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Crítica | Luta de Classes

Spike Lee moderniza um clássico.

por Kevin Rick
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Spike Lee sempre se mostrou um cineasta disposto a confrontar tradições e a se arriscar em territórios instáveis, e em Luta de Classes (Highest 2 Lowest) ele escolhe revisitar um clássico, o Céu e Inferno de Akira Kurosawa, por sua vez baseado no livro King’s Ransom da série policial 87th Precinct do americano Ed McBain, para transpor sua parábola moral para o coração de Nova Iorque. O gesto é ousado, mas também revela as tensões de um diretor veterano que alterna bons momentos com escolhas menos inspiradas. O filme funciona como espetáculo urbano, carregado de símbolos, citações visuais e comentários sociais, mas sua força estética nem sempre encontra equivalência na construção dramática, resultando em uma obra que fascina em alguns instantes e decepciona em outros.

A história de David King, magnata da música vivido por Denzel Washington, já nasce dividida em três blocos distintos. Primeiro, o dilema corporativo: a luta para recomprar as ações de sua gravadora e retomar o controle do império que ele fundou. Depois, a virada do sequestro, quando o filho do motorista é levado por engano e King precisa decidir se pagará ou não o resgate. Por fim, a perseguição de thriller urbano, em que o protagonista vai atrás do culpado com as próprias mãos. Cada uma dessas partes tem potencial, mas a passagem entre elas é irregular. O filme parece se reinventar três vezes, sem que uma camada alimente organicamente a próxima, o que gera a sensação de um mosaico mais desconjuntado do que coerente.

Isso enfraquece o drama. O dilema moral de pagar ou não pagar pelo filho de outro homem tem peso simbólico, mas nunca chega a gerar verdadeira tensão. Não há urgência palpável na espera pelo telefonema, nem suspense efetivo na entrega do dinheiro. O que Spike faz, em vez disso, é apostar em símbolos: as sequências do metrô, as festas de rua, as referências de basquete que atravessam a montagem, os quadros de artistas negros contemporâneos que adornam a cobertura de King. Tudo isso confere ao filme um recheio cultural forte, quase como um ensaio sobre a cidade e suas camadas de excelência negra. Mas essa escolha também retira energia do núcleo dramático: admiramos os quadros, os sons, a Nova Iorque pulsante, mas raramente nos sentimos presos ao destino dos personagens.

A atuação de Denzel Washington sintetiza essa ambiguidade. É um ator monumental, dono de presença e magnetismo inegáveis, mas aqui parece entregar uma caricatura de si mesmo. Seu David King é histriônico, cheio de maneirismos, gestos exagerados que lembram greatest hits de sua própria carreira. Falta naturalidade, falta a densidade de um homem dilacerado por um dilema moral. Denzel parece se divertir mais do que se aprofundar, e isso acaba prejudicando o impacto do personagem, que pede ambiguidade, não arroubos. Jeffrey Wright, ao contrário, é quem segura a força dramática, trazendo humanidade silenciosa ao motorista que vê o filho em perigo. Já A$AP Rocky, como Yung Felon, dá um frescor curioso ao filme: sua figura é ao mesmo tempo admiradora e algoz, um reflexo da juventude que idolatra mas também odeia o ídolo distante.

Ainda assim, há um prazer em assistir a Spike Lee soltar a câmera pelas ruas de Nova Iorque. A sequência do metrô, com a mochila cheia de dinheiro passando de mão em mão em meio a um desfile, ou então o confronto entre os dois personagens principais no estúdio, são momentos que realçam a ótima condução do diretor. Do mesmo modo, os shots de ruas, murais, quadras de basquete e músicos transformam o filme em um retrato vivo da cidade, quase um documentário paralelo sobre cultura, festa e identidade. Nessas horas, o cineasta mostra sua identidade, lembrando que sua assinatura não está apenas na narrativa, mas no modo como filma o espaço urbano como personagem.

No fim, Luta de Classes é um filme que diverte, que traz boas ideias visuais e que tem coragem de adaptar um clássico para outro contexto, mas que perde muito em consistência narrativa e em impacto dramático. A estrutura em blocos não se integra bem, a tensão se esvai e a performance central de Denzel, ao invés de elevar a obra, a torna mais ruidosa e menos crível. Ainda assim, há vigor em sua dimensão simbólica, há beleza em ver Spike Lee transformar a cidade em palco e há interesse em como o filme dialoga com questões de poder, dinheiro e pertencimento. O resultado é irregular, mas não desprovido de valor: uma obra que fascina no olhar, mas que deixa a desejar no coração.

Luta de Classes (Highest 2 Lowest) – EUA, 2025
Direção: Spike Lee
Roteiro: Alan Fox
Elenco: Denzel Washington, Jeffrey Wright, Ilfenesh Hadera, ASAP Rocky
Duração: 133 min.

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