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Entenda Melhor | Humberto Mauro e o Cinema Brasileiro

por Luiz Santiago
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Sabe-se que em boa parte de sua história, o cinema brasileiro funcionou em ciclos, principalmente a partir da vitória das fitas hollywoodianas sobre as primeiras produções nacionais em meados dos anos 1910. A Era de Ouro do cinema brasileiro (1896 – 1914), com seus filmes “criminais” e “cantantes”, foi interrompida pela enxurrada de ficções dos estúdios americanos, resultando na primeira grande crise do nosso cinema.

Nos anos 1920 e 1930, os Ciclos Regionais foram a base de muitas (e relevantes) produções cinematográficas em nosso país. Em cidades como Campinas (SP), Cataguases (MG) e Recife (PE), realizadores pioneiros produziram filmes de grande valor para a História do nosso cinema. Infelizmente, parte dessas obras perdeu-se em incêndios ou foram deterioradas pela má conservação durante os anos. Desses ciclos regionais, o de Cataguases é hoje lembrado pelo seu principal representante, o mais nacionalista de todos os cineastas brasileiros, o mineiro Humberto Mauro.

O cineasta realizou cinco filmes durante o Ciclo de Cataguases, três na Cinédia de Adhemar Gonzaga, dentre eles, sua obra mais conhecida: Ganga Bruta, 1933; dois com a atriz e produtora Carmen Santos, com destaque para Favela dos Meus Amores (1935), sua maior bilheteria e Cidade Mulher, de 1936. Mas é claro que o diretor também assinou outras obras memoráveis do nosso cinema, como O Descobrimento do Brasil (1937), Argila (1942), Canto da Saudade (1952; filmado no estúdio Rancho Alegre, criado pelo próprio Humberto Mauro) e Carro de Bois (1974), seu último filme.

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Braza Dormida (1928), Tesouro Perdido (1927) e Lábios Sem Beijos (1930).

Em 1936, um ano antes do golpe varguista do Estado Novo, o Ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema, criou o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), entregando a direção do novo órgão ao antropólogo Edgard Roquette-Pinto (que ficaria no cargo até 1947). Neste mesmo ano, o diretor Humberto Mauro foi convidado para fazer parte do Instituto, a fim de produzir obras de “orientação educacional”. Com sua liberdade criativa assegurada por Roquette-Pinto, Mauro dava início a uma longa permanência no INCE (1936 – 1967), período em que dirigiria 357 filmes, todos de caráter nacionalista, dentro das propostas do órgão do governo.

Uma das séries e sequências que Mauro dirigiu para o INCE foi a Brasilianas (uma alusão às Bachianas de Villa-Lobos, também funcionário do INCE, como consultor musical), onde propunha um olhar para o cotidiano campesino, com uma ponta de nostalgia e inocência. Esses curtas-metragens traziam canções populares como trilha sonora e a imagem, nesse caso, era a representação da situação criada pela música ou pelo poema musicado, como é o caso de Meus Oito Anos (1956) e A Velha a Fiar (1964). Antes, porém, de dedicarmos algumas linhas a este filmes, vale fazer uma breve abordagem analítica rápida sobre o cinema de Humberto Mauro.

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Ganga Bruta (1933), Favela Dos Meus Amores (1935) e Cidade-Mulher (1936).

Verdade seja dita: é o caráter escrupulosamente fotográfico de Humberto Mauro que chama a atenção do espectador. No decorrer dos anos, sua câmera tornou-se uma observadora onipresente da topografia interiorana, dos espaços menores dos sítios e fazendas, das casas e do trabalho no campo. Os filmes do diretor feitos para o INCE possuem essa característica de louvor ao espaço campestre, da relação do homem com a natureza que está em toda parte e que torna tudo mais humano — em oposição, por exemplo, ao concreto da cidade e seu ritmo frenético, que corrompe o homem, como podemos ver em seu Lábios Sem Beijos (1931), por exemplo.

