Home Colunas Fora de Plano #38 | Êxodos – Travessias Críticas

Fora de Plano #38 | Êxodos – Travessias Críticas

por Leonardo Campos
193 views

Em O Cinema e a Invenção da Vida Moderna, coletânea de 13 artigos organizada por Leo Charney e Vanessa R. Schwarz,  o leitor pode refletir sobre a consolidação da “sétima arte” na sociedade, numa análise focalizada entre 1848 e 1920. Prefaciado na edição nacional por Ismail Xavier, talvez o maior nome no que diz respeito aos estudos acadêmicos sobre o cinema no Brasil, o livro trata de um período em específico, mas trata de questões que nos faz entender a evolução da linguagem audiovisual na contemporaneidade.

Conduzido por um fio condutor que retrata o estabelecimento das experiências sensoriais que culminaram na “modernidade”, o livro trata da fotografia, da pintura e dos museus, aborda as transformações na esfera do consumo e depois adentra nas particularidades do “espetáculo” no bojo de uma sociedade em reconfigurações.

Ao tratar do cinema associado aos termos cultura de massa, produção técnica, lazer e trabalho, os textos abordam o papel desta manifestação artística na expressão do “espírito de uma época”. Meio de aprendizagem concreta e talvez um dos melhores recursos para compreensão de determinados temas que fazem parte da nossa agenda contemporânea, o cinema possui importância para os livros da Trilogia do Tempo Crítico, série lançada entre 2015 e 2018, estruturada com base na organização entre artigos e ensaios acadêmicos, anotações pessoais e críticas publicadas aqui no Plano Crítico, desde que iniciei a minha função de colaborador em 2014.

Inspirado pelo número de artigos do livro em questão, este artigo é um embrião do terceiro livro da tal trilogia, intitulado Êxodos – Travessias Críticas, obra que dentre tantos temas, propõe ao leitor uma travessia por 10 filmes que são bastante elucidativos na compreensão da contemporaneidade. Temas como corrupção, educação, paradigmas familiares, jogos de poder, tensões sociais, relacionamentos interpessoais, gênero e sexualidade, entre outros, são os pontos nevrálgicos destas narrativas bastante significativas.

1Beleza Americana, de Sam Mendes: os Estados Unidos são conhecidos mundialmente por diversos elementos próprios de sua cultura que foram transformados em mercadorias globais. O conjunto de valores e representações de modelos que forjam e consolidam a identidade nacional, isto é, o american way of life, reverberado em tantas produções que o exaltava, em 1999, ganhou um olhar irônico e repleto de cinismo, narrado através de um recorte que nos remete à escala da microanálise: em Beleza Americana, o culto às aparências, a obsessão pelo sucesso e a tentativa de manutenção dos padrões hegemônicos são criticados sem piedade. Um retrato amargo e irônico das imposições de uma vida em sociedade. Lançado há quase vinte anos, mas bastante atual.

 

2Relatos Selvagens, de Damián Szifron: através de seis episódios independentes, Relatos Selvagens apresenta uma sequência de histórias que se interligam nas temáticas: vingança, raiva, frustração diante da falência das instituições e o desejo de justiça com as próprias mãos. Com humor sofisticado e inteligente, o filme tem como vantagem apresentar temas complexos, mas tratá-los através de abordagens cotidianas, com a devida proximidade com o público, sendo alvo de várias interpretações para os mais diversos campos do saber. Conectadas por seus temas, as seis histórias antológicas tratam, de maneira geral, da selvageria, parte integrante do nosso cotidiano.

 

3Closer – Perto Demais, de Mike Nichols: longe da previsibilidade comum aos filmes de amor a que somos submetidos constantemente pela indústria cinematográfica, este drama é a antítese das comédias românticas convencionais. Com os seus diálogos bem cuidados, roteiro dinâmico e condução sem pudores, o filme nos mostra o quanto a linha entre os nossos sentimentos é tênue, principalmente quando tratamos do secular tempero das mais variadas narrativas ficcionais: o amor e o ódio. De maneira nada otimista, a produção revela as tendências que acompanham as relações humanas atuais, mergulhadas em ansiedades ou dominadas pelo desapego, numa era conhecida como “líquida”.

