Home Diversos Crítica | Uma Princesa de Marte, de Edgar Rice Burroughs

Crítica | Uma Princesa de Marte, de Edgar Rice Burroughs

por Ritter Fan
637 views

estrelas 3

Em 1912, portanto há pouco mais de um século, no mesmo ano que criou Tarzan, provavelmente seu personagem mais famoso, o prolífico e muito imaginativo escritor americano Edgar Rice Burroughs criou John Carter. Na verdade, Carter e Tarzan não são lá muito diferentes entre si. As duas histórias têm, como premissa básica, a noção de “um estranho em terra estranha”, sendo que Tarzan é um humano criado por gorilas em meio à selva africana enquanto que John Carter é um humano transportado para Marte, tendo que lidar com seres estranhos.

uma princesa de marte im desO interessante é que, ao passo que Tarzan foi adaptado incontáveis vezes para televisão e cinema, John Carter permaneceu, esse tempo todo, preso às páginas dos livros e, mais recentemente, alguns quadrinhos. E isso apesar de ter amealhado, ao longo desses 100 anos de existência, uma legião de fãs muito fiéis. Por um lado, a qualidade interplanetária do livro que inaugurou a série baseada no personagem – Uma Princesa de Marte – talvez tenha sido a principal razão de pouquíssimo aproveitamento da história. Por outro, porém, constatamos, historicamente, que personagens “interplanetários” como Flash Gordon foram explorados nas telonas e telinhas por diversas vezes, sem cerimônia. Não sei exato o que levou Uma Princesa de Marte a ficar parado, portanto.

De toda forma, esse livro é considerado como uma grande contribuição ao gênero da ficção científica, tendo influenciado diversos outros autores, como Ray Bradbury e Arthur C. Clarke. Aliás, o livro mesmo foi inspirado pelo trabalho de observação astronômica do italiano Giovanni Schaparelli, de 1877, que, pela primeira vez, identificou os famosos canais de marte que levaram à ideia ficcional de que o planeta teria sido habitado por seres inteligentes.

Com isso na cabeça, Burroughs criou um universo riquíssimo em que um ex-soldado, na época da Guerra Civil americana, é misteriosamente transportado para Marte (Barsoom, na língua local) e lá entra em conflitos tanto com os tenebrosos e violentos – selvagens mesmo – marcianos verdes de quatro braços, como com os marcianos vermelhos, muito parecidos conosco. John Carter, em vista da gravidade de Marte, é mais forte do que o normal, podendo matar enormes inimigos com apenas um soco e, além disso, consegue pular alturas incríveis. Esses poderes, aliados à sua paixão pela princesa marciana do título, Dejah Torris, o levam a liderar uma rebelião, já que o planeta (que está morrendo) vive em constante situação de guerra civil, com as cidades de Helium e Zodanga, dos marcianos vermelhos, se estapeando o tempo todo e os marcianos verdes selvagens também brigando entre si e, sempre que podem, também contra os vermelhos.

Apesar do heroísmo puro de Carter, suas ações são basicamente movidas por egoísmo. Ele quer a princesa a todo custo, nem que para isso seja necessário matar toda a população do planeta. Aliás, Carter não perdoa ninguém e, com a mesma facilidade que salva alguém, mata outras dezenas de pessoas sem nem tentar negociar um acordo antes. Por exemplo, ao saber que para ter a mão da princesa ele precisaria matar o príncipe de Zodanga, ele nem pestaneja e começa a bolar um plano para alcançar esse objetivo.

O mérito de Uma Princesa de Marte, porém, está na febril imaginação de Burroughs. Sua descrição dos marcianos, dos canais, dos aparelhos de sustentação da atmosfera, das naves, das cidades e dos monstros é de uma beleza e detalhismo impressionantes, especialmente levando em consideração a época em que a obra foi escrita. Fica fácil ver o legado de Burroughs em suas impressões digitais marcianas deixadas em diversas obras ao longo das décadas subsequentes até hoje em dia, sejam elas literárias ou audiovisuais. É como se o autor tivesse criado quase todos os clichês da ficção científica fantasiosa, o que, arriscaria dizer, não é algo muito longe da verdade.

