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Crítica | Vozes Espirituais

por Luiz Santiago
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Para um espectador desavisado que porventura fosse ver Vozes Espirituais apenas como um filme de guerra, certamente desistiria nos minutos iniciais da “Primeira Parte”, já que o tema bélico passa longe desse prólogo. Vozes é um documentário de 5 horas 30 minutos de duração, dividido em cinco partes e gravado na região fronteiriça entre o Afeganistão e o Tadjiquistão. O filme mostra os exercícios de guerra e as batalhas do Exército russo em parte da campanha no local. Dirigido por Aleksandr SokúrovVozes Espirituais não é apenas um documentário sobre a guerra, mas também uma visita ao coração dos soldados, uma visão dos sentimentos humanos por trás das armas, do medo e do perigo. A avaliação acima representa a minha opinião sobre o filme como um todo, mas cada uma das partes recebem suas respectivas avaliações individuais. Durante a produção do documentário, o diretor também filmou um curta onírico chamado O Sonho do Soldado.

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Primeira Parte

A primeira parte do filme dura 37 minutos e tem apenas dois cenários. O primeiro, predominante, é uma belíssima panorâmica sobre uma paisagem enevoada, cortada por árvores e águas no horizonte em diagonal. O segundo, que aparece rapidamente em dois momentos distintos, é o quarto de um soldado. Com essas duas ambientações plasmadas em escuros tons invernais, Sokúrov faz a primeira incursão na alma de um combatente através do sonho. O cenário predominante nos remete ao mundo onírico quando uma sutil fusão de imagem mostra o rosto de um soldado dormindo. Além da realidade física do espaço natural (como lugar existente, que está na tela para nos levar à reflexão sobre algo), podemos entender o gigantesco plano-sequência que o registra como a própria matéria do sonho, o mundo calmo e ideal, contraste da turbulenta realidade no campo de batalha. Um homem na guerra, em árida terra estrangeira, sonha com a paz de sua pátria gélida.

A câmera está fixa o tempo inteiro. Após os créditos de abertura, nos deparamos com um plano externo que se estenderá por quase toda a Primeira Parte. Não há montagem, pelo menos até as cenas finais. A imagem que vemos, no entanto, está em constante movimento. Através da técnica de aceleração, vemos o sol percorrer a paisagem, projetar sombras e luzes sobre ela; vemos nuvens, névoa; vemos um homem passar pelo campo inóspito, uma fogueira acender-se e apagar-se, e ao fundo, a narração de Sokúrov nos apresenta concertos para piano de Mozart, Messiaen e a Sétima Sinfonia de Beethoven, ao mesmo tempo que ouvimos o som de pássaros, aviões, vozes e madeira crepitando. A música e o som direto parecem fazer parte do plano fixo, encaixam-se materialmente ao espaço. O espectador sente a paisagem. E como num sonho, desperta assustado (e deslumbrado) quando o que pensava ser uma forte nevasca revela-se um primeiro plano em uma pessoa.

A abertura de Vozes Espirituais é um momento de reflexão através de algo completamente oposto ao objeto do documentário. A poesia cinematográfica desse episódio é feita com a música e uma imagem que só se modifica internamente. O plano técnico, como em qualquer outro filme de Sokúrov, é escrupulosamente bem pensado. As nuances fotográficas naturais e trabalhadas em estúdio dão às cenas um misto de irrealidade e realismo natural tremendos. Através da definição física dada pelos contemporâneos de Mozart, da potencialidade independente da música de Messiaen e da genialidade harmônica de Beethoven, vemos surgir no filme um hino elegíaco à vida, ao homem enquanto ser modificador do mundo, necessário ao Universo, independente de suas características físicas, posição social ou atividades. A primeira parte de Vozes Espirituais é uma reflexão sobre a responsabilidade e a sensibilidade do Ser. Como que para justificar o título, o diretor optou por fazer aqui uma verdadeira (e tocante) voz espiritual. O resultado é impossível descrever completamente.

VOZES ESPIRITUAIS – 1ª Parte (Dukhovnye Golosa, Rússia, 1995)
Direção: Aleksandr Sokúrov
Câmera: Aleksandr Burov
Som: Sergei Moshkov
Música: Wolfgang Amadeus Mozart, Olivier Messiaen, Ludwig van Beethoven
Elenco: Soldado russo, Aleksandr Sokúrov (narrador).

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Segunda Parte

Se na abertura de Vozes Espirituais Sokúrov empreendeu uma reflexão elegíaca sobre a existência do homem e a sua terra natal, na segunda parte do documentário a visão passa de reflexiva para contemplativa e a atenção do diretor volta-se especialmente para o espaço geográfico, o primeiro contato de um soldado com a região que lhe oferece constante perigo. O relevo da fronteira entre o Tadjiquistão e o Afeganistão é filmado de diversos ângulos planimétricos e altimétricos, partindo do micro espaço onde um soldado ou um grupo se encontra, até chegar aos planos gerais sobre o território.

A mudança geográfica e a linha de abordagem nesse sentido já podem ser observadas nos primeiros minutos, tanto no texto (que nesse episódio se parece mais com um diário de guerra do que no anterior) quanto na mudança fotográfica. Ao início do filme, estamos diante da mesma paisagem gélida do episódio um, mas a saturação da cor nos mostra que a atmosfera é outra. O sonho termina. Chegamos à realidade da guerra. A narração de Sokúrov não deixa dúvidas quanto à ideia central dessa segunda parte:

Na Rússia, a neve e o frio parecem não ter fim. Nem um ruído e nenhuma alma. Folheando meu jornal, eis com o que me deparo: “No início do mês de junho, tranquilo, mas igualmente triste, juntei rapidamente minhas coisas e deixei a Rússia”. Em junho, o Tadjiquistão está bem quente. Contra todas as probabilidades, cheguei aqui.

A primeira aparição dos soldados é em um momento de descontração. Não há pompa militar nem apurado trabalho estético na imagem. A exposição da película a um tom ocre avermelhado transmite a sensação de alta temperatura. A câmera baixa registra um grupo de amigos conversando, esperando a hora de partir. Aos poucos, o território começa a ser detalhadamente esquadrinhado. Através de tomadas dentro do helicóptero e nos carros que levam o grupo ao acampamento, temos os primeiros sinais de uma terra abandonada e uma insinuação crítica: “por quê estamos fazendo isso?”. A música de Toru Takemitsu perde-se em meio ao ruído dos motores, as vozes dos soldados e a narração do diretor. Um clima de abandono e absurdo da guerra se instaura. Sokúrov não entra nos quartos, não visita os galpões do acampamento militar. Seu interesse nesse episódio é apenas o exterior, a adaptação dos soldados a uma nova terra. Em dado momento, um primeiro plano em zoom no rosto de um jovem comandante parece querer encaixá-lo de alguma forma ao quase desértico cenário natural.

O que me incomodou nessa segunda parte foram alguns “erros” da edição, que, para manter uma desnecessária aparência de documentário de bastidor, deixou que algumas ordens da equipe passassem pelo corte final. Sokúrov nos pede para observar uma situação de adaptação humana e não há narrativa dramática, então, a pergunta: por quê deixar visível a manipulação da câmera, se um modo interativo de documentário é completamente dispensável nesse tipo de abordagem? O espectador compreende o que é para ser visto, mesmo sem explicações didáticas ou sugestões da presença de uma equipe de filmagem no local. Salvo o impasse, a segunda parte de Vozes Espirituais mantém o seu alto nível e conta com a vantagem de mudar o foco de observação sem se perder.

VOZES ESPIRITUAIS – 2ª Parte (Dukhovnye Golosa, Rússia, 1995).
Direção: Aleksandr Sokúrov
Câmera: Aleksandr Burov e Aleksei Fedorov
Som: Sergei Moshkov
Música: Toru Takemitsu
Elenco: Soldados russos, Aleksandr Sokúrov (narrador).

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Terceira Parte

Observar uma guerra, como nos propõe Sokúrov, é lutar contra o tempo. Em um campo de batalha, tanto os soldados quanto os que estão de fora e os observam (caso específico do diretor e do espectador, em níveis diferentes de observação) lidam com a possibilidade do perigo e o tédio das horas que se arrastam. Pior que uma guerra – onde a luta pela vida consome o tempo – é um regimento que não enfrenta nenhum batalha. O tempo vago é preenchido com pensamentos sobre uma terra natal distante, distrações quase infantis e alumbramento com as coisas mais simples, como ouvir uma música em um rádio. “Um dia sem batalha em um campo de batalha” é o tema desse terceiro episódio de Vozes Espirituais.

