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Entenda Melhor | A Tarefa do Crítico e uma Breve História da Crítica de Cinema no Brasil

por Leonardo Campos
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Mesclando experiência pessoal e coletiva, proponho neste breve artigo, um panorama histórico sobre a crítica cinematográfica no Brasil, reflexão importante para o meu objeto de pesquisa no Programa de pós-graduação em Letras, da Universidade Federal da Bahia: a crítica de cinema na internet. Situado na linha Documentos da Memória Cultural, o projeto pretende esboçar algumas considerações sobre a transição da crítica de cinema dos veículos impressos para o mundo virtual, contemplando questões como o amadorismo, democratização, função e importância da crítica para a indústria cinematográfica, entre outros tópicos, valiosos para os críticos que fazem parte da mesma seara que eu, enquadrados por Keen (2009) como realizadores do culto do amador: cinéfilos interessados em ver as suas reflexões circulando, assim como os textos lidos durante a fase de formação da cinefilia, através das revistas de cinema e sites da internet.

Para algumas pessoas, o papel do crítico de cinema é informar o público sobre os filmes, passar um conhecimento que, acredita-se, os leitores não tenham, tratando-os dentro de uma redoma de consumidores de cultura, apontando os caminhos que este espectador deve seguir dentro as escolhas diante do que assistir ou não. Mas, indo além, a tarefa do crítico é situar o filme dentro do seu contexto histórico, bem como os novos rumos da produção cinematográfica, e, concomitantemente, registrar o desenvolvimento do cinema como arte e indústria, analisando os filmes com embasamento nas mais diversas possibilidades cientificas: política, psicanálise, sociologia, entre outras. Conforme Bernardet (1978), a crítica é um discurso paralelo à obra. Entre os dois, um jogo de aproximação e distanciamento estabelece-se, afirmação que assemelhasse com o que Setaro (2010) diz sobre a tarefa dos críticos, profissionais especializados em cinema, que precisam atuar como mediadores entre a obra e o espectador comum. O crítico precisa fornecer uma leitura fílmica sublinhando os eventuais valores poéticos, tendo a função de intérprete e guia. Já no que tange à estrutura da crítica como gênero discursivo, de acordo com Aguiar (2000), as quatro operações necessárias para a sua elaboração devem estar no texto do crítico: paráfrase, análise, interpretação e comentário.

A crítica de cinema é um dos mecanismos que movimentam a produção cinematográfica no mundo, contribuindo para a formação de público para os filmes. Os primeiros críticos surgiram na década de 1920, numa época em que o cinema passava pelo processo de amadurecimento da forma, ainda sem cores e com execução diferenciada da trilha sonora. Ao promover o debate e fomentar a produção, a crítica se apresenta como importante processo final da indústria cinematográfica. Como afirma Severo (2010), as primeiras publicações voltadas para o cinema surgiram na França. A Photo-Ciné-Gazette, de Benôit-Levy, é uma destas, promovida pelo criador de um dos primeiros cineclubes do mundo. Em 1920, o jornal Ciné-Club, periódico que trazia críticas sobre os filmes e uma extensa agenda cultural de Paris colaborava com a propagação da crítica em escala mundial. Hugo Munsterberg foi um dos primeiros críticos mais influentes. Alemão radicado nos Estados Unidos, professor de Psicologia da Universidade de Harvard, produziu textos que refletiam o cinema nos moldes da crítica cinematográfica.
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A crítica de cinema no Brasil: o estabelecimento de um campo intelectual

No Brasil, no início da década de 1910, apareceram as primeiras revistas especializadas. Palcos e Telas foi uma das publicações mais conhecidas do período. Como aponta Severo (2010), a revista prezava pela publicidade e pela informação sobre o cinema, não necessariamente trazia textos críticos. Em 1926, surgiu a Cinearte, revista promovida por Adhemar Gonzaga, publicação que durou até 1942. Entre os temas mais debatidos, estava a defesa ao cinema nacional, coadunando com as ideias do Estado Novo, que utilizou o cinema como ferramenta pedagógica e ideológica. Das páginas à produção, o prestígio da revista possibilitou o engajamento do editor e a criação da Cinédia, um dos estúdios mais famosos da história do cinema brasileiro, responsável por chanchadas que fizeram sucesso durante muitos anos.

