que jamais fraquejavam em apontar a tragédia como parte cotidiana da realidade. Vítimas da Tormenta (1946), de Vittorio De Sica, é um exemplo disso.

Se dois anos antes o diretor já havia feito uma contribuição para a construção do movimento com o filme A Culpa dos Pais, foi em Vítimas da Tormenta que ele obteve destaque junto à crítica e ao público fora da Itália, sendo este então o seu primeiro trabalho a lhe render qualquer tipo de reconhecimento grande da comunidade cinematográfica, com uma indicação ao Oscar de Roteiro Original e o recebimento de um Oscar Honorário.

A história dos garotos Pasquale e Giuseppe, que tentam ganhar algum dinheiro engraxando sapatos em Roma logo após a Segunda Guerra é um baque para qualquer espectador. Sem piedade, sem floreios, o roteiro nos apresenta uma série de adversidades que se misturam a acasos, azares e emoções adolescentes, guiando a obra a partir das ações dos garotos e nos propondo pensar sobre condições sociais, miséria, sistema prisional, direitos humanos, educação e papel do Estado na tentativa de melhorar a vida e oferecer segurança aos seus cidadãos. Sem teorizar de forma maçante ou criar mártires, o texto nos mostra a culpa dividida em vários blocos, sem nunca colocar um dos lados como completo inocente e sem nunca criar qualquer verdade absoluta. Através do cotidiano de Pasquale e Giuseppe, vemos como alguns incidentes podem sair do controle e transformar a vida de dois adolescentes em um verdadeiro inferno, sentimento que nos traz à mente vislumbres de Zero de Comportamento, de Jean Vigo e nos mostra uma das fontes principais de Luís Buñuel para conceber Os Esquecidos, apenas 4 anos depois.

De Sica é extremamente objetivo em sua direção, raramente deixando-se levar por eventos supérfluos e, nas poucas vezes em que isso acontece, escolhendo momento e duração corretas. Cada espaço dramático conta um evento da vida dos garotos e a partir dessa consumação a trama segue com uma consequência para o espaço seguinte, momentos sempre separados um fade, recurso de montagem que cansa o espectador, mas que não atrapalha em nada a apreciação da fita. Mesmo não trabalhando com atores profissionais (os garotos protagonistas jamais tinham aparecido na frente de uma câmera, o que por si só já denota a capacidade do cineasta, vide o resultado final que temos dos dois em cena) e com uma abordagem amplamente ágil de locações — com externas e internas sob ângulos e planos cada vez mais fechados, especialmente a partir do momento em que os garotos dão entrada no reformatório — De Sica nos faz percorrer Roma e arredores como testemunhas de uma tragédia social que sustenta o título em português que o filme recebeu.

Vítimas da Tormenta é uma obra difícil e até cruel pela forma como explora a descida de dois rapazes ao submundo do crime e pela forma abrupta e crua com que nos entrega o final. Todavia, por mais que isso nos incomode, imediatamente percebemos o quão real e o quão atual para nós é esta realidade observada pelo diretor e 1946. Para um mundo que tanto evoluiu em tantos aspectos, parece que estacionamos e criamos formas de esconder um coisa realmente importante em todo esse processo. A nossa humanidade.

Vítimas da Tormenta (Sciuscià) — Itália, 1946
Direção: Vittorio De Sica
Roteiro: Sergio Amidei, Adolfo Franci, Cesare Giulio Viola, Cesare Zavattini
Elenco: Franco Interlenghi, Rinaldo Smordoni, Annielo Mele, Bruno Ortenzi, Emilio Cigoli
Duração: 93 min.

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