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Crítica | 10.000 Manchas de Tinta: Memórias, de Jeff Lemire

A vertiginosa carreira de Jeff Lemire pelo próprio Jeff Lemire.

por Ritter Fan
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Tem pouquíssimos anos que eu quebrei uma barreira pessoal minha sobre leitura de biografias e autobiografias. Sim, havia lido algumas, mas de forma esparsa e, não raro, por obrigação. Somente há algo como três ou quatro anos é que passei a ler especialmente autobiografias de celebridades no final de uma longa carreira, para ter uma visão completa da trajetória da pessoa, ainda que obviamente carregada de um viés mais elogioso, como é quase inevitável nessas situações. No entanto, quando soube que Jeff Lemire, quadrinista que não tem nem 50 anos de idade, lançaria uma autobiografia ilustrada (não em quadrinhos, mas sim ilustrada mesmo) que colecionaria seus textos nessa linha que ele vinha publicando no Substack e que eu li esporadicamente, fiquei interessado e a razão principal é que ele é, para mim, um dos expoentes em sua arte dentre aqueles que começaram a carreira neste século.

Quando o livro foi lançado pela Dark Horse Books, divisão da Dark Horse Comics, surpreendi-me com suas vistosas dimensões de coffee table book – 23,5 cm por 31 cm – e com o papel brilhoso de alta gramatura, além da bela capa dura desenhada por ele. Folheando-o, notei de imediato a riqueza das ilustrações que vão de rascunhos nunca publicados e páginas de roteiro, passando por fotografias de Lemire e chegando em imagens finalizadas de capas e páginas de suas obras, além da republicação integral, em tamanho avantajado, de Ashtray #1, a primeira HQ que ele lançou na base da autopublicação lá atrás, em 2003. Feliz com a compra, deixei o livro momentaneamente de lado para terminar os demais que estava lendo.

Quando finalmente peguei a autobiografia para ler, notei que o ímpeto para sua publicação é a comemoração dos 25 anos de sua carreira, uma contagem estranha que vai de 1999 a 2024, sendo que, como disse logo acima, sua primeira publicação efetiva deu-se em 2003. Mas Lemire usa de licença poética e marca 1999 como sendo o momento em que ele, então no quarto ano da faculdade de cinema, “tinha totalmente se apaixonado por desenha quadrinhos novamente”, algo que ele havia largado no início de seus estudos. Tudo bem, não faz mal algum aceitar essa escolha do autor, já que não há ninguém melhor do que ele mesmo para nos dizer exatamente quando aconteceu aquele momento de virada, digamos assim, em sua vida, com ele passando a apostar mais e mais as suas fichas naquilo que amava desde criança, quando vivia com os pais em uma fazenda no Condado de Essex, em Ontário, Canadá.

Estruturalmente, a autobiografia segue a cronologia básica dos acontecimentos, com os anos servindo de subtítulos para cada título focado em uma ou mais HQs criadas por ele, a única exceção sendo o primeiro capítulo, Os Primeiros Anos, que cobre o período de 1995 a 1999 em que ele não tinha nada publicado e os dois capítulos focados nas duas grandes editoras dos EUA, já que ele trabalhou e ainda trabalha muito com elas, mas muito mais como roteirista para outros desenhistas, o que as coloca na prateleira de baixo do que ele faz conforme ele mesmo deixa claro, já que ele naturalmente prefere seus trabalhos autorais em que faz o roteiro e a arte, além de preservar os direitos com ele. Em termos de estilo de escrita, posso dizer, sem dúvida alguma, que Lemire é um roteirista melhor do que um biógrafo, já que ele elegeu uma abordagem mais informal com textos retirados do Substack e ampliados para o livro, mas que são constantemente repetitivos e sem fluidez.

