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Crítica | Que Horas Ela Volta?

por Gisele Santos
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Esqueça a Regina Casé que você vê todos os domingos no Esquenta, programa que ela apresenta na Rede Globo. Tire da sua mente essa Regina um tanto popularesca, que até faz cobertura da morte de dançarino e é criticada por todos em rede nacional. Por um minuto, esqueça Arlindo Cruz, Diogo Nogueira, esqueça essa Regina. Pois em Que Horas ela Volta?, Regina Casé se transforma, se revoluciona e sim, mostra que é uma grande atriz. Claro que sua história com o popular, com a periferia e com as comunidades mais carentes ajudaram a moldar sua personagem, a doméstica Val, protagonista do filme nacional que pode ser o indicado natural do Brasil ao Oscar 2016.

Anna Muylaert é quem dirige esse filme premiado em Sundance (prêmio especial do júri para Regina Casé e Camila Márdila) e no Festival de Berlim (prêmio do público) e que exalta a figura da mulher, já que as principais personagens são femininas. Por trás das câmeras a presença delas também é forte, Anna além de dirigir escreveu o roteiro e o filme ainda conta com uma diretora de fotografia mulher, a Barbara Alvarez e uma montadora, Karen Harley.

A trama traz Val, que deixa o nordeste em busca de uma vida melhor em São Paulo. Acaba trabalhando por mais de 13 anos na casa de Bárbara (Karine Telles) e Zé Carlos (Lourenço Mutarelli) onde cria o filho do casal Fabinho (Michel Joelsas, o menino de O ano em que os meus pais saíram de férias) e deixando para traz a filha Jéssica (Camila Márdila). Após anos sem saber da filha, Val recebe um telefonema dizendo que Jéssica está se mudando para a capital paulista em busca de uma vaga no disputado vestibular de Arquitetura e Urbanismo da USP.

A chegada da menina vai evidenciar diferenças sociais tão gritantes no mundo em que vivemos hoje e que, seja por inocência ou costume, fechamos os olhos e os ouvidos. Jéssica chega para também abrir os olhos da mãe, que na sua inocência e medo dos patrões é submissa de uma maneira que chega a ser comovente para o espectador. O Brasil é um país onde as diferenças sociais são gritantes. Onde até pouco tempo atrás filho de pobre não poderia sonhar em ter uma profissão que não fosse aquela do pai ou da mãe e esse preconceito velado fica claro nas falas de Bárbara quando a menina fala de sua ambição em ser arquiteta. A ascensão do que muitos chamam de “a nova classe C” mudou os rumos do país e da sociedade, mas muitas pessoas ainda preferem fechar os olhos para a realidade que está na nossa cara.

Tem um ditado que gosto muito que diz mais ou menos assim: você sabe o caráter de uma pessoa olhando a forma como ela trata quem lhe serve. Sempre achei isso uma grande verdade e em Que Horas Ela Volta? isso fica ainda mais evidente. O empregado na casa é visto como “alguém da família” desde que não ultrapasse a porta da cozinha, desde que saiba o seu lugar e que não conteste nada, nem ninguém. Esse tema já havia sido explorado no ótimo Casa Grande e também no O Som ao Redor, dois exemplares de grandes filmes nacionais que abordam o abismo social vivenciado no Brasil e que, apesar dos anos, não se diferencia muito dos tempos da casa grande e da senzala.

Uma outra abordagem interessante que o filme faz é a do papel da mulher nessa sociedade de hoje. Todas as personagens femininas são fortes e tem muito a dizer, ao contrário dos homens, parados, estacionados e com pouco conteúdo. Seria uma forma de alertar as mulheres de hoje que, enfim, nós cansamos de machismos e estamos prontas para tomarmos as rédeas da nossa vida? Com o filme se faz uma reflexão sobre a voz da mulher, que hoje pode ser repercutida mundo afora. Voz essa que lhe foi negada historicamente por anos. Mas, infelizmente, ainda existem muitos homens, e também mulheres, tentando nos calar. No seu discurso no Oscar desse ano, Patrícia Arquette já dizia que, em pleno 2015, os atores ganhavam um cachê maior do que as atrizes apenas pelo fato de serem homens. Esse alerta ecoou na indústria do cinema e pode ser um suspiro de esperança para a tão sonhada equiparação salarial em várias áreas, não apenas no entretenimento.

Falando em mulheres, é impossível não elogiar a interpretação de Regina Casé. Ela é Val, ela vive essa personagem de uma maneira tão intensa e delicada que o espectador transita entre o riso e o choro em muitos momentos da fita. Com um sotaque impecável, Regina mostra que o Brasil é sim um país que forma ótimos atores e faz bons filmes, que muitas vezes não são prestigiados pelo seu próprio povo por preconceito ou falta de interesse. Regina ainda está muito à vontade improvisando solta, inventando expressões e trazendo algumas ditas pelos seus avôs, que têm origem nordestina. Mérito da diretora que trabalhou com o elenco o improviso como uma forma de dar ainda mais realidade para o que acontece em cena, como se a vida real fosse exatamente daquela forma. A cena da bandeja de café, segundo a própria Regina, foi feita totalmente na base do improviso, e acreditem, é um dos melhores momentos do filme.

Sou uma grande fã do cinema nacional (exceto essas comédias bobas produzidas pela Globo Filmes, que por sinal, também co-produziu Que Horas ela Volta?) e sempre que posso vou ao cinema prestigiar as obras produzidas aqui. Achamos o nosso cinema ruim, achamos nosso futebol uma vergonha e ainda por cima vivemos em um lugar onde as diferenças sociais nos colocam em um abismo que ao invés de diminuir só cresce com o passar dos anos, alimentado por uma educação retrógrada que alimenta preconceitos contra negros, nordestinos, gays e mulheres. Em tempos de manifestações, com bandeiras e hinos nacionais cantados na rua, talvez a melhor revolução precise ser feita dentro de nós mesmos, na nossa casa, na nossa consciência, na forma como vemos o outro e como tratamos quem, por vários motivos, não teve as mesmas oportunidades que nós. Pois no país retratado em Que Horas Ela Volta?, meu amigo, falar em meritocracia é uma grande bobagem!

Que Horas Ela Volta? – Brasil, 2015
Direção: Anna Muylaert
Roteiro: Anna Muylaert
Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Michel Joelsas, Karine Teles, Lourenço Mutarelli, Helena Albergaria, Luis Miranda e Theo Werneck
Duração: 114 minutos

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