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Fora de Plano #06 | Rising Stars à Brasileira

por Luiz Santiago
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Quis custodiet ipsos custodes?

Iuvenalis

Em 1999 J. Michael Straczynski iniciou um minissérie que duraria até 2005 e cujo nome é Rising Stars (Estrelas Ascendentes, aqui no Brasil). O tema central da minissérie é uma sociedade onde pessoas comuns recebem superpoderes, um processo iniciado ainda no útero materno, mas que passa a ser uma verdade para esses humanos com o passar dos anos. E aí surgem as indagações relacionadas ao caso extraordinário: o que aconteceria ao mundo a partir de então? Como deveriam ser tratadas essas pessoas? Qual o limite de suas ações? Elas deveriam ser submetidas às leis? Garantiriam segurança para a população? A troco de quê?

O caso do jovem criminoso que foi preso ao poste no Rio de Janeiro, na última semana, me fez pensar um pouco sobre esses tais superpoderes dados a pessoas comuns. No nosso caso, o poder de acesso a diversas mídias, o poder de atingir muitas pessoas através do que fala ou escreve, o poder de gerar comportamentos através das ideias que divulga, o pretensioso poder de sozinho (ou com seu pequeno grupo) acusar, capturar, julgar e punir uma pessoa.

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O Caso

A questão ficou bastante polêmica após a opinião emitida por Rachel Sheherazade no Jornal do SBT. Em meio a verdades incontestáveis como a morosidade da justiça e a compreensão da ação dos “Justiceiros”, ela acabou indo por um caminho que no fim das contas justifica a ação do tal grupo pela incompetência do Estado em fazer valer a justiça para punir crimes.

Mas a atitude dos “Justiceiros” é mesmo compreensível? Se olharmos para a organização de políticas de segurança e comportamento do Poder Judiciário e Tribunais de Justiça pelo Brasil a fora, encontraremos elementos que nos farão compreender sim a ação do tal grupo, mas isso não tira deles o fato de estarem cometendo um crime, de não estarem fazendo justiça e de não serem “Justiceiros” e sim “Vingadores” ou “Vigilantes” (quem os vigia?). A justiça implica que haja acusação/defesa, julgamento e condenação. Punir de maneira sumária alguém por um crime cometido é um retrocesso em todas as conquistas que nos distanciam da Lei de Talião. Nós já passamos por isso. Nós percebemos que isso pode ter tido efeito em uma época específica da História mas se tornou dispensável a partir de certo ponto. Por quê acredita-se que voltar para ele resolveria as coisas?

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As posições

O pior nesse tipo de defesa é a falta de memória. Há uma lista de sociedades democráticas do século XX que, devido a falha de suas instituições, recrudesceram em força, institucionalizaram a execução ou punição sumárias e perceberam que, a médio prazo, esse tipo de atitude não era benéfica nem para o Estado que se queria instituir e nem para as relações diplomáticas desse Estado – o que gera um problema imediato, uma vez que nenhum território consegue sobreviver isolado do mundo.

Rachel Sheherazade não falou nada além daquilo que uma pessoa de sua estirpe falaria. Ela é de um grupo de pessoas que consideram os crimes cometidos por Justin Bieber como uma “crise da adolescência” e os crimes cometidos por um negro pobre como algo a se valer de “legítima defesa coletiva” (lembrando que o que foi feito contra o criminoso em questão não foi legítima defesa). É o mesmo grupo que silencia ante os crimes cometidos por um Thor Batista, por um Alexandre Pires, por um Alex Kozloff Siwek. E no mesmo grupo também estão as pessoas do porte de Paulo Ghiraldelli, mesmo que se achem estar do lado de lá. Afinal de contas, a incitação ao ódio e ao crime também pode ser vista num desejo público de que alguém seja estuprado. Tudo farinha do mesmo saco.

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Trocando Papéis

A reforma judiciária e das forças policiais do Estado brasileiro é quem deveriam ser o alvo principal dessas falas. Não se apaga fogo soprando fumaça. Pode-se executar e aterrorizar bandidos em que nível for. Se as condições de vida basicamente miseráveis aliada a uma risível distribuição de renda e uma estrutura educacional imbecil permanecerem, a criminalidade jamais diminuirá. Pegue como exemplo os países que possuem pena de morte e compare os seus índices de criminalidade com os países que investiram em reformas educacionais de peso e exercício pleno da Justiça.

Mas parece ser cômodo defender medidas de força extrema como antídoto para um “câncer social”. Sabem por quê? Porque é mais fácil. Não demora encontrar quem queira fazer (e de graça!) algo do tipo para “o bem do Estado e de seus cidadãos de bem”. Mas demora encontrar quem queira ou saiba eleger políticos que realmente pretendem reformar o patamar legislativo e investir em medidas que a longo prazo curariam o tal “câncer”.

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As Consequências

Dar poder a essas estrelas marombas para agirem contra uma ameaça hoje unanimemente odiada é um caminho simples e de resultado imediato. Mas de efeito extremamente curto. E o pior é que não demora para essas estrelas marombas ganharem demasiada força – por acreditarem que o que fazem é a coisa certa a ser feita (A República, de Platão). E aí essas estrelas ampliam o leque de coisas que “precisam passar por ‘Justiça’”. E o expurgo social que antes era feito só para algo que a maioria achava errado, passa a ser feito para qualquer coisa que as estrelas marombas julgam que devem expurgar. Se você ler 15 minutos de um livro qualquer de História Política do século XX, é bem provável que encontre pelo menos 8 ou 9 exemplos disso. Ampliando a leitura, sua lista irá crescer e irá seguir pelo menos até 2013…

Ninguém deveria choramingar por criminosos. Estes devem ser julgados por seus crimes e pagar por isso. Qualquer criminoso deveria. O nepotista, o assaltante, o homicida, o traficante de drogas, de órgãos, de pessoas; o político corrupto, o atropelador que dirige bêbado, o sonegador de impostos, o depredador de patrimônio público, o que oferece propina para se ver livre de enrascadas, o plagiador, o pedófilo, o incitador de ódio, o segregador de etnias, de pulsões sexuais, de gênero; o que pratica falsidade ideológica… Não importa.

Em nenhum desses casos, porém, nós deveríamos dar o aval para que um grupo de civis de classificação X fizesse qualquer tipo de coisa com os acusados e/ou condenados (embora, muitas vezes, não nos falte vontade, tamanha a infâmia do crime). A prática desses atos, como no caso do que aconteceu no Rio, é uma fatalidade criminosa que passa a se reproduzir juntamente com o discurso que lhe deu origem: se o Estado não faz, eu faço, mas faço do meu jeito. Lembram-se da República de Weimar? Da Itália no governo de Victor Emmanuel III? Da Espanha pré-Franco? Como se vê, a minha real preocupação é menos com o fato específico e com a pessoa com quem aconteceu (podem me chamar de inumano, não tem problema), do que com aquilo que germina desse tipo de atitude.

Se as pessoas realmente utilizassem de tudo o que não deu certo (por diversas vezes e em diversas épocas) para corrigir o que fazemos do presente, a fala de Rachel Sheherazade não encontraria tantos defensores. Primeiro, porque abre espaço para que tal atitude se torne comum e simpática à população rasa – que acredita ser este o único caminho para melhorias gerais (essa semana amarraram outro negro ao poste, um demente, na cidade do Crato – CE); segundo, porque o núcleo do problema permanece intocado, produzindo mais do mesmo. É como passar blush numa ferida crônica aberta.

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