 

4Tudo Sobre Minha Mãe, de Pedro Almodóvar: quando lançado em 1999, Tudo Sobre Minha Mãe foi um estrondoso sucesso de crítica e de bilheteria. Há relatos sobre uma polêmica afirmação da Catherine Deneuve, ao sair da sessão do filme em Cannes. Ela teria dito que “Pedro tem razão, os homens não são necessários”. Se refletirmos dentro da perspectiva desse drama, a afirmação é coerente. Almodóvar nos entrega um drama em que as mulheres precisam sobreviver constantemente ao machismo cotidiano, interpretando, às vezes fingindo, reconfigurando-se, tendo em vista sobreviver a um mundo de desigualdades.

 

5Crash – No Limite, de Paul Haggis: Depois do ótimo roteiro de Menina de Ouro, Paul Haggis juntou-se a um time de atores compromissados e ao montador Hughes Winborne para nos entregar uma produção que é um reflexo de nossos tempos: segregacionismo, xenofobia, estereótipos e preconceitos. Não exatamente nesta ordem, tampouco apenas sofrido, mas cometido também.  No filme, o roteiro não se preocupa somente com o apontar de dedos para as ações que sofremos cotidianamente, mas também nos chama a repensar as nossas atitudes, o quanto somos contraditórios e mutáveis, a depender da situação em que estejamos envolvidos. Um dos pontos críticos do filme é mostrar que estamos sempre ocultando os nossos preconceitos, mas o caminhar da vida na contemporaneidade, “furioso e em alta velocidade”, nos faz esquecê-los, e, ao invés de guardá-los adequadamente, deixamos escapar em situações corriqueiras.

 

6Pro Dia Nascer Feliz, de João Jardim: como aponta inteligentemente Paulo Freire em A Pedagogia da Autonomia: é preciso “ler o mundo”. As pessoas atualmente estão muito alheias a tudo isso. Sem pessimismo ou tom de derrota, podemos observar que o processo que acompanha a sociedade brasileira atual, apenas seis anos após o lançamento do documentário, é vertical no sentido “ladeira abaixo”: muita gente transformando-se em massa de manobra para uma mídia parcialmente comprada e um eixo político repleto de projetos que, a cada dia, diminuem os interesses da população e esmagam as práticas educacionais que seriam as possíveis estratégias de mudanças para um futuro melhor.

 

7Homens, Mulheres e Filhos, de Jason Reitman: a produção entremeia seis histórias paralelas, interligadas pela narração eficiente de Emma Thompson, com enredos múltiplos de famílias estadunidenses que se encontram de maneira ocasional, mas tem os seus dramas trabalhados independentemente. Temos uma mulher que agenda encontros pela internet por conta da insatisfação no casamento; o seu marido, também, ciente da crise conjugal, masturba-se constantemente com auxílio da pornografia na internet, acessada através do computador do filho; uma adolescente em busca pela fama, que posta fotos sensuais em um blog, incentivadas pela mãe, também interessada no provável sucesso da filha, mesmo diante de uma exposição que pode ser considerada perigosa; um rapaz viciado em jogos on-line; e uma das mais marcantes é a trajetória da mãe que controla todas as comunicações virtuais da filha, com receio de que algo ruim possa ocorrer com a garota, sem saber que o sufocamento e a falta de habilidade em lidar com a garota pode levar ao enfraquecimento de suas relações.

