Depois que a WildStorm foi adquirida pela DC Comics, Warren Ellis e Bryan Hitch ocuparam-se de criar Authority, um supergrupo derivado de Stormwatch que Ellis já haviam encabeçado ainda na época da independência do selo, montando uma equipe secreta liderada por Jenny Sparks, personagem criada por Ellis. Essa versão original de Authority reprisa a liderança de Jenny Sparks e adiciona outras criações anteriores de Ellis, mais precisamente o casal paródia do Superman e Batman formado por Apolo e Meia-Noite e o metahumano que ganha poderes variados a partir de sua conexão com cidades Jack Hawksmoor, além de Rapina, versão da Mulher-Gavião que é criação de Jeff Mariotte e Ron Lim, além da segunda Engenheira e da versão holandesa do Doutor, estes criados por Ellis e Hitch especificamente para a nova HQ.
A Fase Ellis/Hitch à frente de Authority durou por 12 edições, ou três histórias de quatro números cada, além de duas histórias conectivas, Planetary/Authority: Dominando o Mundo e Réquiem, publicada na HQ comemorativa WildStorm: A Celebration of 25 Years. Em pinceladas amplas, Authority é uma versão mais realista – se é que podemos chamar assim – da Liga da Justiça. Não realista em termos de poderes, de pseudociência e de elementos nessa linha, mas sim nas consequências macro do que grandes ameaças globais representariam de verdade se elas não fossem sanitizadas para consumo geral pela DC Comics e, claro, também pela Marvel. Se Darkseid ataca a Terra e a Liga da Justiça precisa enfrentá-lo com todos os seus pesos pesados, o mais comum é vermos os heróis lutando praticamente sem danos colaterais que não seja a destruição de alguns prédios aqui e ali, sempre com o cuidado de dizer que a evacuação já havia sido feita ou coisa do gênero. As perdas humanas são escondidas na medida do possível e é nesse aspecto que Authority é mais realista, mais visceral, menos preocupada com a higienização das páginas para diminuir o choque, isso e na forma como os personagens são trabalhados, ou seja, com uma pegada menos super-heróica padrão e mais humana, com todas as suas falhas.
A própria postura da equipe, verbalizada diversas vezes por sua líder Jenny Sparks, o Espírito do Século XX, que parou de envelhecer em seus 20 e poucos anos e tem poderes de manipulação de energia elétrica, é de minimizar baixas, não de eliminá-las, pelo que a morte de milhares justifica-se plenamente para evitar-se a morte de milhões. Frio, mas lógico. Terrível, mas uma escolha que desafia outras proposições e evita o “plano sensacional de último minuto para evitar a tragédia”. E é claro que, nessa toada, Authority pode ser vista como uma paródia de grupos como a Liga da Justiça e outros não só por seus integrantes serem, no frigir dos ovos, versões dos super-heróis mais conhecidos, como também uma equipe que funciona por seus próprios méritos, mesmo que o paralelismo com os personagens mais profundamente sedimentados no imaginário popular seja inevitável e, diria até, desejável para funcionar como contraponto.
E, para deixar isso bem claro logo na largada, O Círculo, o primeiro arco de Ellis e Hitch no comando de sua equipe, usa como ameaça um super-terrorista que, a partir de uma ilha remota, comanda uma legião de super-humanos clonados que dizimam Moscou em segundos como um primeiro passo para a subjugação global. Não só a premissa é básica, fácil de entender e de se compadecer, como o grande vilão, trazido de Stormwatch, é Kaizen Gamorra, uma cópia do Mandariam clássico da Marvel Comics e, por isso mesmo, um estereótipo politicamente incorreto de orientais em geral e chineses em particular. Essa escolha é Ellis e Hitch sendo racistas ou é algo mais, talvez justamente uma forma de deixar bem evidente o ridículo da coisa toda, nossa mania incurável de caracterizar uma nação inteira – ou diversas nações – a partir de aspectos que a cultura ocidental sedimentou ao longo de décadas? Seja como for, o ressurgimento de Gamorra é a gatilho ideal para que o grupo Authority, recém-formado pelos esforços de Jenny Sparks e que tem como base uma nave orgânica e senciente que trafega “fora do espaço e tempo” e cuja origem não é revelada aqui ou em qualquer do arcos seguintes da dupla, surja para o mundo como uma “autoridade” supranacional que tem como objetivo lidar com essas mega ameaças.
No segundo arco, Alternaves, a ameaça é extradimensional e também vem do passado de alguns membros da equipe, especificamente de Sparks, com um universo paralelo em que humanos e alienígenas coexistem e que uma dinastia comanda o mundo de maneira extremamente violenta, mais uma vez querendo expandir sua dominação para a dimensão de Authority. E, finalmente, no terceiro arco, a ameaça é lovecraftiana, com um monstro espacial que, há bilhões de anos, usou a Terra como incubadora, mas que, em seu retorno, descobre que o plano deu errado, partindo então para corrigir o problema, o que significa, lógico, a erradicação da humanidade em uma terraformação drástica. Essa última história é antecedida da citada Réquiem que introduz o conceito de que Jenny Sparks, por justamente ser o Espírito do Século XX, provavelmente não viverá para ver o século XXI, algo que obedece a uma lógica perfeita, ainda que teria sido mais interessante que essa abordagem tivesse começado mais cedo, diria até já no nascimento do grupo.
