Home TVTemporadas Crítica | 1899 – 1ª Temporada

Crítica | 1899 – 1ª Temporada

O destino do Kerberos.

por Ritter Fan
2,6K views

  • Há leves spoilers.

É razoavelmente possível que quem estivesse esperando de 1899 um novo Dark tenha se desapontado com a aguardada nova criação do suíço Baran bo Odar e da alemã Jantje Friese para o Netflix, pois, na comparação, toda aquela estrutura narrativa desnorteadora e misteriosa que pontuou a tão badalada série que foi disponibilizada em três temporadas entre 2017 e 2020 inexiste aqui. Muito ao contrário, 1899 é – pelo menos nesta primeira temporada – consideravelmente clara tanto em relação a seus personagens quanto em relação à concatenação de raciocínio, chegando até mesmo a descambar algumas poucas vezes para o desnecessariamente didático. No entanto, tenho para mim que tanto a primeira quanto a segunda obra da dupla para o serviço de streaming oferece mais do que apenas seus mistérios e suas respectivas resoluções e certamente mais do que apenas a capacidade que os showrunners têm de despistar os espectadores e explodir suas cabeças.

E, em 1899, esse “mais” está fortemente presente em duas características imediatamente verificáveis da série que chamam e prendem a atenção mais do que o desenrolar de sua história, com Odar e Friese prezando muito por elas continuamente. A primeira é o que posso mais genericamente chamar de atmosfera e/ou ambientação, termo que uso, aqui, para reunir a direção de fotografia, a direção de arte, os figurinos e a trilha sonora debaixo de um guarda-chuva único. É absolutamente fascinante como a lugubridade e a melancolia de tudo o que se pode ver logo no primeiro episódio serve como uma ferramenta imersiva que começa com o poder imagético que o navio a vapor Kerberos – em sua jornada transatlântica de Southampton, no Reino Unido, para Nova York, nos EUA – evoca com sua cor preta quebrada apenas pela luz que emana das escotilhas e pela vermelhidão das enormes chaminés em um mar escuro e irrequieto, passa pelos personagens, normalmente em duplas, muito bem caracterizados de acordo com suas proveniências e chega aos diversos cenários mais relevantes, como proa, ponte, cabines, corredores e a sala das caldeiras.

A segunda é a coragem da produção da série em se recusar a homogeneizar a língua para uma só, seja ela qual for. Claro que o inglês acaba sendo a língua mais falada pelo fato de a protagonista Maura Henriette Franklin (Emily Beecham) ser britânica e Eyk Larsen (Andreas Pietschmann, egresso de Dark), o capitão do navio, apesar de alemão, falar bem inglês e, pelas circunstâncias da história, acaba fazendo dupla com ela, mas o ponto é que os showrunners priorizaram sempre as línguas nativas dos passageiros – além do inglês e alemão, fala-se proeminentemente dinamarquês, francês, espanhol, cantonês, português e polonês – que, vale dizer, são vividos por atores dos respectivos países, sem que o roteiro faça uso de artifícios padrão da indústria em situações como essa em que todo mundo “entenda um pouco” a língua do outro. Muito ao contrário, há diálogos inteiros que se tornam basicamente monólogos em sucessão pelo fato de um interlocutor não entender nada que o outro fala, algo que é lidado com simplicidade e elegância, levando os momentos em que isso acontece para um estilo de confessionário.

Como corolário da multiplicidade de línguas e como é comum em séries carregadas de mistérios, cada grupo de personagens tem suas características muito próprias e específicas e, claro, passados cheios de segredos que eles querem deixar para trás no Velho Mundo pelas mais diferentes razões, com alguns não sendo sequer quem parecem ser em um primeiro momento. Vê-se, muito claramente, um cuidado enorme no estabelecimento das variadas histórias pregressas de todos ali, mesmo que, no final das contas, elas não ganhem tanto desenvolvimento assim, tornando os personagens quase que arquétipos, com o foco permanecendo em Maura e Eyk e, algum tempo após a descoberta do navio Prometheus, desaparecido quatro meses antes e que dá pontapé inicial aos mistérios, também no misterioso Daniel (Aneurin Barnard) e no consideravelmente assustador garoto mudo (Fflyn Edwards), chamado apenas de “Garoto”, que parece ser o único sobrevivente da outra embarcação.

Gosto muito também da queima lenta dos roteiros sempre escritos ou co-escritos por Jantje Friese. Nada de correr com revelações, nada de empilhar mistérios. Há uma progressão natural e realmente gostosa de acompanhar a tudo o que é impossivelmente colocado na telinha para fazer o espectador quebrar a cabeça para entender o que está acontecendo até o ponto em que, lá pela metade da temporada, tudo fica consideravelmente claro (talvez até demais), com 1899 tornando-se, então uma esperta e visualmente deslumbrante amálgama marítima de O Show de Truman com O Vingador do Futuro, thrillers e suspenses psicológicos que vão de O Iluminado a Ilha do Medo com pitadas hitchcockianas polvilhadas aqui e ali, notadamente na construção dos mistérios e no uso de uma trilha sonora nervosa composta por Ben Frost (o mesmo de Dark) e, principalmente, claro, Matrix.

1899 não é Dark, mas não precisa ser e, muito sinceramente, é ótimo que não seja. Tudo bem que, se visto a uma distância grande o suficiente, há diversas semelhanças entre as duas séries, mas isso pode ser igualmente dito de filmografias inteiras de grandes cineastas, pelo que não há mal algum nessa característica mais do que esperada, aliás. O que importa é que a nova série alemã de Jantje Friese e Baran bo Odar é a linda e original execução de um conceito que muitos dirão que é clichê, que é batido, que é isso ou aquilo. Como se dizer que alguma coisa é clichê não fosse um gigantesco e cansativo clichê que parece ser muito mais uma recusa em tentar enxergar além do clichê…

1899 (Idem – Alemanha, 17 de novembro de 2022)
Criação: Jantje Friese, Baran bo Odar
Direção: Baran bo Odar
Roteiro: Jantje Friese, Dario Madrona López Gallego, Emma Ko, Jerome Bucchan-Nelson, Juliana Lima Dehne, Emil Nygaard Albertsen
Elenco: Emily Beecham, Aneurin Barnard, Andreas Pietschmann, Miguel Bernardeau, José Pimentão, Isabella Wei, Gabby Wong, Yann Gael, Mathilde Ollivier, Jonas Bloquet, Rosalie Craig, Maciej Musiał, Clara Rosager, Lucas Lynggaard Tønnesen, Maria Erwolter, Alexandre Willaume, Tino Mewes, Isaak Dentler, Fflyn Edwards, Anton Lesser
Duração: 400 min. (oito episódios)

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais