Home QuadrinhosArco Crítica | X-Men: Primeira Aparição (Uncanny X-Men #1, 1963)

Crítica | X-Men: Primeira Aparição (Uncanny X-Men #1, 1963)

por Giba Hoffmann
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“Aqui, escondidos dos humanos normais, aprendemos a usar nossos poderes em proveito da humanidade… Para ajudar àqueles que nos temeriam se soubessem de nossa existência!” – Professor Charles Xavier

Em Setembro de 1963, completando dois produtivos anos de sucesso colocando (e mantendo) no mercado novas séries em quadrinhos destinadas a ocupar, por mais de cinquenta anos depois, um lugar central no panteão da cultura pop, a Marvel Comics trazia para as bancas mais duas grandes surpresas. Uma delas reunia os recém-lançados heróis da editora em uma superequipe que retomava a tradição (já vintage na época) iniciada pela Sociedade da Justiça da América, ao mesmo tempo em que buscava obviamente fazer frente à estreia recente, pela distinta competição, de sua Liga da Justiça. A outra trazia a mais nova fornada de personagens advinda da insaciável criatividade da dupla Stan Lee e Jack Kirby, e pode-se dizer que completa o tour de force de estreias de franquias que a editora vinha realizando desde Fantastic Four #1. Assim, embora sejam dois quadrinhos com equipes de super-heróis que compartilham da mesma equipe criativa e com a mesma data de lançamento, The Avengers #1 Uncanny X-Men #1 não poderiam ser mais diferentes em suas propostas e intentos.

Enquanto que os Vingadores contavam com o benefício de poderem se servir das figuras já estabelecidas dos super-heróis que protagonizavam as páginas de Tales to Astonish, Journey Into Mystery e Tales of Suspense, a ideia para a revista dos X-Men era estrear uma equipe formada por personagens totalmente inéditos. Essa simples premissa moldaria muitas das características da franquia – a começar pelo caráter de time que faria parte da constituição básica da esmagadora maioria dos personagens, que raramente emplacariam títulos solo para além de uma ou outra minissérie esporádica. Mais do que uma reunião de personagens, os X-Men sempre foram desde o início uma verdadeira família, onde cada um dos personagens existe como parte de um todo maior. E que todo maior seria esse? Bem, é aqui que entra o segundo efeito incidental da proposta da dupla Lee & Kirby.

Tendo já esgotado a cota de acidentes radioativos, exposição a raios cósmicos e se aventurado até pelos reinos da magia extradimensional, passando por Asgard, o fato é que o pessoal do Bullpen deparava-se com uma dificuldade crescente em arranjar explicações para as necessárias habilidades especiais que colocavam o “super” em seus heróis. A solução? “Para o inferno com as explicações e origens, vamos só falar que eles já nasceram com elas e pronto”! Nascem gloriosamente os mutantes, conceito que casou perfeitamente com as necessidades de criação da equipe, que agora ainda por cima possui uma razão para existir ligada à própria condição de seus membros. Para auxiliar a comunicação entre os incompreendidos mutantes e uma humanidade que ainda não está pronta para aceitá-los como são, o Professor Charles Xavier funda uma escola que, ao mesmo tempo em que serve de abrigo seguro para aqueles que se descobrem membros dessa nova espécie, treina-os para que possam lidar com os desafios que esse embate trará.

Desafios como… um antigo amigo do Professor Xavier que vestiu uma cueca roxa por cima da calça vermelha e sequestrou uma base militar com objetivos não muito bem definidos! Numa particularidade que se deve ao menos em parte à mais pura coincidência, os X-Men são atípicos também no fato de que enfrentam seu arqui-inimigo definitivo já em sua história de estreia, algo raro para a maioria dos super-heróis. Digo que isso é apenas em parte uma coincidência pois há algo de especial no personagem de Magneto, que é justamente sua motivação e suas crenças que fazem com que ele, mesmo nesta típica encarnação como vilão apatetado da Era de Prata, guarde desde o início o potencial de ser algo além de um torcedor de bigode gargalhante.

O roteiro da edição, ainda que simples, é bastante eficiente no estabelecimento do cenário em que a série se passará pelos próximos anos – embora de uma forma ainda prototípica e com caracterizações ainda bastante cruas, a essência da revista já está toda contida ali. Após uma longa sequência introdutória, onde somos apresentados ao Instituto Xavier, ao misterioso Professor X e seus quatro estudantes e seus respectivos poderes em ação em uma sessão de treinamento, acompanhamos a chegada da quinta integrante dos X-Men, a jovem Jean Grey. Os rapazes praticamente não conseguem lidar com o fato de que uma garota fará parte da escola, realizando um show de horrores de cantadas e investidas bizarras no que tange à recepção da moça, com todos se atrapalhando em uma sequência em que, na típica redundância dos roteiros da época, novamente vemos uma demonstração dos poderes dos adolescentes, agora no contexto de um amigável conflito interno pela atenção da jovem (que, hilariamente, não poderia se impressionar menos).

A provação de Jean é felizmente interrompida pelo anúncio de um ataque na base militar de Cabo Cidadela, de autoria de um terrorista mutante chamado Magneto, em nome da causa de uma inevitável guerra inter-espécies na qual ele acredita estar no direito de realizar seu ataque pré-emptivo. Sem muitos questionamentos, a equipe segue em sua primeira missão, onde enfrentam um tresloucado Magneto que, apesar de afirmar ter planejado o ataque por muitos meses, não parece saber muito bem o que está fazendo. Após uma série de invertidas nas mãos dos adolescentes, sob a liderança informal de Ciclope, o vilão acaba batendo em retirada, e o que fica sugerido é que tudo que ele intentava era apenas uma demonstração de força. Isso é confirmado pelo Professor X, que enfatiza o fato de que isso é apenas o início das manifestações dos “mutantes do mal”, aqueles que se recusam a conviver pacificamente com a humanidade.

A sequência inicial na mansão é bastante interessante (fico imaginando qual a impressão de quem a leu, na época, sem nenhuma referência dos personagens em questão!), nos apresentando os estranhos adolescentes que compõem a equipe comandada pela misteriosa figura do Professor X, que se mantém quase imóvel e comunica-se com seus estudantes apenas através de pensamentos. Sua “aula” bizarra se passa no protótipo da Sala de Perigo, e envolve colocar seus estudantes para usar seus dons especiais contra uma máquina de obstáculos equipada com uma série de bugigangas perigosas, treinando manobras e usos para seus poderes. Logo a coisa toda desanda em uma bravataria sem fim, que acaba sendo ocasião para uma briga de superpoderes, como não poderia deixar de acontecer. Com isso, conhecemos um pouco tanto da personalidade, quanto das habilidades especiais de cada um dos quatro X-Men. A ação é muito bem retratada no traço de Kirby, ainda que os usos dos poderes dos jovens seja ainda um tanto apatetado, como é de se esperar de um quadrinho da época.

Dentre os personagens, apenas o Fera atua de forma totalmente desalinhada com o que será mostrado no futuro próximo. O Fera que temos aqui é bruto, agressivo e com a fala tomada por gírias, praticamente o oposto do sempre gentil e paciente Hank McCoy que toma chá segurando a xícara com o polegar do pé enquanto lê livros de física teórica. Podemos adiantar que trata-se no entanto de uma mudança gradual, e é certo que algo da babaquice inerente dessa primeira versão do personagem sobrevive ao surto intelectual que em breve o definirá melhor. Ciclope por outro lado é o integrante que mais “vem pronto”, chamando a atenção de cara tanto como o queridinho do Professor X, quanto como o líder nato da ainda desajeitada equipe. O obsessivo do grupo, “Slim” (nome que recebe aqui e que depois será adaptado como o glorioso apelido “Magrão”, no português) Summers já demonstra sua rigidez exagerada acompanhada de muita habilidade, derrotando Hank e Bobby no treinamento e capitaneando os esforços contra Magneto, sendo responsável pelo plano que faz com que o vilão recue.

Bobby é desde o início apresentado como o crianção da equipe, por ser o mais novo mas também por seus comportamentos de garoto, com muitas piadas e provocações – mas que dão pistas de que ele se sente de alguma forma deslocado do restante do grupo, tanto no treinamento (onde reclama que o Professor pega leve com ele), quanto quando Jean dá as caras na mansão (onde critica – não sem razão – a reação exagerada dos colegas perante a garota). A recém batizada Garota Marvel rouba a cena com sua chegada, com um jeito independente e decidido, demonstrando um uso refinado de seus poderes de telecinese, ainda que não fique claro desde quando conhece o Professor X e a iniciativa dos X-Men – aparentemente tempo o suficiente para topar já colocar um uniforme e sair desarmando mísseis e jogando-os no mar. Por fim, sabemos muito pouco sobre o Anjo além de seu pomposo nome (que já dá pistas que se trata de um belo de um playboy rapaz de família).

É notável o quanto a edição semeia – intencionalmente ou não (ok, sabemos que não) – vários aspectos desses personagens que serão trabalhados futuramente. Não apenas isso, mas a própria equipe se apresenta com sua configuração sui generis, nem uma família de exploradores, nem uma reunião de super-heróis em busca de justiça, mas um grupo de adolescentes vivendo em um internato trabalhando um ideal de coexistência entre espécies distintas. Com a maior parte do tempo da história se passando na mansão, a ênfase humanizadora dos heróis, ponto forte da revolução sessentista de Stan Lee, se faz presente aqui de uma forma que talvez apenas o Homem-Aranha tenha alcançado à época. Além disso e de forma complementar, a maneira como o enredo gira desde o início em torno da misteriosa figura do Professor X e de sua visão a respeito do surgimento e dos rumos da espécie mutante empresta a coisa toda ares de ficção científica, e o super-heroísmo acaba quase sendo uma camada secundária a revestir a trama. Quase. Esses ingredientes somados é que fariam de X-Men o novelão sci-fi sem fim que conquistaria uma legião de fãs e se manteria como um riquíssimo universo à parte dentro do próprio Universo Marvel.

