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Crítica | Watchmen – O Filme

por Ritter Fan
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Nenhum de vocês parece entender. Eu não estou trancado aqui com vocês. Vocês estão trancados aqui comigo!
– Rorschach

  • spoilers. Leiam, aqui, as críticas das demais versões do filme.

Quando em 2001 Peter Jackson lançou A Sociedade dos Anel, com enorme sucesso, nos cinemas do mundo todo, o mito da adaptação cinematográfica impossível ruiu completamente. A inexistência de barreiras imaginativas nas páginas literárias finalmente encontrou par na computação gráfica manuseada com maestria para sua transposição para o audiovisual e, com isso, a ousadia criativa no Cinema passou a contar com mais uma fonte inesgotável de material para trabalhar com segurança de que haveria tecnologia suficiente para literalmente qualquer coisa.

Especificamente na Nona Arte, apesar da existência de diversas adaptações dignas de nota há décadas, pelo menos desde Superman – O Filme, essa barreira da obra “infilmável” foi demolida por Zack Snyder quando, após décadas de gestação, Watchmen finalmente pulou das páginas escritas por Alan Moore e desenhadas por Dave Gibbons em 2009, em uma versão cinematográfica corajosa, complexa e inacreditavelmente bem executada.

Digo inacreditável, pois a maxissérie original em quadrinhos, publicada entre 1986 e 1987, passou por uma verdadeira odisseia para chegar nas telonas, tendo seus direitos cinematográficos adquiridos antes mesmo de terminar, sendo levada para produção na Fox, com um primeiro roteiro escrito por Sam Hamm (co-roteirista de Batman, de 1989). Em 1991, a Warner adquiriu os direitos e Terry Gilliam foi trazido para a direção, somente para depois largar a produção por considerar a obra impossível de ser adaptada. Da Warner, os direitos foram para a Universal que, então, contratou David Hayter (de X-Men: O Filme e X-Men 2) para escrever um novo roteiro. Novamente, nada funcionou e o projeto passou pela Revolution Studios, Paramount e, finalmente, encerrando um ciclo, chegou novamente na Warner que, encorajada pelo sucesso de Batman Begins, resolveu tentar mais uma vez com o então razoavelmente inexperiente Zack Snyder na batuta em vista do sucesso de 300, seu segundo longa-metragem. Alex Tse foi chamado para trabalhar em cima do que Hayter escrevera e, com isso, a adaptação de Watchmen finalmente saiu do chamado development hell.

Mas como realmente levar uma das mais ricas e complexas obras em quadrinhos para o cinema sem desvirtuar seu conteúdo, sem tomar atalhos e sem, ao mesmo tempo, ficar tão escravo do material fonte que sua transposição desobedecesse as demandas da mídia audiovisual? Como trabalhar uma obra essencialmente pessimista e ainda por cima de época para um público que pedia cada vez mais super-heróis no cinema?

Alex Tse e Zack Snyder responderam essa pergunta de maneira muito parecida a como Peter Jackson respondera com a Trilogia O Senhor dos Aneis: mantendo o possível, atualizando o necessário e extirpando sem dó nem piedade aquilo que não seria encaixável no meio audiovisual. E isso, claro, significaria deixar fãs irritados com o resultado, mesmo que a fidelidade ao tão idolatrado material fonte, em uma análise fria e distanciada, seja inequívoca em cada fotograma dos épicos 162 minutos que chegaram nos cinemas. O compromisso e o equilíbrio e, acima de tudo, a compreensão do que é a obra de Moore e Gibbons estão presentes do começo ao fim dessa adaptação que apresenta e trabalha duas gerações de vigilantes mascarados em um mundo distópico nos anos 80 constantemente ameaçado pela Guerra Fria e pela proximidade da meia-noite no Relógio do Apocalipse.

Nessa distopia em que vigilantes mascarados já foram comuns e foram proibidos por um Richard Nixon que nunca deixou o cargo e, ao contrário, foi reeleito diversas vezes, existe apenas um super-ser de verdade, o Dr. Manhattan (Billy Crudup), com vastíssimos poderes e que, sozinho, acabou com a Guerra do Vietnã ao ponto de o país ter sido anexado como o 51º estado dos EUA e que mantém a União Soviética nervosa. O Comediante (Jeffrey Dean Morgan), herói mascarado da primeira geração que continuou na ativa mesmo depois da proibição com patrocínio do governo, é morto por um assassino feroz e Rorschach (Jackie Earle Haley), também na ativa, mas ilegalmente, começa a desconfiar de uma trama acabar com os vigilantes, logo avisando a seus ex-colegas, Dan Dreiberg, o Coruja II (Patrick Wilson), Dr. Manhattan, sua namorada Laurie Jupiter, a Espectral (Malin Åkerman) e o multimilionário e o homem mais inteligente da Terra Adrian Veidt, o Ozymandias (Matthew Goode).

