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Crítica | 21 Gramas

por Marcelo Sobrinho
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“Então Pedro, aproximando-se dele, disse: Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete.”
Evangelho de Mateus, capítulo 18, versículos 21 e 22

Ao realizar Amores Brutos, com um orçamento bastante apertado, Alejandro González Iñarritu surpreendeu grande parte do público e da crítica com uma estreia consistente, embora um tanto supervalorizada, como escrevi na crítica ao filme. Com a segunda parte de sua trilogia, tudo ocorreu de forma diametralmente oposta. Lançado em 2003, 21 Gramas não causou grandes surpresas, já que foi bastante aguardado. A entrada do mexicano em Hollywood trouxe muitas modificações em relação ao primeiro filme, desde o idioma falado (que passa a ser o inglês) até o elenco, em que figuram grandes estrelas do cinema norte-americano, como Naomi Watts e Sean Penn. Com seu segundo longa-metragem, Inãrritu deixa de ser apenas um jovem e talentoso diretor e se revela um cineasta bem mais maduro.

A estrutura fílmica é basicamente a mesma de Amores Brutos – três histórias dramáticas e limítrofes que se interceptam em um trágico acidente de trânsito. Paul (Sean Penn) é um cardiopata grave, em fase terminal, que aguarda com um fio de esperança o transplante cardíaco capaz de salvar sua vida. Cristina (Naomi Watts) é uma ex-viciada em cocaína que agora vive uma vida feliz como esposa e mãe de duas filhas. Fechando o trio principal, Jack (Benicio del Toro) é um ex-presidiário que se torna um cristão fervoroso após sair da prisão. As três histórias gravitam em torno das perdas, tanto as que chegam de modo fulminante e irreparável (Cristina) como as que surgem como ameaça iminente (Jack e Paul).

A ausência de linearidade permanece, mas os saltos entre os núcleos e dentro do fio narrativo de um mesmo núcleo são ainda maiores. As elipses estilhaçam completamente o tempo cronológico e o espectador é imerso em uma narrativa densa e revolta, em que é preciso reunir peças para se construir o todo. A forma em 21 Gramas é mais elaborada e mais competente na produção de seus sentidos. Rompendo os laços temporais, Iñarritu transfere para seu público a mesma sensação que experimentam seus personagens, que vivem vidas claudicantes, na beira do abismo, à procura de um rumo. O tempo em 21 Gramas não é Chronos, mas sim Kairós, palavra grega que designa o tempo como oportunidade de ação, ao qual tentam se agarrar todos os personagens principais do filme.

A fotografia é das mais belas que já vi. O trabalho de Rodrigo Prieto vai muito além de mera perfumaria. O diretor de fotografia opta por desbotar todas as cores e imprime em sua fotografia a sensação de falta, de vitalidade roubada, que tanto dialoga com as histórias do filme. As cenas mais dramáticas são texturizadas, levemente granuladas. É interessante notar que a trilha sonora, novamente a cargo de Gustavo Santaolalla, também tem essa intenção de criar texturas e atmosferas. Se eu convidasse quem assistiu ao filme a se lembrar do tema principal de 21 Gramas, certamente a tentativa seria inútil. Ouvir as faixas dessa trilha em um CD também não faria sentido algum. Tudo isso porque as composições de Santaolalla só funcionam bem quando inseridas em cena, criando sensações e não melodias avulsas, para serem cantaroladas pós-filme. A guitarra cheia de vibratos do músico argentino e seu bandoneon insinuante em “Can Dry Leaves Help Us?” são parte insolúvel de 21 Gramas.

Extraordinariamente bem filmado e bem montado, o filme vai mais fundo também em seu conteúdo. As histórias de Paul, Cristina, Jack e dos personagens em seu entorno tem como essência a busca de uma salvação. Cristina abandona o vício em drogas quando se sente salva dentro da família feliz que constrói. Naomi Watts interpreta sua personagem com uma intensidade brutal. Os olhos quase sempre marejados e os cabelos mal arrumados são alvo das lentes impiedosas de Iñarritu, que usa e abusa de big close-ups durante todo o filme. Jack, por sua vez, tem na fé cristã a sua tábua de salvação. É especialmente marcante para mim a sua fala diante de um jovem criminoso: “Tire seu gorro! Deus sabe até quando um fio do seu cabelo se mexe”.  Igualmente impressionante é a cena em que o personagem de Benicio del Toro ordena que sua filha estique o outro braço para que o irmão lhe bata novamente. “Sempre que alguém lhe bater, ofereça a outra face”, diz ele.