Uma das primeiras coisas que se destacam nessa terceira parte, é o movimento em cena. Tudo se move nesse episódio: a câmera, os soldados, a atmosfera física. Um dia de sol transforma-se, no final da tarde, em um prenúncio de tempestade, com um céu amedrontador cheio de relâmpagos e trovões. Em meio a essa mudança de tempo, o diretor filma as ocupações dos soldados no topo de um monte, de onde observam a região da fronteira em conflito. O treinamento de tiros, as conversas sobre armadilhas, a leitura de livros, a preocupação com a alimentação, o banho, o medo da tempestade, tudo é motivo para a câmera captar e investigar. E junto a esses movimentos ociosos, a ligação dos soldados com o espaço em volta, reaparece. Corpos perdidos em meio a um vasto campo, o regimento no alto da colina, minimizado pelo céu escuro e a imensidão da vegetação já são quase integrantes da natureza, como o gafanhoto gigante e a tartaruga que se movimentam no espaço dos soldados, tudo nos remetendo a essa ligação do homem com a vida.

A existência, observada desse ângulo, parece demasiadamente desperdiçada pelos homens. Tal visão de guerra só me lembro ter visto no excelente Além da Linha Vermelha (1998), de Terrence Malick. As necessidades primárias do homem e a sua humanidade, contrastam com a destruição bélica patriotista a que se entregam. Nesse episódio, até as observações pessoais de Sokúrov revelam o amargor dessa visão, um estranho sentimento de culpa por estar ali e não poder alterar em nada aquela situação, apenas observá-la.

Esse terceiro episódio é uma das melhores partes de Vozes Espirituais, e explora a observação do soldado fora da guerra, embora esteja no campo de batalha. O caráter oficial é despido e a máscara de cidadão comum, cheio de medos e vontades, revela-se. Embora não seja um olhar novo, tendo já o cinema através de Jean Renoir e Stanley Kubrick adentrado a esse campo de visão humanitário em meio ao conflito, Sokúrov nos traz um novo fôlego, pouco analítico e mais puramente observador. Permanece aqui caráter “homem e espaço geográfico”, trabalhado no outro episódio, mas a câmera vai além do espaço externo, investigando a alma e os corações.

VOZES ESPIRITUAIS – 3ª Parte (Dukhovnye Golosa, Rússia, 1995).
Direção: Aleksandr Sokúrov
Câmera: Aleksandr Burov
Som: Sergei Moshkov
Música: Toru Takemitsu
Elenco: Soldados russos, Aleksandr Sokúrov (narrador).

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Quarta Parte

A premissa dessa penúltima parte de Vozes Espirituais engana o espectador. O silêncio das armas, o som de pássaros em uma manhã nublada e um soldado tocando todos os insetos que vê, são apenas a apresentação de um clima que não durará por muito tempo. Na verdade, é nesse episódio que a “guerra física” chega de fato ao acampamento filmado por Sokúrov, até então ameaçado à distância.

A narração dessa quarta parte é mínima. Inicialmente festeja-se a volta para casa dos poucos jovens dispensados do serviço militar. Após os abraços amigáveis entre os companheiros, os jovens partem no caminhão do Exército e a vida de guerra continua para os que ficam. O modelo de apresentação das imagens aqui é quase igual ao do episódio anterior, com a diferença de que este é um bloco onde existe a guerra, a instalação de minas, soldados russos feridos, acenos de bandeira branca do outro lado do rio, horas depois do primeiro morteiro atirado; portanto, há mais movimento físico e prático do que em qualquer um dos outros três episódios.

Mesmo com uma boa qualidade de imagem e foco narrativo, esse é o episódio mais fraco do documentário, e o último que tem um caráter principal de filmagem em externas. Talvez a grande extensão de emoções e acontecimentos desse episódio façam com que ele pareça mais disperso do que pretende, e por isso mesmo, se afaste um pouco da simpatia do espectador. Mesmo assim, a dor da guerra em meio a amizade e a humanidade fixa-se como mensagem principal, e não podemos nos deixar de lamentar, após a última tomada com o soldado ferido deitado em uma esteira no chão, o quão desprezível é a guerra.

VOZES ESPIRITUAIS – 4ª Parte (Dukhovnye Golosa, Rússia, 1995).
Direção: Aleksandr Sokúrov
Câmera: Aleksandr Burov
Música: Toru Takemitsu
Som: Sergei Moshkov
Elenco: Soldados russos, Aleksandr Sokúrov (narrador).

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Quinta Parte

Um nostálgico clima de despedida e lembranças marca o encerramento do documentário Vozes Espirituais. Quatro horas depois do início do filme, chegamos à parte final como quem observa o fim de uma longa jornada pela sobrevivência e pelo domínio de um território estranho, numa guerra sem sentido. O Tadjiquistão é citado algumas vezes pelos soldados, e um visível tom de amargura e ironia marca esses diálogos sobre a conquista da terra inimiga.

Diferente dos episódios anteriores, a quinta parte de Vozes Espirituais foca-se muito nas filmagens em internas. O episódio é o passar do dia 31 de dezembro de 1994 para a madrugada e a manhã de 1º de janeiro de 1995. Sokúrov e sua equipe (dessa vez, tendo como fotógrafo Aleksei Fedorov e não Aleksandr Borov, como nos episódios anteriores) percorrem as trincheiras e os acampamentos, observando a rotina diária e registrando a comemoração do ano novo. Não fosse o ambiente, diríamos que não existia guerra. Não há indícios de disputa. A noite é fria e calma. Essas características servem para dar sustentação às emoções causadas no espectador nesse episódio. Entre cigarros, champanhe, jantar entre os companheiros, e um soldado vestido de Papai Noel à sua maneira, entregando presente aos amigos que vigiam um ponto do acampamento, temos o melhor e o mais humano episódio do filme.

Ao fazer uso de pontos do cenário para a ligação entre as cenas, a montadora Leda Semyonova logrou criar uma atmosfera ainda mais interessante. O uso de fades entre os takes não são gratuitos, todos se apresentam como elos visuais à cena seguinte. Igualmente bem realizada é a mixagem e a edição de som. Como é de costume nos filmes de Sokúrov, temos os sons da natureza misturados com ruídos humanos e a trilha sonora. Ao invés de um desagradável resultado final, as cenas tornam-se completas com essa variedade de sons e música. No caso desse quinto episódio, a completude acontece também no contexto geral do filme, porque temos aqui uma espécie de retorno a todos os conflitos principais dos episódios anteriores, mas desta feita, a sua conclusão. Exceto pela guerra, que não parece dar sinais de terminar, o desenvolver do episódio fixa cada vez mais o tom de despedida, que realmente acontece, quando Sokúrov, Moshkov e Fedorov despedem-se dos soldados nas trincheiras e descem a montanha para partir no dia seguinte rumo a São Petersburgo. A reflexão aqui está repleta de pesar pelos que ficam.

É possível contar nos dedos quantos documentários de guerra conseguem abordar com distintos pontos de vista (espiritual, físico, técnico, impessoal, humano) uma campanha militar por um longo período, como Sokúrov faz em Vozes Espirituais. Ao final da quinta parte, uma estranha alegria, vinda da beleza da imagem parece nos indicar que tudo estará bem em pouco tempo. A Rússia espera os seus homens voltarem da guerra. Em análise, percebemos que essa felicidade e a possibilidade do retorno imediato é apenas um sonho.

A última narração nos diz que “Não há alma naquela terra fria”. A metáfora pode ser aplicada à situação dos soldados em guerra. Não apenas a guerra que esses russos enfrentavam no Tadjiquistão, mas em todas as guerras da história. A solidão, a culpa e a obrigação de cumprir um dever, são os ingredientes da vida de um soldado. Vozes Espirituais é exatamente isso: um raio X das emoções desses homens treinados para serem impiedosos. Em filmes posteriores (especialmente em Obediência e Alexandra), Sokúrov voltaria a falar da guerra, do isolamento humano e dos limites políticos entre o Ser e a Práxis político-social, o dever imposto por um cargo, uma nacionalidade. A conotação política em Vozes Espirituais é apenas sugerida, quase imperceptível. O principal objetivo do filme é mostrar como algo tão ruim como a guerra pode mudar a vida daqueles que a integra, e como cada um desses soldados enfrenta a selvageria de sua profissão com a humanidade que lhe resta.

VOZES ESPIRITUAIS – 5ª Parte (Dukhovnye Golosa, Rússia, 1995)
Direção: Aleksandr Sokúrov
Câmera: Aleksei Fedorov
Som: Sergei Moshkov
Música: Toru Takemitsu
Elenco: Soldados russos, Aleksandr Sokúrov (narrador).

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Filha Técnica Geral

Vozes Espirituais (Dukhovnye golosa. Iz dnevnikov voyny. Povestvovanie v pyati chastyakh) – Rússia, 1995
Direção: Aleksandr Sokúrov
Roteiro: Aleksandr Sokúrov
Elenco: Soldados russos, Aleksandr Sokúrov (narrador).
Duração total: 328 min.

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