Mas, devo confessar que a execução da imaginação de Burroughs deixa muito a desejar. Em outras palavras, o livro sofre muito por ser simplesmente mal escrito (pronto, falei), com explicações detalhadas em um momento e, em outros, um frase – ou só algumas palavras – para contar toda uma batalha, toda uma situação. Além disso, Burroughs vagarosamente constrói situações na primeira metade do livro que permitiriam a expansão em várias obras. No entanto, do nada, ele resolve fechar todas as pontas soltas de uma hora para outra, sem maiores cerimônias. Tudo bem, imagino que Burroughs não contava com o sucesso que o levaria a escrever 10 continuações, mas daí a, por exemplo, inventar o tenebroso e forçadíssimo epílogo de Uma Princesa de Marte, que vem do nada e se resolve em questão de duas páginas da maneira mais simplista possível (e, ainda por cima, depondo contra seu próprio personagem, tão inteligente nas páginas precedentes e tão burro no final), há uma grande diferença. O livro teria se beneficiado de um bom editor, que pudesse extirpar algumas partes que simplesmente não adiantam a trama e só funcionam para forçar Burroughs a arrumar encerramentos completamente artificiais e que não fluem bem.

Ainda iria além, talvez, e diria que, mesmo com uma eventual edição profissional, o livro deixaria muito a desejar em qualidade. Quem sou eu para criticar Burroughs, mas Uma Princesa de Marte  é fraco demais em estruturas básicas, como desenvolvimento de personagens e suas respectivas interações e motivações. Todos são volúveis, mudam de ideia a toda hora e tramas paralelas são introduzidas – e mal desenvolvidas – a cada capítulo. Grande parte, porém, dos problemas detectados na obra advém do fato de ela ter sido originalmente serializada e, protanto, publicada “aos pedaços” na revista The All-Story, sob o título Under the Moons of Mars. Uma estrutura assim normalmente sofre com desequilíbrios entre um capítulo e outro e é isso que vemos nesse trabalho de Burroughs, apesar de a versão que li ter sido o romance compilado e efetivamente alterado a partir da serialização.

Sim, sei e reconheço que Uma Princesa de Marte é um dos mais ilustres exemplos de pulp fiction, aquelas publicações baratas do final do século XIX até meados do século XX, com conteúdo duvidoso. Muitas ideias e personagens perenes no imaginário popular foram criados nessa época (John Carter é apenas um, mas há, também, Buck Rogers, Doc Savage, Flash Gordon, Zorro, O Sombra e uma infinidade de outros) e esses livros nada mais eram do que uma espécie de continuação do gênero teatral das chamadas well-made plays, peças que usavam personagens padrão, clichês mesmo, com finais extremamente previsíveis, em produção massificada. No entanto, mesmo considerando isso tudo, Uma Princesa de Marte parece um repositório de brilhantes ideias soltas jogadas em um folha de papel e arranjadas de uma maneira minimamente razoável.

Sei que talvez esteja cometendo um pecado ao ressaltar as falhas dessa obra, mas uma coisa precisa ficar muito clara: nada do que disse ou possa vir a dizer apagará ou sequer reduzirá a importância de Uma Princesa de Marte para a literatura de ficção científica. Afinal, o gênero deve muito a essa obra não tão bem escrita. Isso ninguém pode tirar de Edgar Rice Burroughs e não há como não respeitar um autor desse naipe.

Uma Princesa de Marte (A Princess of Mars – 1912)
Autor: Edgar Rice Burroughs
Editora original: A.C. McClurg
Editora no Brasil: Editora Aleph (a mais recente)
Tradução: Ricardo Giassetti
Páginas: 272

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais