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Anti-Crítica | Dudão #1: Pipas no Campo e A Mentira

Você disse... "gibi de crente"?

por Luiz Santiago
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Às vezes, tudo o que o ser humano precisa é de um Dudão em sua vida. Sabe quando você está triste, cabisbaixo e nada dá certo? Sabe quando as coisas parecem andar para trás? Então você para e pensa: “nossa, como eu queria um Dudão aqui para me fazer feliz!“. Pois foi pensando nessa necessidade de mais Dudões na vida da população brasileira que eu resolvi trazer uma anti-crítica para a maior obra-prima já realizada na Nona Arte brazuca.

Criado pelo Pastor Eduardo Samuel Alves da Silva (Pastor Dudu, a gente viu o que o senhor fez aí, hein!) e publicado pela Editora Vida, Dudão é, obviamente, um personagem cristão, pensado para um trabalho de evangelização para crianças. Os valores que a revista passa são de retidão moral e comportamento disciplinado, tendo aqui e ali indicações bíblicas ou conceitos cristãos que abarcam um discurso mais apaixonado do protagonista diante de alguma coisa, levando à “moral da história“. Em 2020, a internet fez uma das coisas que ela fez de melhor: transformou esse esquecido e obscuro personagem em um astro dos memes… em determinadas bolhas.

Eu acompanho a jornada de Dudão desde esse renascimento e posso dizer que me divirto em Cristo desde que cheguei a este pequeno grande Missionário. Agora chegou a minha vez de transmitir a palavra. Com vocês, uma anti-crítica deste petardo nacional. Segurem-se pecadores! É chegada a hora de conhecer a primeira edição do nosso amado e necessário Dudão!

Contemplem a nossa ESTRELA.

Os desenhos de Dudão #1 são creditados a Jairo Grutes Alves da Silva (até onde eu apurei, irmão do Pastor Dudu, criador do Dudão) e Joel Alexandre Duarte. Não sei se eles também são responsáveis pelo letramento e aplicação de cores da revista, mas notem que inteligente o uso dessa fonte rechonchuda, amarela, para combinar com o Sol-de-ovo-frito e a cara de bolacha do nosso glorioso protagonista. O contraste entre o bairro residencial lá atrás e a folhinha de maconha em primeiro plano, indica claramente uma crítica dos desenhistas à opressão da sociedade burguesa, capitalista, cis, branca e hetero que impedem as pessoas de fazerem o quê? Olhem para a capa. A resposta está lá, do lado oposto da erva. Coincidência? Acho que não!

E no centro desse ambiente familiar está o nosso meninão. Com seus olhos-de-pênis e suas orelhas de boquinha de intestino grosso, Dudão é um gordinho gente boa que já tinha muita noção de um dos maiores prazeres da vida (o prato de pedreiro), o cabelinho repartido não em um, não em dois, mas em TRÊS lados (“Vaidade de vaidades, diz o pregador. Tudo é vaidade“), seu pezinho de plataforma petrolífera, sua chinelinha chechelenta (certeza que tem um grampo segurando a correia ali embaixo) e, claro, as pipas, um dos itens básicos do cotidiano de qualquer menino que cresceu nos anos 1990. Quem é Alex Ross perto de um capista como o dessa primeira edição de Dudão? Por que choras, Brian Bolland? Quem é Jack Cole na fila do pão?

Pipas ao Vento é a primeira aventura da primeira revista do Dudão e já nos traz a primeira entrada do CRENTE-VERSE, colocando na mesma cena o fedido e popularíssimo Smilinguido que, ardendo de inveja do varãozinho abençoado, vai e ataca-lhe covardemente as pernas. Na vida real, seria basicamente Malafaia atacando Cabo Daciolo. Desde o primeiro quadro — exemplo máximo de uso da proporção, com Dudão parecendo um boneco de borracha colocado na frente da FIESP… não… esse é outro Universo, tô confundido — vemos o missionariozinho com gigantismo quebrar suas próprias pipas porque recebeu picadas de formiga. Se fosse eu já vinha lançando um sonoro “puta que pariu, formiga maldita do caralho!“, mas Dudão jamais falaria isso! Dudão é um servo de Deus.

Para uma página que começa com “Vou me divertir a valer” e termina com “Não perturba o BARRIGÓDROMO” vocês têm que concordar comigo que há uma concisão narrativa e um sentimento de construção épica do enredo como nunca antes se viu na História deste país. Esse tratamento que aqui vemos inaugura uma recorrência nas HQs do Dudão, que são as “piadas de gordo“. O fato de o protagonista ser rechonchudo faz com que os coleguinhas endiabrados apontem isso o tempo todo, caçoando do menino. A página também mostra que, na Gangue das Pipas, muita coisa rolava solta. Ou vocês estão pensando que as crianças iam dar uma empinada, um relo, sem nenhum tipo de risco mortal?

Duas páginas depois, quando Dudão diz que não vai soltar pipa perto de uma rede elétrica (ouviram, crianças?), começa a versão PROIBIDONA da revista. Notem que Binho parece absurdamente feliz quando recebe o convite de Dudão para SEGURAR A PIPA e o corte para o quadro da segunda linha me fez gargalhar, já que mostra Dudão realmente mais acima, Binho mais abaixo e sem mostrar os braços. Mas nesse Universo existem muitos plot twists, vocês sabiam? A coisa começa na libido e termina na criminalidade, com o LOIRINHO MARGINAL roubando a linha do pobre Binho. O que me pega nessa parte do roteiro é que Dudão praticamente entrega o LOIRINHO MARGINAL nas mãos de Deus e espera a providência divina agir. Ele fica parado e só tem coragem de dizer “que pena!“. Cadê a pedrada na cabeça do ladrãozinho de linha alheia? Cadê os gritos de “pega ladrão?“.

Aqui, o CRENTE-VERSE apresenta mais uma grande subversão de expectativas. Dudão deixa de ser um personagem cristão e passa a representar uma divindade hindu invertida. Note o incrível efeito de deslocamento em velocidade que o menino ganha! Ele praticamente mostra a força e serventia de suas várias pernas, indo até o coleguinha zombador, impedindo que este morresse eletrocutado. O quadro do “eu bem que te avisei” é impagável (gente, e essas caras?) e a chegada dos pastores adultos no final do quadrinho acaba a graça de tudo, porque dão uma lição de moral que só poderia vir do mini-missionário Dudão, afinal de contas, ele que foi zombado e chamado de Bolacha o tempo todo. Vai aqui a minha crítica para essa escolha do artista, Rogerinho. E como não podia deixar de ser, o final nos traz pipas grátis para o Dudão, um verdadeiro presente divino.

Em A Mentira temos mais uma força maligna da natureza atacando o protagonista evangélico. Primeiro foram as formigas, agora, o gato com cara de hemorroidas. Eu não sei vocês, mas creio que ser acordado no susto, ainda por um gato pulando em cima da sua pança não é algo pouco enervante ou pouco dolorido não. Pelo visto, porém, Dudão já tinha intimidade com o Peludo, então o roteiro nos faz concluir que, nesse caso, tudo bem. O legal é que essa história começa na maior paz caótica de todas. Nós ficamos tensos, esperando acontecer algo que vá trazer a tentação da mentira para a vida do Vasinho nas Mãos do Oleiro, e logo somos recompensados por essa espera. O Diabo em forma de coleguinha do bairro aparece para contar uma mentirinha simples para nossa estrela, que tropeça numa pedra e bate a fuça no chão (vocês sabem que existe uma regra que diz que se você não rir de pessoas que tropeçam e caem, você comete abominação, né? Fica aí o aviso para os gentios). Mas Dudão está firme em seu propósito: ele vai para a Escolinha Dominical, onde aprende sobre… mentira, claro! Nosso roteiro aqui é coeso, tão pensando o que?

A história avança, e chegamos a uma página que é praticamente uma nesga de Piada Mortal. O autor nos apresenta o tema da história, que é marcado pelas crianças-Lúcifer contando “mentirinhas inocentes” para o Dudão e o Dudão caindo uma vez. Mas como ele não é trouxa, ele não cai uma segunda. Contudo… olhem o twist em Cristo vindo aí… da segunda vez, a coisa é real! Veja o caso do ataque do cachorro, que se resolve nessa página. O dono da fera (uma espécie de catioro de Chernobyl com olhar maligno) adverte Dudão, que vai se emputecendo. Ele até se desculpa com os meninos-Lúcifer, num momento de “comédia-séria-dos-erros” que o autor prepara para nós, e segue seu caminho para banhar-se no Grande Piscinão de Sal. No meio do caminho ele encontra o quê mesmo, igreja? Siiiiiiim! A ERVA DE SATANÁS disfarçada!!! Juntando o efeito dessa erva com a insolação que o Dudão estava sofrendo, o quadro final da página nos dá a impressão de que ele estava planejando cuidadosamente o afogamento dos meninos-Lúcifer, o que certamente daria um lindo testemunho. Infelizmente não é isso que acontece, embora a história tenha sim cenas de afogamento e o Dudão saia vitorioso em Cristo, aplaudido por todos aqueles que zuaram com ele. “Os humilhados serão exaltados“, não é, mores? Pois aí está.

Olha só quem está de volta! Ele mesmo, o menino Binho! Esta é a história que finaliza a revista, e basicamente é feita para o riso sofrido do leitor. Tudo aqui, para mim, é engraçado, como o fato de o Dudão tentar subir na árvore montando nas costas do Binho (gente, olha a diferença de porte entre esses meninos. Na boa, não tem como os desenhistas terem rascunhado isso sem intenção de zuar). Ou como o fato de o Dudão se tremer todinho depois que literalmente joga violentamente o gato para baixo (é o Peludo do começo da história anterior!). E como o fato de um bombeiro aparecer DO NADA: era Deus Ex Machina que faltava? Então receba!!!

Não tem como: isso aqui é tão ruim, mas tão ruim, que chega a ser maravilhosamente muito bom! E para terminar com chave de ouro, deixo a página final, sobre a qual não vou tecer nenhum comentário porque quero que vocês criem as suas próprias versões críticas a respeito dessa incrível e indizível narrativa dos quadrinhos. Agora me respondam: como não amar esse negócio?

Hein, gente? Hein? Hum? Hã? Hein?

Dudão é um MONUMENTO. Uma mescla de coisas muito ruins (roteiro e arte) somadas a uma mensagem muito boa sendo transmitida para o público. Dado o elemento cristão nada sutil das histórias; as constantes piadas de gordo que o roteiro traz; e toda a abordagem maniqueísta para as relações adolescentes no bairro do protagonista, não é nada difícil entender como esse projeto acabou virando um meme em 2020. Imagino que tenha servido perfeitamente ao seu propósito, nos anos 1990, mas já distanciados algumas décadas de sua criação e com um comparativo não só artístico, mas da própria mídia das HQs nacionais frente a esse produto, é quase impossível não abrir um lugarzinho no coração para colocar o Dudão entre os favoritos na categoria “é tão ruim que é bom” e rir com gosto de tudo o que se lê sobre ele.

E digo mais: o Dudão-Meme fez muito mais pelo cristianismo recentemente do que os pastores fundamentalistas que rondam por aí à caça de extremistas; e dos crentes-ódio que aparecem aqui no Plano Crítico para me mandar tomar em lugares misteriosos do meu corpo… ou me condenar a não sei qual terrível ciclo do Inferno. Então viva o Dudão!!!

Dudão (Brasil, 1992)
Publicação:
Editora Vida
Roteiro: Eduardo Samuel Alves da Silva
Arte: Jairo Grutes Alves da Silva, Joel Alexandre Duarte
35 páginas

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