Entre os comentários sobre a paranoia nuclear, a proximidade da destruição do mundo e a crise global de energia, o roteiro cria um pano de fundo perfeito para que uma trama muito mais insidiosa comece a tomar forma: o plano secreto de Ozymandias de trazer paz ao mundo, mas com um custo altíssimo. Só que Snyder não tem pressa e cria um filme de queima razoavelmente lenta, mas que se mantém constantemente interessante, fazendo uso de uma magistral sequência inicial de créditos (sem dúvida uma das melhores já criadas) para estabelecer esse mundo e as duas gerações de super-heróis ao som de The Times They Are A-Changin’, de Bob Dylan, além de flashbacks muito bem inseridos – em momentos-chave muito aproximados ao que vemos nos quadrinhos – que recheiam a história de relevância, dando estofo e/ou origens a cada um dos grandes personagens que vemos desfilar em nossa frente.

Snyder, que já havia mostrado seu estilo inconfundível em 300, amadurece-o aqui. Seu famoso filtro digital azulado permeia a narrativa para emprestar um tom sombrio de qualidade quase que surreal por propositalmente parecer artificial ou “plástico”, o que funciona para afastar o realismo duro e trazer um quê de quadrinhos (não necessariamente de Watchmen, vejam bem) para tornar mais fácil a imersão e para fazer o melhor uso de um CGI muito eficiente que, talvez justamente pela forma como foi empregado, sobrevive muito bem até hoje. Da mesma forma, entendendo as exigências do meio audiovisual, os heróis sem poderes e aposentados dos quadrinhos ganham, todos eles, uma aura mais super-heroística, com uma estética que corretamente se afasta da obra original para fazer o melhor uso possível desses personagens em uma mídia diferente, mais dinâmica e que, em um blockbuster especialmente, precisa colocar na bandeja de ofertas algo mais facilmente relacionável a um público mais amplo e não somente aos que leram e releram os quadrinhos ou que, como Alan Moore, refutam e odeiam qualquer adaptação.

E, claro, há o final. Já falei muito sobre a polêmica e substancial alteração de Tse e Snyder nesse artigo aqui, e a verificação do filme mais uma vez para a redação da presente crítica apenas solidificou ainda mais minha posição: o final lovecraftiano “lula-lelé” da HQ não tinha lugar no filme. E não digo isso porque o final dos quadrinhos não é bom, mas sim porque, no audiovisual, a costura narrativa não só seria mais difícil, como ficaria parecendo que a maneira que Ozymandias encontrou para unir as nações era exógena à narrativa principal. Quando, no filme, Ozymandias emula o poder do Dr. Manhattan para fazer parecer que foi o super-herói atômico que destruiu as várias cidades do mundo, o roteiro é certeiro ao trazer esse final para dentro do seio da história dos vigilantes mascarados, com exatamente o mesmo efeito dos quadrinhos. Ou seja, é uma solução endógena, que parte da história principal e não corre paralela à ela. E, que Alan Moore não me ouça, mas se eu tivesse que escolher um plano maquiavélico entre os dois, ainda ficaria com o do filme. Heresia? Talvez. Mas uma heresia benigna, tenho certeza.

No entanto, Snyder não é conhecido por ser comedido e isso fica muito evidente em diversos momentos da projeção. Sua escolha em “tarantinar” a trilha de sua obra resultou em uma curadoria musical de respeito, mas que o cineasta usa demais como enfeites que chamam mais a atenção para si mesmos do que para os fotogramas em que as músicas foram sincronizadas. Para cada escolha perfeita como a já citada música dos créditos de abertura, há bobagens infantis como o uso de Hallelujah, de Leonard Cohen para a inadvertidamente cômica sequência de sexo entre Laurie e Dan.

E o descomedimento de Snyder se faz também presente na violência gráfica digital que faz o sangue explodir nas telas mesmo quando não há muito sentido, como na luta de Espectral e Coruja II no beco. Além disso, mesmo pessoalmente gostando do estilo do diretor com o uso de suas câmeras lenta, Watchmen tornou-se um playground para ele abusar desse artifício sem trazer muitos benefícios narrativos.

Mesmo com o filme acabe acusando os maneirismos do diretor, a verdade é que o feito de Snyder é único e realmente de se tirar o chapéu. Ele encarou o desafio de transpor para as telonas umas das mais difíceis e ao mesmo tempo mais cultuadas HQs, trabalhando em uma obra que respeita o original tanto quanto possível, altera o que é estritamente necessário e entrega um filme incomum que só na superfície se encaixa no gênero de super-heróis, mas que, na verdade, quando paramos para pensar em tudo o que é discutido, apontado, criticado e cutucado, é muito mais do que apenas isso. Aleluia!

Watchmen – O Filme (Watchmen, EUA – 2009)
Direção: Zack Snyder
Roteiro: David Hayter, Alex Tse (baseado em quadrinhos de Alex Ross e Dave Gibbons)
Elenco: Jackie Earle Haley, Patrick Wilson, Malin Akerman, Jeffrey Dean Morgan, Billy Crudup, Matthew Goode, Carla Gugino, Stephen McHattie, Dan Payne, Niall Matter, Apollonia Vanova, Glenn Ennis, Darryl Scheelar, Matt Frewer, Laura Mennell, Danny Woodburn, Robert Wisden, Salli Saffioti, Gary Houston, Frank Novak, William S. Taylor, Walter Addison, Nhi Do, David MacKay, L. Harvey Gold, Jay Brazeau, Jesse Reid
Duração: 162 min.

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