Em 1928, os brasileiros ganham o acesso à revista Fan, uma das primeiras a considerar o cinema como obra de arte, não apenas mero entretenimento. De acordo com Caleiro (2011), do lado de fora das muralhas acadêmicas, a crítica de cinema brasileira nasceu e foi mantida durante muito tempo sob a tutela elitista de Pedro Lima, considerado expert das primeiras publicações do tipo. Em parceria com Henrique Pongetti e Francisco Luís de Almeida Salles, havia ainda outras publicações neste período: Paratodos (1919) e A Scena Muda (1921). Mário de Andrade, escritor e crítico literário atuante neste período, esboçou algumas críticas de cinema, assim como Vinícius de Moraes, nos anos 1950. Ambos tinham prestígio na área de atuação, a literatura, ganhando algum destaque na produção de reflexões sobre cinema.

A maioria dos estudiosos considera o auge da crítica de cinema no Brasil na época da renovação do jornalismo proposto pelo Caderno B do Jornal do Brasil e A Última Hora. Na França, a Cahiers du Cinéma, de André Bazin e Jacques Doniol-Valcrose, esquentava o cineclubismo, e, concomitantemente, preparava os críticos François Truffaut e Jean-Luc Godard para assumir a direção e autoria de vários filmes da época. O Neorrealismo italiano, a Nouvelle Vague e a chamada Idade de Ouro de Hollywood também foram movimentos responsáveis por um grande aquecimento da atividade do crítico de cinema.

Moniz Viana, crítico respeitado e cotado por diversas gerações de cinéfilos, considerado, como aponta Caleiro (2011), patrono da crítica de cinema no Brasil, fez desta atividade o seu ofício diário no Correio da Manhã, perfazendo um extenso percurso reflexivo (canônico e de ode hollywoodiana, vale ressaltar) entre 1946 e 1973. Na seara da crítica de cunho sociológico, mais engajada com a situação do cinema brasileiro e as preocupações nacionalistas da indústria, temos Alex Viany e Paulo Emílio Salles Gomes, ambos, produtores de reflexões em larga escala.

As intenções críticas de François Truffaut, na França, e de Federico Fellini, na Itália, encontraram ressonâncias em terras brasileiras, através do punho reflexivo de Glauber Rocha, cineasta imerso na efervescência cultural e política da década de 1960: ao contemplar o cinema de autoria, Glauber Rocha está entre os diretores do Cinema novo que mais se relacionaram com a crítica. A estratégia, logicamente, estava ligada não apenas ao interesse cinéfilo do diretor, mas também em intensificar a produção nacional, e, por tabela, a sua profissão de cineasta. Segundo Setaro (2010), Glauber Rocha radiografou seu tempo, proporcionou um amplo avanço nas estruturas da linguagem cinematográfica, no mesmo grau que diretores de gerações anteriores, como Sergei Einsenstein, e da sua geração, como Jean-Luc Godard, Luchino Visconti e Orson Welles.

Na Bahia, Walter da Silveira também aqueceu o debate e a promoção da crítica de cinema. O Brasil ainda teria o apoio da revista Filme Cultura, financiada pela Embrafilme, publicação que segundo Caleiro (2011), foi uma versão brasileira da Cahiers du Cinéma. Durante longo tempo, entre a década de 1980 e parte da década de 1990, a opinião de Rubens Ewald Filho foi ovacionada pelo público, carente de reflexões acerca da produção cinematográfica: como um correspondente do cinema hollywoodiano no Brasil, o crítico geralmente aparecia em comentários da cerimônia do Oscar e comentava algumas produções do cinema em escala mundial.