Seja como for, as três histórias são muito semelhantes em estrutura, ou seja, todas lidam com ameaças globais que destroem boa parte de algumas cidades do mundo, com Authority correndo atrás do prejuízo, mas compreendendo que baixas em quantidades colossais são inevitáveis, o que torna os integrantes da equipe talvez mais frios e distantes, uma característica que eu reputo, aqui, como positiva e não negativa. Mas, talvez com exceção de Rapina, cuja integração na equipe não acontece de verdade, com seu desenvolvimento sendo deixado de lado quase que por completo, todos os demais ganham abordagens que lhes dão personalidade e relevância. Sparks – eu não consigo não ver Constantine nela – é a líder inconteste, a cola que faz a equipe funcionar e a heroína capaz de tomar as decisões difíceis a todo o momento. A Engenheira, que trocou seus sangue por nove litros de nanotecnologia, não é apenas uma brilhante resolvedora de problemas técnicos, mas sim uma mulher em constante processo de autodescoberta, maravilhando-se ao descobrir do que é capaz. O Doutor é, na verdade, um hesitante xamã que luta para realmente compreender seu lugar no mundo para poder cumprir a missão passada de geração em geração de lidar com espiritualidade e magia. Jack Hawksmoor é o segundo em comando, com um conjunto de poderes tão estranho quanto vasto que chega a ser difícil descrever, e que, a cada edição, angaria a confiança dos demais membros da equipe. Finalmente, Apolo e Meia-Noite, talvez os dois mais populares personagens quando a primeira edição de Authority chegou às bancas americanas, têm uma dinâmica perfeita, cada um ecoando suas contrapartidas da DC Comics, com todos os floreios e exageros de Ellis que, claro, mantém sempre a relação amorosa entre eles em destaque.
Mas a escala dos eventos dos três arcos iniciais de Authority precisava de desenhos que realmente a levasse para as páginas dos quadrinhos. Brian Hitch tem um estilo limpo e super-heróico clássico de desenhar que eu muitas vezes tenho dificuldade de me acostumar, mas é inegável e invejável sua capacidade de lidar com eventos de larga escala sem se perder em imagens poluídas a ponto de nada fazer sentido, como acontece com a filmografia de Michael Bay, seu eu puder transpor esse comentário para o Cinema. Diria que, guardadas as devidas proporções, Hitch sabe lidar com o caos com a mesma ordem milimétrica do saudoso e inimitável George Pérez, ou seja, passando a impressão de frenesi, de tumulto, de preenchimento de espaços que, na verdade, é a materialização do mais absoluto controle sobre a arte. Nada fica fora de lugar no que Pérez faz e o mesmo acontece com Hitch, e isso quando ele usa páginas duplas ou splash pages ou quando estamos falando de apenas um quadro de uma página aparentemente comum. O artista vai de dentro da cabine de um caça à Jenny Sparks projetando seu rosto em eletricidade por toda uma cidade em um estalar de dedos e tudo faz sentido, tudo funciona dentro da lógica narrativa que ele estabelece quando comanda os quadros. Pode até ser que Hitch só desenhe rostos ou imóveis ou fazendo caretas extremas, mas mesmo nisso ele se destaca, já que toda a história ganha vida dinâmica com esses artifícios bem opostos. Em outras palavras, os exageros de Warren Ellis não encontram apenas sua materialização na arte de Bryan Hitch, mas sim uma espécie de abordagem all in, de apostar tudo e dobrar a aposta, mas sem que pareça que os dois estão em competição. Ao contrário, há uma impressionante harmonia criativa entre eles, uma harmonia caótica, naõ tenham dúvida, mas mesmo assim harmonia.
Authority, por Ellis e Hitch, é uma daquelas HQs seminais de troca de milênio que, ao lado de algumas outras, funciona como a representação máxima do amadurecimento do estilo noventista de criar quadrinhos e sua transformação em algo que finalmente iguala o estilo à substância. Como Jenny Sparks, que representa o Espírito do Século XX, esses arcos iniciais do supergrupo que ecoa/parodia/comenta/critica Liga da Justiça por todos os seus poros é como o Espírito dos Quadrinhos na Virada do Milênio. Se o que veio nos 25 anos seguintes foi uma evolução, cabe a cada um de nós julgar. De minha parte, acho que a indústria de quadrinhos não-mainstream ocidental – que é o que esse Authority é mesmo já debaixo da DC – avançou tremendamente nesse tempo, oferecendo mais variedade e mais propostas arriscadas e ousadas para saborearmos. Authority foi, apenas, uma primeira (e sensacional) peça nesse intrincado dominó.
Authority – Livro Um (The Authority – Book One – EUA, 1999/2000)
Contendo: The Authority #1 a 12, Planetary/Authority: Ruling the World #1 e Requiem, uma história de WildStorm: A Celebration of 25 Years
Roteiro: Warren Ellis
Arte: Bryan Hitch, Phil Jimenez
Arte-final: Paul Neary, Andy Lanning
Cores: Laura Martin, David Baron, Chris Garcia, Michael Garcia, Eric Guerrero
Letras: Ali Fuchs, Ryan Cline, Bill O’Neil, Robbie Robbins, Josh Reed
Editoria: Rachelle Brissenden, John Layman, Ben Abernathy
Editora original: WildStorm (DC Comics)
Data originais de publicação: maio de 1999 a abril de 2000
Editora no Brasil: Editora Panini
Datas de publicação no Brasil: fevereiro de 2016 (arcos 1 e 2), julho de 2016 (arco 3)
Páginas: 387