Se por um lado a edição tem todo esse inesperado potencial, é preciso reconhecer que muito disso se deve a uma leitura já mais informada pelos desenvolvimentos posteriores. Não temos nenhuma menção à amizade passada entre Xavier e Magneto, que só será revelada mais de uma década depois. A famosa rixa filosófica entre os dois também não é aprofundada suficientemente aqui embora já exista, ainda que na forma de subtexto. No espaço dessas páginas iniciais, as reais motivações de Magneto permanecem envoltas em mistério e são reveladas apenas o suficiente para justificar suas ações. Ainda assim, não deixa de ser interessante o quanto já se prepara aqui a versão mais desenvolvida do personagem, que por sua vez ajudará a definir a própria identidade central dos X-Men, uma vez que fica claro que não se trata de um vilão em busca de poder, dinheiro ou mesmo vingança, mas sim de um posicionamento radical frente a uma questão que afeta diretamente os nosso próprios heróis. Como poucas oposições heróis/vilões, os X-Men e Magneto representam literalmente duas faces da mesma moeda, duas respostas possíveis ao mesmo problema, e essa interessante possibilidade é posta em movimento já nesta primeira história.

Ao melhor estilo de Stan Lee, que por vezes se desculpava via caption box diretamente ao leitor, quando considerava ter passado tempo demais nos diálogos e dramas pessoais e com isso deixado faltar no ramo da ação, a coisa toda acaba se encaminhando para a longa sequência de batalha no Cabo Cidadela, que é vendida ao leitor como o grande ponto de interesse da edição. Como não poderia deixar de ser, temos vários usos absurdos para os poderes de nossos heróis debutantes, e mais ainda para Magneto que, adiantando algo que irá marcar suas primeiras aparições, pode fazer praticamente tudo que quiser e colocar na conta do magnetismo, ao mesmo tempo em que ele parece sempre precisar de bases secretas mirabolantes e completamente desnecessárias para colocar em prática seus planos – provavelmente uma desculpa para o tio Kirby poder desenhar suas parafernalhas tecnológicas.

No geral temos uma ótima batalha, com cada membro fazendo um bom uso de seus poderes para lidarem com todo o arsenal que Magneto usa contra eles, terminando com uma tática engenhosa (ainda que um tanto galhofada) de Magrão Summers, que surpreende Magneto e faz com que ele parta em retirada. O fato de que o vilão acaba por fugir é significativo não apenas por evitar o clichê da prisão inútil que será revertida na próxima edição, mas também por definir que se tratava de um primeiro movimento do jogo de xadrez entre os oponentes Professor X e Magneto. Sob um olhar mais contemporâneo, é possível dar falta de algum diálogo mais contundente entre o vilão e os adolescentes, que dê conta de sua motivação e tente mostrá-los o seu ponto de vista sobre a coisa toda, como será de praxe nos reencontros e releituras que surgirão a partir deste aqui. Dentro da linguagem da época, no entanto, temos um conto que cumpre perfeitamente o papel de uma edição número 1: deixar o leitor intrigado pela sequência. E agora eu lhes pergunto: o que virá a seguir fará jus às expectativas plantadas nessa aventura inicial? Isso só o futuro (de 54 anos atrás) nos dirá!

Embora tenha evoluído e transformado radicalmente sua identidade a partir do relançamento nos anos 1970 sob a batuta de Len Wein, Chris Claremont e Dave Cockrum, onde a série receberia seus contornos mais definitivos, a primeira aventura dos X-Men não foge em nada do que se esperaria para uma estréia da equipe mesmo em sua versão mais acabada. Apresentando o mundo dos mutantes e alguns dos principais conflitos que o definiriam como um dos terrenos mais férteis do Universo Marvel, sob um roteiro leve de ação e aventura adolescente pontuado por alguns mistérios e conceitos interessantes que ultrapassam o arroz com feijão do gênero super-heroico da época, a desculpa de Lee e Kirby para criar super-heróis sem ter que pensar muito nos porquês provou-se uma dessas coincidências fantásticas que criam algo de novo e inesperado – mesmo que, na época, isso não tivesse ficado tão claro assim.

Uncanny X-Men v1 #1, “X-Men” (EUA, Setembro de 1963)
Publicações no Brasil: Heróis da TV #100 (Ed. Abril, Outubro/1987); Biblioteca Histórica Marvel – Os X-Men #1 (Ed. Panini, Outubro/2007); Coleção Histórica Marvel: Os X-Men #1 (Ed. Panini, Junho/2014); A Coleção Oficial de Graphic Novels Marvel – Clássicos I – Marvel Origens, A Década de 1960 (Ed. Salvat, Dezembro/2015)
Roteiro: Stan Lee
Arte: Jack Kirby
Capa: Jack Kirby, Sol Brodsky
Editora: Marvel Comics
Editoria: Stan Lee
Páginas: 23

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