Apesar da produção incessante dos estúdios hollywoodianos, o Brasil produzia cada vez menos. Durante este percurso histórico, é possível perceber que a crítica passou por períodos obscuros: o surgimento e a popularização da televisão, a perda da força dos cineclubes e a fraca produção cinematográfica do país colocaram a crítica (e o crítico) em uma posição sem privilégios durante alguns anos, ganhando mais força com o advento do que se convencionou chamar de cinema da Retomada: se os filmes brasileiros ganhavam novo fôlego após a era Collor e a extinção da Embrafilme, a crítica também, mas desta vez, não apenas os veículos prestigiados. A era da internet estava cada vez mais próxima, ampliando as possibilidades para uns, oxigenando as reflexões sobre cinema, mas, ao mesmo tempo, promovendo o distanciamento de outros.
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A crítica na internet: reestabelecimento do campo intelectual

Atualmente, os críticos de cinema das revistas impressas estão situados na esfera virtual, através de sites especializados ou blogs pessoais. Concomitantemente, temos uma imensidão de cinéfilos e jornalistas amadores publicando cotidianamente críticas de cinema. Nesse processo que gera um novo tipo de cosmopolitismo na internet, os novos críticos ganham espaço para falar. Na internet, os cinéfilos assinam listas de discussão, debatem em fóruns, e leem críticas em agregadores, sites que recolhem certo número de reflexões de determinado filme e o listam em sua página, possibilitando um filtro das críticas na internet e direcionando o leitor para as mesmas. Também na internet, constroem blogs, baixam filmes e até produzem legendas para filmes estrangeiros, muitas vezes, com qualidade superior aos materiais oficiais, mesmo que a atividade seja ilegal. Somados aos blogs, existem as plataformas de vídeos, como o You Tube, e o Wordpress, ferramenta gratuita para a criação e desenvolvimento de sites.

Com base neste percurso histórico, observamos que nesta terra de ninguém, todos podem se autodenominar críticos de cinema, o que coloca uma série de problemas ao exercício profissional dessa atividade, na contemporaneidade. Esta questão, por sinal, nos remete ao questionamento que Gilles Deleuze traz, através de elaboradas metáforas e reflexões, em seu livro Crítica e Clínica, e que aqui, tomo como empréstimo para as minhas reflexões: a crítica de cinema está em estado clínico? As palavras destes novos críticos em nada mais desembocam, sem coisa alguma para se enxergar através delas? Estas respostas, portanto, talvez sejam dadas mais detidamente em outra reflexão: a minha dissertação de mestrado. Por enquanto, fiquemos com este panorama histórico da crítica cinematográfica brasileira, dos primeiros veículos impressos ao deslocamento para a seara virtual. Prometo mais respostas em breve.

Saiba Mais

AGUIAR, Flávio. As questões da crítica literária. In: MARTINS, M. Helena (org.) Outras leituras: Literatura, televisão, jornalismo de arte e cultura, linguagens interagentes. São Paulo: Senac, 2000.

AUTRAN, Arthur. Alex Viany: crítico e historiador. São Paulo: Perspectiva, 2003.

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007.

BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

CALEIRO, Maurício. A crítica de cinema como agente historiográfico e a história canônica do cinema brasileiro. VIII Encontro Nacional de História da Mídia. COMPOS. Anais, 2011.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.

KEEN, Andrew. O culto do amador: como blogs, MySpace, Youtube e a pirataria estão destruindo nossa economia, cultura e valores. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

MENDONÇA, Leandro José Luz Riodades de. A crítica de cinema em Moniz Viana. Dissertação (Mestrado). São Paulo, 2001. ECA / USP.

RAMOS, Fernão. Teoria contemporânea do cinema: pós-estruturalismo e filosofia analítica. São Paulo: SENAC, 2005. Vol. 1

SALLES GOMES, Paulo Emílio. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

SETARO, André. Glauber Rocha: crítico guerreiro.

SEVERO, Felipe. Ainda há lugar para a crítica de cinema?.

VIANA, Moniz. Um filme por dia: crítica de choque (1946-1973). Ruy Castro (org.) São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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