As imagens dos filmes de Humberto Mauro demonstram a estática do mundo retratado, quase uma confirmação da “vida besta” que Drummond lamentara em seu poema Cidadezinha Qualquer. Mas nesses filmes, a vida no campo é um idílio quase utópico, um resgate ou um clamor à raiz sertaneja que se perdera entre os motores e cofres das capitais. Afirmo isso, porque os “filmes educativos” de Mauro para o INCE são produtos de um Brasil que já primava pela máquina e que adentrava à sua era desenvolvimentista.

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O Descobrimento do Brasil (1936), Argila (1940) e Canto da Saudade (1952).

Entretanto, mesmo antes de 1956 (ano da posse de JK, o presidente do desenvolvimentismo), a vida no campo já deixara de ser o lugar ideal, uma Pasárgada almejada. O populismo de Vargas (1930 – 1945), a regular continuidade dada por Dutra (1946 – 1950), e o segundo governo Vargas, ápice de sua política industrial no país (1951 – 1954), demonstram que o Brasil via nas grandes cidades a alternativa do sucesso, o lugar ideal para a felicidade e a riqueza. Não é à toa que as chanchadas dos anos 50 explorarão o mundo citadino como alternativa concreta de sucesso. Em boa parte dessas comédias carnavalescas (bem como nos filmes de Mazzaropi, também surgidos no início dos anos 50), a cidade é a saída e o desejo do morador interiorano — com as sempre bem-vindas exceções, claro.

Na concepção ideológica, Humberto Mauro foi a voz dissonante de um Brasil selvagem; na estética, a exatidão do ângulo, a beleza da montagem e virtuosa constituição dos planos. A forma interna dos filmes do cineasta mineiro lembra certas películas de William Wyler e John Ford, tanto em sua obra-prima, Ganga Bruta, como também no primoroso Engenhos e Usinas (1955).

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Fileira da frente: Alex Viany, Dona Bêbe (esposa de Mauro) e Paulo Emílio. Linha de trás: David Neves e Humberto Mauro (1975).

Se Limite (1930), de Mário Peixoto, alcançou popularidade impensável — como um legítimo filho das vanguardas europeias –, toda a filmografia de Humberto Mauro se ressentiria da minguada popularidade, apesar de se tratar de produtos fílmicos de qualidade tão boa quanto a do lendário filme de Peixoto. Entre a estética manipuladora e realista de Robert Flaherty e a negação do “espetáculo de estúdio” de Jean Vigo, Mauro dirigiu filmes — fora e dentro do INCE — que abordavam a vida em seus mais variados momentos, explorando todo o espaço disponível para a lente da câmera, estendendo uma cena específica o tempo necessário para que o espectador fosse tocado pela realidade mostrada, embora não fosse exatamente a sua. Nesse “tecer a vida” como um fio durável na tela, até que se torne marcante para quem o vê, o curta-metragem A Velha a Fiar se impõe como o grande marco oficial.

O filme tem uma montagem operística, com abertura quase didática antes do tema principal. A câmera do diretor de fotografia José A. Mauro apresenta cada um dos elementos que futuramente entrarão em ação, enquanto a velha fia ininterruptamente em sua roca. A canção popular, interpretada pelo Trio Irakitã, ganha um significado muito além da simples cadeia de vida que “faz mal” aos outros, em sua convivência.

Na abertura da obra, uma melodia clássica em allegro apresenta o espaço cênico ao espectador, que chega como um convidado, entrando pela porteira de uma propriedade. Os planos seguintes mostram-nos a vida de trabalho dos homens e mulheres do sítio e a languidez dos animais: uma gata amamentando um filhote, um rato correndo ao redor de um saco de trigo, uma aranha tecendo sua teia, etc.. Quando duas personagens, em perfeita sincronia, saem do campo de visão da câmera, um corte nos leva para a sala de uma casa, onde uma velha fia imperturbável. A música que se segue, faz-nos entender a velha como uma das Moiras gregas (que tecem, alongam e cortam o fio da vida).

Se tudo o que vimos na abertura do curta parecia imóvel demais, agora, todos os elementos ganham vida e passam a interferir na existência um do outro, sempre voltando à velha, aquela que tece o tempo e possibilita toda a cadeia de eventos.