 

8O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho: um dos melhores cineastas do Brasil contemporâneo, Kleber Mendonça Filho, ao lado de Claudio Assis, Marcelo Gomes, Paulo Caldas e Lírio Ferreira, é o tipo de profissional que escreve, dirige e ainda colabora na edição, além de representar a colaboração de Pernambuco para a produção cultural audiovisual do país. O Som ao Redor é a prova de todos esses adjetivos: ácido, dinâmico, profundo e sem necessariamente obedecer aos ditames das narrativas clássicas, o filme poderia se chamar “Brasil”, tamanha eficiência ao radiografar as principais questões que acometiam o país em 2012. O filme todo se passa em Setúbal (região da classe média de Recife) e nos apresenta os dilemas dos moradores de uma rua, numa metáfora incisiva que parece costurar o período colonial e a sua transição com a modernidade, com seus modelos e padrões sociais que insistem em continuar em vigor.

 

9A Casa do Lago, de Alejandro Agresti: em tempos de internet, redes sociais e aplicativos, doze anos depois de lançado, o filme apresenta-se como um ótimo enredo para discussão da liquidez de determinados relacionamentos. A distância geográfica é o menor dos problemas quando a virtualidade separa duas pessoas que estão bem próximas. Apesar de soar clichê ou moral demais, basta observar mesas de bar, salas de cinema, amigos e casais em praças e outros locais públicos, estudantes na sala de aula. Os celulares os separam, mesmo que os corpos físicos estejam próximos, aquecidos em sua troca de calor, mas com pensamentos distantes. No filme, entre uma correspondência e outra, ambos os personagens principais descobrem que possuem algumas afinidades, desenvolvem uma paixão, entretanto, como todo bom obstáculo numa história de amor, eles percebem que estão em anos diferentes. Ela está em 2004, ele em 2006. Eis que a metáfora da incomunicabilidade entre as pessoas que trafegam pelas relações contemporâneas se estabelece.

 

10O Nevoeiro, de Frank Darabont: tenso e com altas doses de adrenalina, além de ser um drama por excelência, este filme de terror com elementos do gênero fantástico é excepcional. Dialoga, de certa forma, com o ótimo Ensaio Sobre a Cegueira, tamanha a falta de habilidade das pessoas em enxergar certas “verdades” que estão expostas bem diante dos próprios olhos. A cegueira branca da adaptação do livro de José Saramago dá espaço para uma “bruma assassina”, envolta de monstros, mistérios e situações desconhecidas, alegorias que fazem do filme algo muito mais assustador do que vísceras expostas e decadentes “jogos mortais”.

Então, caro leitor, você concorda com a seleção de temas contemporâneos no cinema? Alguma sugestão? Interaja conosco através de seus comentários. As 10 produções não são definitivas, tampouco encerram as suas análises com base em meu ponto de vista, algo que em alguns anos, poderá se modificar. É apenas um recorte de algo maior, mas que embasado no próprio conceito de cânone, deixa claro a ideia seletiva com base no eixo temático em questão: as representações do contemporâneo, um “tempo” em constante transformação.

Em 2018 vivenciamos a continuidade de uma era caracterizada por ampla profusão de informações. Somos receptores de filmes, séries, videoclipes, novelas, obras literárias, músicas, material audiovisual compartilhado em redes sociais e uma série de dados que pedem decodificação e posicionamento crítico para percebê-los e selecioná-los.

Temas como racismo, corrupção, homofobia, dentre tantos outros estão frequentemente entrelaçados em minha prática como docente e crítico de cinema. O motivo? Resposta simples e direta: são discussões que parecem não ter final, ou pouco se modificam, ao passo que a sociedade avança freneticamente. Por que, então, o mundo se transforma, mas a humanidade continua em sua sina de repetição demoníaca de determinadas celeumas? Vivemos um momento crítico e outros parecidos se estabelecerão em nossas vidas continuamente, pois como já dizia um dos nossos maiores nomes da música, o “tempo”, o “tempo não para”.

 

Quer saber mais? Leia o livro na íntegra. 

Êxodos – Travessias Críticas (Brasil, 2018)
Autor: Leonardo Campos
Editora: Vento Leste – Trilogia do Tempo Crítico
Páginas: 158.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais