O título do filme de Boca Migotto parece uma direta referência ao icônico texto de François Truffaut sobre o cinema francês que precede a nouvelle vague: Uma certa tendência do cinema francês. O escrito do diretor francês é um estudo crítico da realidade e do passado do cinema realizado na França ao longo dos anos 1950. Existe, ali, uma posição crítica de Truffaut perante as realizações cinematográficas de seu país. Além de olhar para o passado com uma posição crítica, o cineasta também parece indicar possíveis caminhos para o futuro do cinema francês. É um olhar historiográfico, ativo, capaz de analisar com respeito e devido poder analítico as produções realizadas em seu país. É isso que engaja o leitor e o mantém preso: o conflito, a autocrítica, o retrospecto histórico para além da nostalgia. É isto, também, que torna o documentário de Boca apenas uma ode nostálgica que não decide se é um exercício historiográfico ou um recorte pessoal, subjetivo.
O filme por si só é ambicioso: tenta dar conta de quarenta anos de história do cinema gaúcho. São inúmeros entrevistados, desde críticos, passando por realizadores, até músicos e atores. O filme basicamente alterna entre talking heads e trechos de filmes citados pelos entrevistados. A respeito da construção da mise en scène dos planos de entrevistas, cabe dizer que existe, ali, uma precisão formal extremamente apurada. Os enquadramentos parecem meticulosamente construídos e a fotografia, quase sempre dando destaque à luz do dia, fazem com que haja um grande potencial de prazer formal perante às imagens dos entrevistados. O cenário do filme, um conhecido bar de Porto-Alegre, é o local ideal para as entrevistas. Em tom leve, descontraído, as entrevistas acontecem enquanto funcionários do estabelecimento estão realizando as últimas tarefas antes da abertura do local. É interessante como o diretor não se preocupa com o staff do bar ao fundo, dando ainda mais naturalidade aos registros de seus personagens.
No geral, estamos diante de boas entrevistas. Os convidados são desenvoltos e as entrevistas seguem um fluxo interessante. O grande problema, aqui, é que as entrevistas todas parecem contar uma mesma história: a subjetividade dos entrevistados parece não existir. Por vezes, os depoimentos se repetem e os talking heads se tornam monótonos. Essa linha narrativa estável não funciona em prol do diretor. A falta de conflito pesa muito em Um Certo Cinema Gaúcho: todos os personagens parecem concordar em quase absolutamente tudo. O único ponto de conflito estabelecido no filme é rapidamente suprimido, como se Boca Migotto tivesse receio de tensionar, por pelo menos uma vez, uma história sem nenhum crescendo narrativo. O embate aqui deixado de lado, poderia ser ponto central do filme: uma turbulenta passagem de bastão entre gerações do cinema gaúcho. Os mais jovens, com uma pujança incontrolável por ganhar destaque no cenário, atacam seus imediatos antecedentes, acusando-os de uma linguagem clássica, nada inventiva. Em resposta, um dos realizadores já consolidados, aceita críticas, com um porém: que digam os porquês, que não apenas ataquem. Esse conflito não dura mais do que cinco minutos no filme, mas é, definitivamente, o trecho mais marcante.
Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre surge, como disse o próprio diretor, de sua pesquisa histórica enquanto parte de um programa de pós-graduação. O filme, no entanto, não parece ser exatamente um recorte historiográfico. Seu olhar para o passado não ocorre por meio de uma visão crítica dos acontecimentos: é como se o passado fosse uma construção perfeita, inalcançável. Não há um olhar analítico para a história do cinema gaúcho até aqui – quem faz isso, em breves momentos do filme, são alguns convidados. Mas a mensagem que fica não é essa. Isso não seria nenhum problema caso o filme se assumisse como um recorte subjetivo, de caráter emocional do diretor (em Retratos Fantasmas, por exemplo, Kléber Mendonça faz isso com maestria). Boca Migotto parece perdido em um estranho limbo no qual possui medo de assumir como relato pessoal aquilo que de modo nenhum é um exercício historiográfico. É esse olhar crítico para o passado que seria capaz de dar algum tipo de direcionamento para o futuro do audiovisual gaúcho. O artista visual Hélio Oiticica é um dos grandes defensores do olhar para o antes para construir o depois; um passado a-crítico de nada ser para uma história do hoje e, consequentemente, para o amanhã.
Um polêmica levantada em coletivas de imprensa e nos corredores do Festival de Gramado é a da ausência da presença de realizadores negros no filme de Boca Migotto. O recorte desenhado pelo diretor realmente deixa de lado os profissionais negros que igualmente constroem esse cinema gaúcho que o diretor diz ser amante. Na própria retrospectiva historiográfica, o cineasta Odilon Lopez, importante nome do cinema feito no Rio Grande do Sul nos anos 1970, é citado poucas vezes – na maioria delas para fazer referência ao longa-metragem Um é pouco, dois é bom. Infelizmente, o cinema desenhado por Boca Migotto é um cinema branco, uniforme, sem representatividade.
Por fim, relembrando o texto de Truffaut, o futuro só poderá ser construído através de uma visão crítica do passado. Foi assim com a nouvelle vague: Godard só se desenvolveu como tal ao conseguir compreender todo o tipo de linguagem cinematográfica que ele criticava – no caso, o cinema clássico. O olhar para o futuro do cinema gaúcho, para a suposta historiografia de Um Certo Cinema Gaúcho, se define apenas como difícil. Sem nenhuma proposta estética, sem nenhum direcionamento: apenas difícil.
Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre – Brasil, 2023
Direção: Boca Migotto
Roteiro: Boca Migotto
Duração: 107 min.