Isso não quer dizer, de forma alguma, que a autobiografia é difícil de ler ou algo assim. Se alguma coisa, é o exato oposto. A simplicidade impera e essa simplicidade vem carregada daquela impressão de que faltou uma editorialização maior para criar uma cadência narrativa que evitasse textos quase estanques que muitas vezes parecem ter sido escritos em momentos bem diferentes. A autobiografia carece de harmonia, portanto, algo que é ironicamente tão presente nos quadrinhos de Lemire, como se ele tivesse escrito 10.000 Manchas de Tinta: Memórias (minha tradução direta do título em inglês) com má vontade e sem nenhum  tipo de aconselhamento específico por parte da Dark Horse Books, o que prova que nem sempre liberdade total é o melhor caminho.

Em termos de conteúdo, porém, é outra história e é nesse aspecto que repousa o valor da obra para além do capricho geral em sua concepção, da diagramação à escolha do papel e impressão. Lemire até pode escrever informalmente e relativamente pouco, mas ele não se furta de abrir o metafórico livro de sua vida, algo que fica especialmente claro quando ele conta sobre seu amor de infância pelos quadrinhos, sua luta para ir para a cidade grande de forma a ter alguma chance nessa profissão, seus trabalhos em restaurantes para pagar as contas, seu amor pela esposa Lesley-Anne Green, seu filho Gus, sua luta contra a ansiedade e depressão, e, finalmente, sua insistência – teimosia mesmo – em ver algo seu finalmente publicado, nem que isso signficasse gastar de seu próprio parco dinheiro e basicamente implorar para que livrarias e lojas de quadrinhos em Toronto aceitassem suas edições de Ashtray em consignação. A progressão desse ponto em 2003 e 2004 até ele ser laureado com o Prêmio Xeric, da fundação homônima fundada por Peter Laird, cocriador das Tartarugas Ninja) para ajudar quadrinistas em começo de carreira, levando-o à autopublicação de Cães Perdidos, até ele chegar ao primeiro trabalho efetivamente remunerado, Condado de Essex, que, então, o levaria para a Vertigo com O Ninguém e, dali em diante, para finalmente entrar na Primeira Divisão dos autores de quadrinhos, é um  relato fascinante e realmente cativante, algo que fica ainda melhor com as várias ilustrações que acompanham esses momentos.

Depois do capítulo dedicado a Sweet Tooth, sua narrativa ganha um tom um pouco mais repetitivo, algo natural para um autor então já estabelecido. Isso, no entanto, não o acanha e Lemire muito claramente demonstra suas reservas em relação a trabalhar para a DC Comics e para a Marvel Comics, fazendo críticas, mas também tecendo elogios de forma a não criar nenhum tipo de polêmica maior do que falar negativamente das duas maiores editoras dos EUA de maneira básica, sem aprofundar-se e sem mencionar nomes sob nenhuma luz que não seja menos do que elogiosa. Faz sentido essa abordagem, já que Lemire ainda trabalha para essas editoras e ele não tem intenção alguma de, com apenas relativos poucos anos de carreira, fechar portas tão relevantes para seu futuro. Mas o coração do que ele escreve está mesmo nas suas obras autorais, já que ele dedica capítulos inteiros, a seguir, a O Soldador Subaquático, Descender, Gideon Falls,  e Black Hammer, sem esquecer dos recentes Mazebook e Fishflies, até a série de TV que adaptou Condado de Essex chegando, finalmente, em The Static Age e Minor Arcana, no tempo presente.

Mesmo com os percalços abordados, o saldo de 10.000 Manchas de Tinta: Memórias, especialmente para quem aprecia os quadrinhos de Jeff Lemire, é muito positivo. Trata-se de um retrato honesto de um artista no auge de sua carreira que, não tenho dúvida alguma, ainda tem muito a oferecer. E sim, podem ter certeza de que, se Lemire retornar, daqui a algumas décadas, para uma segunda autobiografia, serei novamente o primeiro a adquiri-la e lê-la.

10.000 Manchas de Tinta: Memórias (10,000 Ink Stains: A Memoir – EUA, 2025)
Autoria: Jeff Lemire
Editora original: Dark Horse Books
Data original de publicação: 15 de julho de 2025
Páginas: 192

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