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Humberto Mauro filmando Carro de Bois (1974), seu último filme.

Conforme a música cresce, a velocidade da montagem é acelerada e também a quantidade de ângulos usados por Mauro para dar conta do mesmo espaço, diversas vezes fazendo-os parecer inéditos. A velha, por exemplo, aparece em duas sombras diferentes e é filmada em plongé e contra-plongé, na diagonal, em plano geral, médio, primeiro e primeiríssimo planos, além de ser apresentada em zoom, pela primeira vez. Além disso, o uso de imagens estáticas e animação se liga muito bem à impressão documental obtida no início. É como se a quebra de gênero não existisse: o espectador aceita os cartoons como parte necessária e real do todo, tal a noção específica de Humberto Mauro sobre onde colocar cada pedaço de fotograma.

O uso do som, ao mesmo tempo em que se pretende realista (como a representação do miar do gato, o mugido do boi ou o correr da água), aparece como ingrediente artificial, já que é produzido em estúdio. Entretanto, a veia de humor que esses sons ressaltam apaga toda a noção de artificialidade, integrando-se de forma acusmática e precisa às cenas, salientando o já citado caráter operístico e de quebra de gênero. Percebe-se, portanto, que A Velha a Fiar é um curta-metragem múltiplo de posições estéticas, ritmos, e significados, mas que não perde nada de sua característica infantil.

O mundo da infância ou o sentido ingênuo e pueril das coisas é elevado às alturas por Humberto Mauro na sua adaptação do poema de Casimiro de Abreu, no nostálgico e muito emocionante Meus Oito Anos. Tão polissêmico quanto A Velha a Fiar, Meus Oito Anos traz à lembrança não só a vida em um país que não tinha o relógio e a agenda como indispensáveis, mas de um homem que, ao olhar a cidade onde nasceu e cresceu, tem um encontro consigo mesmo e não se contém de emoção ao lembrar do que era e ver no que se tornou.

O uso do raccord e do chicote servem para aprimorar a continuidade visual e apresentar o flashback ao espectador. Mas aí reside o erro de Mauro, nesse filme — algo que, por “armadilha de roteiro”, acaba se repetindo em curtas da época, cuja música de acompanhamento apresenta situações muito repetitivas e pouco dinâmicas (Casinha Pequenina, por exemplo), ou mais difíceis de serem transmitidas para a tela em pouco tempo ou com a tecnologia da época (Chuá, Chuá, por exemplo): a câmera deslocada em super-velocidade em certa direção, deixando a cena fora de foco e ligando-se imediatamente a outra cena, incomodando o espectador e artificializando demais o filme, que ainda tem o demérito de “dar a entender” que vai acabar diversas vezes, mas não acaba. É claro que a direção de Mauro não está estritamente ligada a esse problema de continuidade musical, mas o produto por ele assinado sofre as conseqüências da composição. Vale dizer, todavia, que os problemas técnicos do curta não estragam sua força emotiva nem sua beleza estética e fotográfica (novamente assinada por José A. Mauro).

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O mundo infantil do menino é representado com belas imagens de brincadeiras e paisagens, um deleite para os olhos de quem, pelo menos um período na infância, passou no campo uma temporada. A “volta para a realidade” é o momento em que o espectador se dá conta de que aquela “neve d’antanho” derretera-se há muito, e então, o propósito emotivo do filme encontra fértil o campo para se fixar.

O Brasil de Humberto Mauro ainda vive na alma de umas poucas pessoas e em recônditos lugares pelo nosso imenso território — vale citar aqui o farsesco documentário Terra Deu, Terra ComeA realidade desse “Brasil selvagem” tão maureano é repleta de uma cultura intocada, livre de estrangeirismos e criações genéricas. Hoje, em pleno andar renovado de nosso cinema, penso ser oportuno o olhar para as nossas raízes cinematográficas. Ali se encontram os ingredientes que compõem nossas películas e as tornam particulares no cenário latinoamericano. Humberto Mauro, contudo, ainda passa despercebido pelos olhares de muitos estudiosos e até do público que, em certa medida, aprecia o cinema nacional. É uma pena.

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