Para Paul, a salvação é a da própria vida, que se esvai a cada instante. Acho soberba a atuação de Sean Penn, que ganharia o Oscar de Melhor Ator no mesmo ano por Sobre Meninos e Lobos, outra grande atuação sua, mesmo que em um filme artisticamente mais limitado. Seu personagem em 21 Gramas, com uma dispneia angustiante em diversos momentos, vive uma luta constante entre a vida e a morte. Anda pela casa com um cateter nasal de oxigênio, mas se tranca no banheiro para fumar. Paul alterna pulsões de vida e pulsões de morte, Eros e Thanatos, antítese que desaguará na complicada solução da obra. Ele consegue o coração que tanto esperava e a identidade do doador entrelaçará as três histórias.

Mas a salvação que os três julgavam ter encontrado se revela um engodo. Cristina é vitimada pela tragédia que une os três núcleos. Jack volta a cometer um crime, mesmo que sem intenção e se sente traído por Deus. Paul tem a triste notícia de que o coração transplantado falhará em breve e que sua morte está próxima se um novo coração não for encontrado. A ideia de perda em 21 Gramas incide sobre a própria salvação, apresentada inicialmente. Mas se a direção de Alejandro González Iñarritu é mais madura, o roteiro de Guillermo Arriaga vai ainda mais longe que o de Amores Brutos. Enquanto os personagens do primeiro filme ganham desfechos abertos, como vidas que continuam em busca de um sentido, o trio principal de 21 Gramas consegue ir além e encontrá-lo, mesmo no terreno mais árido e difícil. “Quando as perdas arderam em chamas, os milharais ficaram verdes de novo”, diz a dedicatória final.

Duas crianças perderam suas vidas no famigerado acidente automobilístico, mas duas novas vidas estão em curso dentro do ventre de Cristina e da mulher de Paul, que ganhou o direito de usar o sêmen do marido para inseminação artificial. O protagonista encontra no término de sua vida o sentido de sua existência, isto é, um sentido cíclico de perdas e compensações. E ao contrário de Amores Brutos, 21 Gramas propõe com clareza essas compensações. O autossacrifício final de Paul é também o que possibilita a Cristina e a Jack encontrar sentidos em meio à desgraça geral. A personagem de Naomi Watts só consegue concluir seu luto e perdoar Jack quando Paul mata dentro de si mesmo, com um tiro, a parte que carregava de seu ex-marido. Pássaros aparecem em voo migratório na cena seguinte, uma alegoria que surge em outros momentos do filme, aludindo à vida e à morte como movimentos cíclicos, que não cessam.

Pouco importa se é científica ou não a ideia de que o corpo perde 21 gramas quando morre (o peso da alma humana, portanto). O que interessa mesmo é a força retórica dessa ideia ao questionar os sentidos que se encontram na fronteira entre a vida e a morte. 21 Gramas é o passo mais importante que Alejandro González Iñarritu deu em sua carreira de diretor de cinema. Até hoje, seu filme que mais me convence tanto na forma como no conteúdo, especialmente por amarrá-los firmemente como se fossem um só. Após atingir seu ponto mais alto, com uma autêntica obra-prima, a chamada Trilogia da Perda terá com Babel o seu último e honroso capítulo.

21 Gramas (21 Grams) – EUA, 2003
Direção: Alejandro González Iñarritu
Roteiro: Guillermo Arriaga
Elenco: Naomi Watts, Sean Penn, Benicio del Toro, Charlotte Gainsbourg, Anastasia Herin, Annie Corley, Catherine Dent, Carlo Alban, Danny Huston, Denis O’Hare, Clea Duvall, Eddie Marsan, Juan Corrigan, Melissa Leo, Arron Shiver
Duração: 124 minutos

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